9.3.17

Legado

Não era meu o caderno de encargos
nem minhas as empreitadas
ditadas em estiradores outros,
pois dessas mãos não era eu arquiteto.
Não quis adivinhas mendazes
nem toleimas (quem sabe?) algozes
nem a transgressão só por o ser.
Houve alturas
em que só sabia o que não queria
e do demais não tinha como saber.
Do vento à volta
recolhi o sal bastante para um devir
e de volta à sementeira devolvi a alma
fruída
lavada
acesa.
Sabia que o tempo é um ardil
e os relógios compostos na linha do horizonte
emprestam ao olhar uma distração
o seu gasto lugar-tenente
um fogo sem chama
como se o dia fosse ártico em invernia
e a noite monopólio castrador.
Diz-se
que todos sabemos um módico
um singelo saber
pertença de um conhecimento humilde,
as proezas às mitológicas personagens
que julgam não caber dentro do tamanho seu.
Quis-me,
propositadamente,
meão,
a anatomia de um anonimato perpétuo
uma voz quase em silêncio
as palavras deixadas em segredo
num murmúrio que nem os pássaros ouviam
e, todavia,
era a antítese da letargia.
Deixei-me passar a fronteira
entre o dia que foi eflúvio
e o dia que era promitente
uma aurora que sabia não ser boreal
um entardecer que não estendia o fio de luz
a calmaria profunda, estrutural,
que removia as hastes dos arbustos corpóreos.
Dei comigo
em lugares distantes
sem saber como neles aportei.
Dei comigo
a fazer juras incobráveis
em coreografias rivais com o medo dos deuses
sem o temor das enfurecidas superstições
sem a erudição dos eruditos que de tudo sabem
menos a morada dos diabos à solta.
Arranjei as árvores decadentes
semeei os beijos ternurentos
dei guarida
às preces condoídas que não eram minhas
tirei escala ao despojamento dos arbítrios
na feérica lantejoula que pousou no meu ombro
entre lágrimas do avesso
e um amplexo demorado a quem fosse dele credor.
Nunca soube a cor das cadeiras sentadas
nem quis saber o sabor das palavras explosão
(em constantes devaneios da alma)
não soube terçar remorsos sem serventia
não pude travar a mentira servil
nada pude contra os fautores da infâmia.
Fui prisioneiro de vícios mentais
à falta dos outros,
terrenos e mundanos
(assim o dizem).
Escrevi o vinho florestado
nas estreitas estradas dos campos escarpados
sob o olhar de atónitos aldeões envelhecidos
e a bênção
dos esteios de xisto que amparavam as vinhas
no palco dos socalcos amaciados,
as minhas mãos como batuta.
Estive errado
no lado contrário do tempo gentio
no raiar mestiço de dias sem cor
nas páginas sem sentido
nas páginas depois amarrotadas
no extemporâneo estuário em forma de leito
no regaço demandado
em febril constelação do desamparo.
Terrivelmente mortal
(até para o meu gosto)
levo o império do mundo
na companhia da alma em êxtase.
Não trago o passado comigo
nem envergo os trajes do devir
pois do devir tenho espera marcada
à medida das águas serenas de um rio acalmado.
Os relógios estão à espera.
E eu
contemplando a linha divisória do horizonte
no palco de um miradouro escondido
espero.   

#155

E de um sopro só
vigilante sobre a imensidão do nada
em latitudes ao acaso
atirei o corpo sobre bojadores sem mapa. 

8.3.17

Véspera

De véspera
onde a roupa cintada ainda serve
depois dos engodos pueris
depois das ruas malquistas.
Congraço as teias ainda húmidas
no tojo recolhido nos montes altos
e dedico ao devir páginas e páginas
ousadas
pretensiosas (talvez)
silenciosas.
Sorrio ao chão que os pés abraçam:
dizem que é fruição que não se abjura
ou talvez
os deuses irados mutilem o tempo 
em sua serventia.
Dizem
que devemos respeito às divindades
aos cultores de uma ordem estabelecida
ao mar ameno por onde nos é dado marear.
Não dizem
que capitulamos no imperativo respeito 
sem direito a interrogações
sob a mácula da admoestação temerosa
e da humilhação por dissidência 
sujeita a vitupério.
Eu quero
que as vésperas sejam faustosas
que delas verta o doce vinho
sobre cálices formidáveis
que nelas se deitem os tumultos todos
sem direito a repristinação.
Quero
que das vésperas se soerguem
os rudimentos inteiros
e por dentro do tempo vivido
se junte sob os pés a personificação perfeita
que sobrepuja os contratempos.

