11.1.17

Jogo clandestino

As cartas gastas
as luvas embotadas
os olhos marejados
o coração fraco
o dorso arquejado
os sentidos desmaiados
as esperanças desvalidas
e o jogo clandestino;
lampejo fátuo
preces sem deus
sentindo as veias incandescentes
e a rigidez da honra esquecida
um coração acelerado
os olhos vertidos no jogo
as mãos aquecidas
e as cartas ligadas pelo húmus dos dedos.

10.1.17

Atestado

Da escola perdida
entre os estorvos do tempo
parecem braços atados ao vento
perecem as ardósias gastas
e há luzes efémeras beijadas no estendal.
Os vidros partidos
selam a perda de outrora
de um tempo junto nas mãos
agora áridas.
Ao fundo
a vila anestesiada
um velho dormindo sobre o cajado
enquanto arrefece o banco do jardim.
A bússola diurna levanta os ecos
desarmando os rituais inertes
devolvendo às pedras brancas
a chuva eterna.
Sobram as vinhas douradas
e o peito inteiro nelas deitado
ao fundo
o rio maior
em rima de amor
(em rima com o amor)
varrendo as margens que o não interrompem.
Uma alma angariada
entre montes íngremes e cascalhudos
sem medo dos lacraus
sem medo do relógio transido
sem medo da gente meã
ecoando no rumorejo do rio distante
como se o ouvisse em sussurro junto ao ouvido.

9.1.17

Farol promontório

De um farol promontório
as luvas macias da relva-musgo
e vultos inesperados em coreografias
levantando as ondas do mar.

De um farol promontório
a noite clara na embocadura do cabo
desassisando prometidos fantasmas
em voos sem rosto.

De um farol promontório
em vez de cortinas rasgadas
em vez das profundezas da penumbra
uma centelha de ouro lídimo.

De um farol promontório
cinco minutos de cada vez
sem a espera mutilante
em relógios vazados e sem ponteiros.

De um farol promontório
às voltas com demandas excruciantes
em pelejas indemonstráveis
pedras leves nos mastros ao longe.

De um farol promontório
sinais de fumo orquestrados por um solitário
e os marinheiros penhorados
inclinam-se na rota serenada.

8.1.17

Pensamento

O chapéu de aba riscada
fermenta no lugar do pensamento.
Levanta o vento mortiço,
torna-o impertinente.
Esse é o lugar do pensamento:
um sobressalto contínuo
que se desembacia do torpor
um abalo telúrico
à procura de chapéu em ideal combinação.

7.1.17

Temporário

Ocasionalmente chuva
(penumbra)
ocasionalmente o mar
(sargaço)
ocasionalmente medo
(pesadelo)
ocasionalmente as dúvidas 
(penhor)
ocasionalmente o saber
(adestrado). 

6.1.17

Depois de amanhã

A tela refém
à medida dos estroinas
que despojam as páginas
enfim alvas,
enfim nuas.
O amontoado de ruas iguais
estreita-se na severidade de uma avenida
e os mendigos limpam o suor
mostrando as rugas como feição.
Não se descobre o ouro vadio
nem promessas de deleites:
o tempo veloz amotina-se
contra
os lingotes cerrados
as mãos duras e contrariadas
as luas esquecidas
o tónico servido em copo de fino pé.
Das impressões restantes
uma talvez luva aveludada
rimando com o rio assoreado.

5.1.17

Cálculo

Jogo o jasmim
na boca do fogo
onde a rendição espera
na letargia da noite.

Abraço as abas
na lenticular nuvem
onde a radiação se coalha
no embaraço das sombras.

Reparo os rogos
na diurna água fresca
onde os rudimentos se albergam
na vertigem dos animais sem freio.

