10.8.16

Suicídio assistido

Na grande roda
onde se jogam os dados de água
uma arma vetusta e enferrujada
em cima da mesa.
Atónitos
demoram-se na arma inesperada,
eles que nunca meteram à mão
arma qualquer.
Não sabiam o que fazer.
Um deles propôs chamar a polícia
outro insurgiu-se
(reações epidérmicas mal ouvia a palavra)
e o outro descobriu uma bala sem paradeiro.
Emalou a mala no coldre
em preparativos de um jogo demencial
em que os outros aceitaram ser atores.
Sem saberem como atores seriam:
experiência no manuseamento de armas
não estava vertida no curriculum
e todos se ufanavam de pacíficos pergaminhos
e não havia conhecimento que transitassem
pela loucura.
A arma albergava cinco balas
e depressa tiraram a prova dos nove
às probabilidades
(que, em plena véspera da roleta russa,
rimavam com fatalidades).
À vez
com mão tremeluzente e num arfar aflitivo
um seu dedo premiu o gatilho.
Não eram armeiros
nem tinham ar de serem belicosos
nem deles se sabia apascentarem riscos.
O que não se sabia
(ou não era de público conhecimento)
era o vício incorrigível pelo jogo.
A bala sem paradeiro
tirou as vezes aos dados de água.
Desta vez
a aposta não fora em numerário.
Depois de três vezes premido o gatilho
a alvorada soou para todos
no prolongamento da agonia
que nem a roleta russa acabou.

9.8.16

#50

Falha-me a voz
na sombra da estátua cerviz
e reforço o peito com o ar outonal
que se levanta da bruma ao entardecer.

Não estatuto

Seria
estulto desagradecer aos imprevistos.
Seria
amador tirar a besta do armário.
Seria
ensurdecedor o silêncio duradouro.
Seria
demente tropeçar nos próprios pés.
Seria
sobressalto oferecer a janela aberta ao devir.
Seria
criminoso deixar a água desamparada e esvaída.
Seria
caótico cerzir os dedos aos fogos medonhos.
Seria
um estorvo apurar as comezinhas fauces.
Seria
impensável descoser as bainhas sólidas.
Seria
desbarato apreciar os estouvados.
Seria
critério depositar o corpo ao rio lânguido.
Seria
cruel ligar as cores nas paredes brancas.
Seria
proeza se resgatasse a pureza já desenhada.
Seria
volitiva fruição amparar os reflexos da noite.
Seria
frenético desejar com intensidade de um dínamo.
Seria
maré alta se precatasse os calafrios.
Seria
exemplar se houvesse carestia em ser exemplar.
Seria
nó atado se não desaguasse numa foz clara.
Seria
o que fosse não fosse o que sou.
Ou:
seria o que fosse não fosse o que me é dado ser.

8.8.16

Irrenúncia

Não tenho
a medida das coisas
olhos com intermitências sapientes
a água fria em paredões delimitados
a secura precisa para temperar intempéries
nem sal bastante para avivar as feridas
ou lua que sobre para ser regaço sereno.

Não tenho
se não o cais necessário
os braços em aberta demanda,
como se fossem ramos de uma árvore matricial,
o perene eu que é uma metade
a bandeira hasteada no umbral sobranceiro
o abraço afogueado que aplaca os medos
as palavras que aprouverem em sussurro
as estrofes 
que estilhaçam os alinhavos de outrora
e o mar singular
que entra pelos poros da janela.

E tenho
em urgente desembaraço
de lançar ao ermo sementes de musicadas flores
trovas esplêndidas 
que são a maresia de um olhar
mãos veludo em afagos merecidos,
apenas com o limite do que é deslimite,
cadeiras sublimes em faustosas esplanadas
o vinho em celebração de um beijo
uma armadura
em convocatória dos impróprios tempos,
para domar tempos esses,
e o avesso do que não traz garbo
deixando que o esterno seja
sua própria apóstrofe.