#154

Digam às mentiras do tempo
que elas se excedem no palco gasto
e deixam para trás loucura coalhada.

7.3.17

Vela de prata

A vela do navio por mim adestrada
rompia o vento e as marés
dentro de um casulo amuralhado.

Via-me marinheiro
nos mares todos
os conhecidos
e os que inventasse
sob a condição
de o sextante ser mapa sem segredos.

Marinheiro, eu
apostando com as ondas do mar
tirando a justa recompensa de cais esporádicos
apostado em ir
até onde o mundo tivesse fim
para provar que fim não tinha.

As gotas dos mares
em seus sabores almiscarados
esmagando-se em meu rosto sedento
tutoras dos lugares desarvorados.

Não era certa a data do regresso.
Não era certo o regresso.

Queria lá saber:
no dote pujante dos mares demandados
sabia nascer os dias todos
penhor das pedras preciosas
escondidas no avesso das mãos.

O segredo
afinal
estava embutido
no leme da nau sob minhas mãos.

#153

No coldre vazio
do desembaraço da lua anestesiada
a rua inteira medra
a partir da minha janela aberta. 

6.3.17

Danos colaterais

Arrancadas as páginas do calendário
com o ímpeto de um sultão
sobrava no enquadramento do olhar
a planície gasta,
despida de vegetação,
a problemática embocadura do tempo
o lugar onde os navios sem gente
demandavam sepultura
sem o escandaloso estertor dos calendários
e da sua finitude. 

As espadas sem rosto
subiam no dorso ressentido dos anciãos. 
Também não importava. 
As águas lacustres,
émulo da inércia vetusta
que os anciãos traziam ao regaço,
eram a perfeita esquadria do lugar. 

Por mais que olhasse em redor
os olhos só conseguiam estimar
velhos que pareciam monopólio local. 

A interrogação 
(pungente)
esbarrou no peito inquieto:
se já não havia naquele lugar
se não vetusta gente,
e em encontrando-me no lugar descrito,
teria a provecta idade tomado conta de mim
sem o meu consentimento?

(E deixaria de ser função minha
arrancar as folhas ao calendário.)

#152

Março aberto numa rosa
não murcha no caule fértil
nem dorme na congeminação
da primavera. 

5.3.17

Dúzia

A mão tremeluzente
deitada sobre a mesa gasta
sobre a luz desmaiada
e o ar pesado,
húmido
as gotículas varrendo o rosto cansado
e os olhos levantados
derrotando a prostração que se firma
e as janelas embaciadas
guardando para dentro 
os vestígios aí congeminados. 
Os alinhavos da fonte fria
ajudam a desenlaçar os nós teimosos
e o vinho sobe à boca,
em consagração festiva.

4.3.17

Os nomes

Não digo
o que dizem os nomes
entre a espuma do mar
e o escafandro da tempestade. 

Não sei
se os nomes se atiram de frente
contra o cais ferido pelo mar iracundo,
ou se descansam em seu manto liso. 

Não quero
que os nomes se enfeitem
no desassossego perpétuo
e sejam equívocos num palco sem chão. 

Os nomes 
narram os vestígios de peito aberto
e são lembramos como selos perpétuos
na roda viva,
imparável. 

#151

Isto não é um corpo
é saliva transfigurada
uma sede crepuscular
um corpo
isto é. 

3.3.17

#150

Pedi ao anjo
as asas estouvadas
e metia-as nas traves
da imperfeição sem siso.

Calibragem

Por dentro das lágrimas contidas
as mãos gritam nas pedras detidas
e juram miradouros iluminados.
Tementes
imberbes viandantes do acaso
leem páginas desfraldadas
enquanto ciladas se preparam.
Não importam os vãos de escada
onde as coisas se preparam.
Não importam os arbustos ralos
à exata medida de encenações bastardas.
As páginas continuam a esvoaçar
e das palavras retidas
apre(e)nde-se o sumo do mundo.

2.3.17

Três dedos de conversa

Tinham razão
os druidas modernos:
queriam arredondar os números
pois deles sobravam demónios inteiros
em corpos primos.

Tinham razão
os melómanos inveterados
o silêncio só cansa os ouvidos destreinados.