4.1.17

Moço de recados

É a chuva intermitente
a barcaça a apodrecer no lodo
sem um ocaso que se veja
sem um pressentimento estimado. 
No fojo longínquo
fugindo de um falcão destemido
esgueira-se entre os arbustos rasteiros
fazendo lembrar argumentos repetidos
(eles também rasteiros). 
O moço de recados,
intermitente como a chuva,
mostra a torpe coluna vertebral:
fala com a voz do dono
a voz que mais pagar os favores desejados. 
Afirma as desafirmações de outrora
com a desmemória que entontece
os lençóis retorcidos sua vitualha. 
A chuva continua intermitente. 
O mundo segue por todo o lado. 

#120

De que serve ser livro aberto
se não há olhos e mãos
que nele se deitem?

3.1.17

Interrogatório preliminar

Notas o aroma
que adeja sobre a cidade?
Sentes os ramos das árvores
a tremeluzirem na orla da noite?
Concebes o dia cansado
na sua estação meã?
Aproveitas o dorso do cavalo
sem medo sequer de teres medo?
Medes o estalão dobrado
que se encerra no fogo estiolado?
Assinas o livro de homenagem
ao personagem de alma estilhaçada?
Foges dos sobressaltos epistolares
até dos que se alteiam sem pré-aviso?
Abraças destemidamente
quem julgarias não poder abraçar?

Tens como hipótese
a dilação dos pressupostos?
Tens como hipótese
a fruição dos frutos sazonais?
Tens como hipótese
pegar o céu com as mãos marcadas?
Tens como hipótese
beber daquele vinho recusado?

Apetece-te apenas levantar os braços
e gritar contra o muro da noite
como se fosse urgente em expulsar demónios?
Apetece-te sufragar os desejos
numa piscina sem janelas?
Apetece-te confirmar a pele
que se congraça na tua?
Apetece-te o irreprimível pulsar
que vem por dentro de um retrato?
Apetece-te
apenas o que vier à colação de um apetite?

Apetece-te levantar o véu
a outras demandas semelhantes?

2.1.17

#119

Resgatei uma lágrima 
do mar em convulsão
enquanto me contratava
na moldura de um instante. 

Em formação contínua

Perfeita a constelação diurna
descompondo as bravatas inúteis
no chão frio.
Diria,
sem suposições frugais,
que os olhos entediados saberiam
que calendário escolher
que precisa folha do calendário
escolher.
Mesmo que estivesse escuro no quarto
e as mãos arranjassem espaço
por tentativa e erro.
Por mais
que os mastins orquestrem
a noite imorredoira
e os tomadores de chaves desfaçam
o ponto de Arquimedes
e maçadores incontinentes da palavra
furtem o silêncio esperado,
sobejam nas ogivas rejuvenescidas
as orquídeas sem tempo
à espera de vez.
Na perfeita constelação diurna,
onde as estrelas se intuem 
nas sombras do avesso,
levando ao colo
o ciciar dos pássaros
e as ondas sobrantes da maré imposta,
sem rumorejo leniente
ou arcadas disformes,
o peso do rosto levita no dorso da mão.
Quente e simples
no verbo alado de estrofes amuralhadas
admitindo as portas estroncadas
onde se queima a amálgama de lugares-comuns
e de lugares-feitos.
Até que,
com a bênção da aurora radiante,
troféus inanes não sejam disputados.

1.1.17

#118

God blind the queen. 
(And the queen became enlightened.)

Rouca a voz distante

Rouca a voz distante.
Mercê de coisas quiméricas
arrebatamentos não banais
vistas atiradas para páginas depois
pele adestrada para o frio das estepes
refeições singelas comidas no parapeito
algas colhidas ao acaso na embocadura do mar.

Rouca a voz distante
mas suficiente para o demais:
as proclamações vertiginosas
os cálices verticais
os olhos sambados
os arbustos cheios de mel
as areias recebidas no luar
as estrofes que desaproveitam preces
os beijos desatados
os filhos servidos em ouro
os braços maduros pelo entrelaçar.

Rouca a voz distante
mas voz
e
portanto
presente.