7.8.16

Barbas de molho

Não sei
se as bainhas da ironia
se cosem aos freios da boca
– ou aos freios que coso à boca.
Prefiro o mapa dos paraísos
onde nadam doces uvas brancas
tradução exímia de um pulsar desejado
as cores exatas no dimensionamento da tela
sem impurezas
sem areias que pareçam arestas vivas
sem curadores de estados de alma
sem incensadores de fé em demoníacos autos.
As diatomáceas passam na televisão
e o velho absorto dá de comer aos pombos.
E eu não sei que fazer desta ironia
que dorme nos meus braços
em inconfessado desejo de explosão.
Sei
desta ironia poder ser devastadora
ou apenas indiferente
ou um meio termo.
No caldo fervente que é lugar meu
a ironia é uma lava constante
o púlpito efervescente de onde arremato
espadas e cálices e corolas embebidas
fugindo do exílio
do caldo fervente que é lugar meu.
A ironia como a imperativa ameia
que faz paredes-meias com o exílio
que ficou no lugar do retrovisor.

6.8.16

#49

Erro bastante
erro eloquente
num áspero lençol diuturno
sem sol nunca:
erro, erro terapia. 

Dois pés esquerdos

Diziam dele
ter frio pé na contingência da dessorte.
Esbranquiçado buço e destoar
apessoado pergaminho
onde suas mãos ungiam
logo espelhos se estilhaçavam
nas dobras forçadas de um rio justo.
Já desistira:
deixara-se de preces
e nem os chapéus promitentes,
os que ajuramentavam fortuna
(alguma fortuna),
eram alfândega onde cabos radiosos
se encomendavam.
Já sabia:
dele não se podia figurar
um frio pé,
mas dois esquerdos pés.

5.8.16

Com as costas da mão

Uma panaceia para os curadores da irrealidade.
Um tabuleiro de jogo
em forma de caravela dos Andes
enquanto bebem azevinho
de uma chávena em forma de amora.
Talvez se lhes dessem verbos de troco
à medida que o sol se descamisa
e a língua verbena se desfaz em adjetivos fartos,
a eles venha o crédito de uma romaria pueril
com sapatos de corda atómica
e uma melíflua granada de mão
mesmo a troar sobre o despensamento.
Estiolam-se os amparos nos cotovelos
dentro de um bule madraço
onde a água não ferve
e os joelhos beijam
os traseiros músculos das pernas.
Afadigam-se em pré-adolescente algazarra
os eminentes vultos da fábrica
onde a lúdica abjeção se lobriga.
Se pudessem
tiravam uma talhada da lua
e serviam-se,
acompanhada de licor de avestruzes.

4.8.16

#48

Não me faças perguntas difíceis
que as viro do avesso
e no chão sem chão,
onde não tenho esteio,
foge-me da mão a espada sem travão.

Números primos

Pedregosas as montanhas
a que mãos transidas se lançam
num dia sem sol nem noite.
Sem artes outras se não as mãos
às vezes trémulas
outras inteiras
outras sequiosas de um planalto inteiro
com o fito de repousarem nos pastos planos.
Dizia ser uma ametista cerzida
em águas leves
o produto da multiplicação das mãos ávidas
com a matéria sobrante.
O verde reluzente dos campos
oferecia a distância necessária
à distância do som das ondas do mar
(tão longínquo)
de onde se evoca a maresia dos búzios
estilhaçados contra as rochas erodidas.
E talvez não fossem de tal arte as coisas
em deitando a pulsão lunar
(em sucessivas convulsões)
aos paredões húmidos a voz dolente,
em desinspirado arremedo.
Encontrei uma maquineta sem uso
fóssil de ferrugem
que porventura
seria o desfecho das horas sem remédio.
A força braçal toda metida
nas engrenagens da máquina gasta
e um navio ascendendo os montes inclinados
enquanto dois corvos
terçavam simpatia com um coelho
à medida das botas rombas
que subiam ao sol impróprio
por demencial teimosia.
Achei-me do lado contrário da encruzilhada:
os diademas desordenados
e os cantos alvares de sacerdotes sem rosto
hasteavam bandeiras vincadas
à espera de um entardecer sem pressa.

3.8.16

#47

Não sei
nem o que as certezas ensinam;
o biombo
que esconde biombos diametrais
desdobra as sombras infantes
sabendo nada e o seu espelho.