31.12.16

Pontes sábias

As pontes sábias
tangentes ao suor carregado
secam as lágrimas marejadas
vertidas em arcádias outonais. 
As pontes sábias
amarelecem páginas cansadas
ao ritmo do vinho velho
para serem mestres tutoras dos esquecidos. 
São sábias
as pontes desaproveitadas
sob os pés de gente enquistada
nos terríveis patamares da insídia. 
Sobram as sábias pontes
que recolhem no seu antepasso
os exilados das cores desmaiadas. 

30.12.16

Pecúlio

Arruaço
as ideias matrizes 
contra os embustes disfarçados.
Sem ousadias militantes
(a não ser
dedilhar os farsantes
acobertados nos lugares-comuns). 

Desajeitam-se os calibres
os pesos que precisam de contrapesos
os esquálidos contrafortes da igualdade
o verso e o reverso
as faces diametralmente descasadas. 

É pouco. 

Procuro janelas
que se desdobram em janelas outras
múltiplas janelas
abrindo-se de par em par
abraçando-se às aragens diversas
as que têm origens acima das contagens
janelas de ogivas férteis. 

Procuro corredores largos
onde o pensamento se espraie 
em seus deslimites. 
Corredores
atapetados pelos olhares múltiplos
em sintaxe esperanta 
no desembaraço de espíritos desacorrentados.

#117

God slave the queen.
(And the queen became atheist.)

29.12.16

Demiurgo

Um plano misturado pelas mãos
enquanto os ossos das montanhas arrefecem
e os bastardos penhores do fogo
montam cerco.
Não saberia dizer aos olhos ávidos
se não fossem os montes à mão de semear
como se a mão neles pudesse pousar
a agarrá-los.
A paisagem não foge.
As mãos trémulas
têm de a encontrar
num sortilégio a desfazer.

28.12.16

Arrefecido

A mostarda ao nariz
o mastro arrimado
as nuvens escurecidas
o amuo no estirador
e a culatra em pulgas.

Não adianta.
O nariz já se consumia
em sua perfunctório ensimesmar.

As regras encavalitadas
o suor sem préstimo
as imitações pueris
os poços poeirentos
e as maças apodrecidas.

Não adianta.
A camisa-de-forças
era estertor bastante.

27.12.16

Sobreiro professoral

Debaixo das cicatrizes
o velho sobreiro medra
um invejável elixir.
Não sabem da poda
os poltrões citadinos
disfarçados em farpelas
congeminadas por bisturis.
De hoje para amanhã
dandies ocultos fruirão
nas margens dos montados.
Deem-lhes bolotas
que já estão habituados.

26.12.16

Intermitências

Perguntam aos ossos matinais
se trazem com eles as pedras angulares
que decifram as veias do mundo. 

Perguntam se as representações
se misturam com a métrica suspensa
entre dois lampejos da lua esquartejada. 

Perguntam aos angariadores de almas
por que sortilégios se movem
para não conseguirem arrematar vivalma. 

Perguntam às mulheres enlutadas
se não se lembraram de despojar o véu escuro
que freia o ar límpido. 

Perguntaram aos loucos sem carteira
se não preferiam habitar
com os loucos encartados. 

Perguntaram aos músicos distraídos
se eram apenas ociosos
ou se era travessia na praça da desinspiração. 

Perguntaram
se não havia folhas caducas para varrer
em vez da sofreguidão dos prazeres. 

Perguntaram às mães
pela quimera do amor singular dos filhos
à espera de curarem orfandade precipitada. 

Perguntaram
se as rodas perfeitas
saberiam vencer os estorvos sem espera. 

E perguntaram às memórias
por que teimam
em inquietar o pensamento devolvido. 

Perguntaram
e continuam a perguntar
pois perguntar é prova de vida
e perguntar não é critério imperativo
de respostas em fonte aberta.

25.12.16

Prognóstico reservado

A verdade:
não há maneira de a virar
contra a mentira
por mais que a mentira
se componha de verdade
– ou do que como ela seja estimado –
ou a sua máscara seja
ou uma convulsão circense
ou o aparato de uma paisagem extática.
A verdade
é que não há verdade por arrematar
e essa é a verdade sublime
que transfigura as mentiras todas.
A verdade
devia ser banida do vocabulário.

24.12.16

Sirenes opacas

Sirenes emudecem o chão
do teatro algoz.
As corças observam, altivas
o despedaçar dos corais antigos.
Sobre o despojar do musgo
as migalhas do vento
dispersam sementes várias.
Tudo há de ser como dantes
– admitem os cultores dos costumes.
Não valeram de nada
as sirenes estridentes.

23.12.16

#116

A caixa negra
esconde matéria crepuscular
que crepuscular se guarda
até ao fim do tempo. 

Portfolio

Rostos por todo o lado
rostos nos sonhos
rostos-pesadelo
rostos caiados nas frontarias dispersas
rostos em sorrisos cínicos
rostos nervosos em trovoadas estridentes
rostos inteiros em pedaços de dia
rostos com rugas por dentro
rostos longínquos
rostos entronizados em ameias altas
rostos salgados
rostos tirados a preceito
rostos imóveis
rostos cibernéticos
rostos ungidos com flores sangradas
rostos sem medo de nada
rostos negação
rostos cantados
rostos novelos
rostos expressivos
rostos pueris
rostos marcados pela temível roda dentada
rostos fugitivos
rostos.
E eu como ilha no meio deles.

22.12.16

Categorias operativas

Odeio ismos. 
Os rótulos adjacentes
as categorias herméticas
as peias por cima dos ombros
a desopulência dos maneirismos binários
o raciocínio ligeiro e cerce
a fantochada de uma esgrima pueril
as desavenças sem chão
as arritmias das oposições gratuitas
os olhos vesgos pela lente baça
os corredores estreitos por onde amesendam
os fartos vilões da mesquinhez. 

Odeio que tenha de ser um ismo qualquer
que me amordaça às frugais paisagens
de quem assim se reduz. 
Odeio ser atirado para os braços de um ismo 
sem ter pedido esse lugar
e depois
aturar os algozes das categorias herméticas
dedilhando as minhas incoerências
quando uma ideia se soergue
contra o ismo em que me meteram. 

Odeio as sindicâncias dos outros
à mercê dos ismos a que me prenderam. 

Odeio não ter liberdade para alojar ideias
no promontório que me apetecer
sem logo aparecerem os mastins dos ismos
a descobrirem um (ou mais) para minha trela. 

Lamento
a estreiteza dos frequentadores de ismos,
imodestos marceneiros das ideias acantonadas
aviltantes de si mesmos na cegueira sua. 

Lamento (e odeio)
que se tenham inventado ismos.

#115

Os cinco sentidos
não ajudam à inteligibilidade das coisas
(ou desajudam à sua inteligibilidade;
o que não vai dar ao mesmo).

21.12.16

Cinzeiro

Uma diligência no oráculo
uma vírgula fora do lugar
a barba fonte de vernáculo
e a roseira sem vagar.

Uma especulação vulgarizada
uma semântica bombardeira
a face fria e vaporizada
e a camélia em viço e costureira.  

Uma clepsidra do avesso
uma exclamação a despropósito
a nuca com olhos de gesso
e a esteva com sabre compósito.

Uma mãe-de-água duradoura
uma frase esboçada a preceito
a orelha patrona da audição dura
e a acácia que desce até ao peito.

20.12.16

#114

A carne que atormenta,
a quente carne nas mãos,
e um vulcão efervescente
à espera de uma centelha. 

Equinócio

Que beijos sábios
enfeitam o meu peito?
Que mãos suadas
se entretecem no meu corpo?
Que olhos fundos
indagam minhas estrelas?
Que cálice poente
aquece o meu devir?
Que luar candente
anoitece o meu lugar?
Que poema ávido
empresta sossego ao meu ser?
Que manhã precoce
tira freio ao desejo?