2.8.16

Palavras contumazes

Não me deixaram prender as palavras
no mais alto clamor da manhã.
E nem uma candeia acesa
irrompendo entre o nevoeiro capaz
soube ser cais sereno das palavras silenciadas.
Queria ter mão nas palavras
dar-lhes mel forte
cores morígeras
um canto sem impurezas
usá-las para caiar as paredes sujas
e ciciar ao ouvido estrofes de amor.
As palavras mareavam, sem freio,
no céu noturno
num campo de estrelas,
rebeldes.
Queria apanhá-las entre os dedos
sentir o seu apelo telúrico
reinventá-las sem sentirem ultraje.
A manhã embaciada oferecia-se
palco majestoso.
Só que os olhos cansados pelo luto do sono
os sentidos em vertigem desassossegada
os espinhos esbranquiçando o corpo intimidado
a sensação de estar num avesso sem saída
– tudo conspirou para as palavras
serem contumazes em minhas mãos.

1.8.16

#46

Metáfora enfarpelada
no sobrolho entortado
não é método ciente
a não ser 
nos estouvados precipícios 
onde o musgo não medra. 

Saldo positivo

Da vastidão do pensamento
albergo orações sem deus dedicando
colho as ramificações dos caudais céleres
abraço uma miríade de olhos sequiosos.
Devolvo o de mim ao que me ronda,
próximo ou distante,
não interessa,
no sargaço que rumina as ruínas sem norte
sabendo da impureza das palavras
(por isso nunca definitivas).
Dou por mim banhado nas flores da buganvília
colhidas como deve ser
por camponesas diligentes,
antes de beber do cálice do entardecer
o vinho sublime que disfarça a idade.
Tomo nota,
num papel envelhecido,
das contas que rumorejam no pensamento:
arrumados os cálculos,
e passada a pente fino a contraprova,
contracenam os números fidalgos
no rescaldo do saldo positivo.
E sei,
em sina que se desemaranha das nuvens hirsutas,
que a talha dos que porfiam
em demorada paciência
os cobre de ouro puro.

31.7.16

#45

Nas margens encalhadas
entre dois sobressaltos
arde o peito num vulcão
aberto.

30.7.16

Forasteiro

Longe
e de mais para haver lucidez
no restolho que, ácido,
deixa o entardecer sitiado
num entorpecimento banal.
Longe dos dias sabidos
numa lente desfocada à frente das mãos
sem saber das palavras reprimidas
o sal do seu insentido.
Recolhendo das igrejas refrigeradas
um sal
para pavimentar os sobressaltos tugidos.
Meto as mãos na luz clara,
adoçando a lonjura com a baunilha
dos dois-passos-já-adiante
que é a nossa casa.

29.7.16

Impressões

Dá a impressão que o rio nada na corrente
trazendo o dia para fora da sua concha
tomando ânimo num copo de conhaque
no abrigo da esplanada.

O paquete circunstancial faz-se ao rio
trazendo as âncoras à mostra no casco
tomando o rio de amparo à espera do mar
no abrigo da cidade retratada no rio prateado.
       
Uma mulher só fuma cigarro atrás de cigarro
trazendo a tossiqueira em pano de fundo
tomando avidamente o cocktail
no abrigo do chapéu rombo.

Um turista ocidental procura a rua no mapa
trazendo nos preparos da mala projetos mil
tomando de empréstimo a língua arrevesada
no abrigo da paciência de um nativo.

Um cão adestrado responde às ordens do amo
trazendo o brinquedo na boca a tiracolo
tomando água fresca nas mãos do amo
no abrigo da sombra pensada pelo homem.

Um chinês jovem e distinto prega deus
trazendo ostensiva bíblia no regaço
tomando o tempo assoberbado dos incréus
no abrigo de uma paráfrase dos mandamentos.

Um dia arrastado no cenáculo do estio
trazendo uma miríade de promessas infecundas
tomando as rédeas dos ingénuos desprevenidos
no abrigo da provável loucura.

Dá a impressão que os gatos estão gastos
trazendo as mãos baças e as estrofes decadentes
tomando um arroio seco como manancial
no abrigo do porvir vazio.

28.7.16

#44

Um corso inteiro
deitado na fonte fresca
à espera do saque:
e eu juntava os dados
e deitava só os seis.

Incêndio

Em papiro à prova do tempo
escrita a carta de todas as cartas
o tremendo testemunho para memória futura
em linhas desenhadas a ouro
por entre intempéries frígidas
e searas mostrando a pele dura.

O papel deitado ao acaso
voando entre os ventos balizados
ancorado num arbusto seco,
ou errando entre as árvores sem dono
não se sabe se procurando destino
não se sabe se tomada por mãos algumas
que leia suas resoluções.

Datada
a carta tremendamente intempestiva
aluvião de segredos,
segredos a que se pode chamar segredos,
nunca por outros sabidos,
composição inquieta dos calendários
vindouros,
tabulando o pretérito de que se quer rasto:
favores rogados a outros
sem saber se os outros
à hora do deslacrar do papiro
taliões da vontade outra serão.

O papiro perfaz a viagem sem rumo
aterra num campo cheio de flores
a ser consumido pelo fogo.
A carta não tem vontade
nem pode a sua errância ajuizar vontade alguma:
ao deus-dará
abrindo-se de seu lacre
ao ser beijada pelos iniciais lampejos do fogo,
extingue-se, incensada.

Não se soube
se precedeu a extinção do autor seu.

As cinzas pereceram na fértil colheita do fogo
e nem as letras desenhadas nas linhas a ouro
ficaram para memória futura.

27.7.16

O paraíso não

Dei uma volta no paraíso
por onde há nuvens amorfas
e émulos de bailarinas a dormir,
artistas emudecidos
e palradores emasculados,
paisagens acetinadas
e vinhos dignos dos deuses,
praias sem areia
e framboesas sempre maduras,
e jurei que seria uma bandeira desaforada.

Todavia
era um sonho
apenas um sonho.
Imaterial.

Ao contrário dos guerreiros
a quem prometem setenta e sete virgens
não chamo a mim sonhos de tanta abundância
(nem acredito que haja delícia nessas delícias).
Dei uma volta no paraíso
ou talvez apenas
nos escombros de um convento clandestino
onde se aposta em jogos de casino
(ilegais)
por entre a densa nuvem de tabaco.
Julgavam alguns ser um paraíso
– como paraíso podia ser um restaurante gourmet
uma espingarda avariada
o dente de leão amigo
o simulacro de um harém
um poema cozido com perfume de flores.

Desfiz a volta ao paraíso.
Desfiz a desonra promitente dos sonhos.

Embarquei no navio novo
onde só pontuavam marinheiros diligentes
ascetas da sabedoria que importa.
Os marinheiros eram unânimes:
atiravam o dedo para o firmamento
enquanto formulavam a demanda:
“quem acredita num paraíso?”
ou, em sua reformulação:
“para que serve um paraíso?”
Era uma pergunta retórica.
Emudeci
em sinal de não resposta
logo entendida pelos marinheiros
como dupla negativa em resposta.

Quando desembarquei
senti um odor fétido
a subir das entranhas do cais
desde as águas paradas
onde o novo navio estava fundeado.
Não haveria prova melhor
da inexistência do paraíso.

(Mas sempre podiam reclamar
em defesa do paraíso
– ou dos paraísos que interessassem –
que os marinheiros fizeram batota
com as águas do cais.)

26.7.16

Work in progress

A areia movediça.
Não levanta jamais medos:
os segredos foram delidos
e os pés assentam nelas
como mastins esfaimados.
Devoram-se,
as areias movediças.
Extinguem-se os nevoeiros acesos
bolçando lava dos pântanos larvares.
Se havia estertor na praia noturna
quando a luz era ausente e os sumos nada
a grande centelha acesa deu caução
à aprendizagem maior:
percorridos os rochedos de anteparo,
no necessário tirocínio
contra os avassaladores fantasmas sem rosto,
sentiam-se cinco alqueires 
de terreno conquistado ao mar 
dantes medonho.
As espátulas cansadas
foram uma arte servil da grande proeza.
Estão gastas,
as artes rombas,
deixaram sua letra na placa que emoldurou
a proeza.
Agora,
que as janelas ficaram desempoeiradas
e todos os pássaros fazem escala 
no promontório,
já se anda a eito em chão liso
onde havia areias movediças.
Haverá lugares outros,
ermos,
em arremedos sombrios de névoa evaporada
das areias movediças outras.
É empreitada para diante:
o processo interminável 
que passa entre as gerações
até deixar o sublime olhar distante
num mapa firmado com os anéis-diamantes
que são lavra dos diligentes 
que não se derrotam.