E, contudo,
nos mapas antigos
com os limites algo impuros
e sem o tirocínio do GPS
fruía a estética dos sinais
contra a heresia dos turistas.
As guitarras com sons selvagens
arranhando os ouvidos impreparados
desenhavam as paisagens
enquanto o pensamento se entretinha
à escuta.

Talvez sejamos
sem saber
druidas
melómanos
turistas
e, quem sabe,
tenhamos um pouco de geógrafos.

Por junto
e nas areias limítrofes
arranjamos a lenha molhada
contra os penhores dos tempos ancestrais.

#149

Abreviem-se as penumbras
as fronteiras escombros
os temores algozes:
a vontade fortaleza tudo desimpede. 

1.3.17

Império

O contraste lunar nas costas nuas
no dobrar quimérico
nas mãos aquecidas
nas lágrimas viradas do avesso
um rosto cinzelado nas ruínas do prazer
no inconfessável mar proibido
nas rodas dentadas que não se aquietam
e na promessa de um amanhã igual
(pelo menos),
os retrocessos vedados no vocabulário.
Ah!
sobra nas esquinas de mim
aquele mel sem cor
o mariscado néon vertido pela lua-império
a alvura de tudo misturando-se com tudo
na sublime ênfase da soberana vontade nossa.
Escrevemos no ar,
com os dedos entrelaçados
em movimento contínuo,
as estrofes que são o sortilégio nosso
as camas testemunhas
os olhares singulares
os esteios arpoados
a saliva sentida,
quente
as roupas sem corpo
e o corpo que pede meças ao corpo sua metade.
Oxalá sejam intemporais
os vestígios de loucura
as baias que se desfazem no sargaço colhido
a entronização do que somos,
soberanos.
Se contarem com o vento púrpura
adornado pelos nossos lábios
como jogamos os braços numa coreografia
e da varanda sobranceira
guardamos os segredos,
o nosso desmedido património.
Misturam-se os cabelos
com a porosa teia do mar.
Somos o forro do tempo
a caução cantada no imorredoiro cabaz
que trazemos a tiracolo
no céu uníssono que desenhamos
com as mãos insaciáveis.
Somos o forro do tempo
sem esquecer de o consagrar
às divindades que residem em nós
– às divindades que somos nós.
Somos tutores da manhã ampla
dos marcos geodésicos a que subimos
das nuvens que apascentamos desde o vértice
com a chuva à mão de semear.
E de um porvir que não leva fim.

#148

Deito o corpo ao vento
e o leve sussurro da alma
desdiz o precipício.

Desorgulho

No insaciável anseio
de os olhos cobrirem a maior parcela das coisas
debati-me com o sufrágio da utilidade. 
Seria uma ambição 
(por assim dizer)
ufana
o narcísico poder de ostentar
a usura das muitas paragens demandadas
– ou de como o vento preso nas mãos
transborda num imenso nada. 

(Como os aspirantes a eruditos
esbracejam erudição de almanaque
só para apoucarem os demais
e se elevarem a um púlpito
de onde os olham com sobranceria.)

Talvez sejam bastantes as metáforas
o encadeamento dos materiais entrelaçados,
já sem possibilidade de os distinguir,
a jeito dos olhos todos
que por junto
não são desafiados ao desconhecimento. 
A tirania do orgulho
projeta na tela amarelecida
a fragilidade dos imberbes
dos que não se contêm dentro dos seus limites
(porque neles despertencem)
e atiram para o estirador dos outros
as cores que nem eles sabem ter uso. 

Admita-se:
dos males maiores
o garbo das proezas
para consumo exterior dos seus fautores. 

(E daqui já se descontam
as proezas dos mitómanos
sem emenda).

28.2.17

Aprendizagem 

O esporão desencavilhado
o eremita sem sono
no derramado copo de cultura
evita o levitar das janelas frágeis. 
Quase todos os dias
um equânime sorriso
efervesce a discreta generosidade
e o eremita sentencia-se à sua anulação
à axial contrafação dos indultos projetados
para fora das suas fronteiras
ao passo que em si usa uma espada
que o trespassa sem verter sangue. 
A rosácea aberta
com o favor do sol que sobre ela se arqueja
desmente as piores modulações das coisas
os arautos das pontiagudas pedras
que esperam pés desprevenidos
numa laceração vicentina. 
Às vezes
o eremita não se contenta com a espada astuta. 
Desembainha as esporas afiadas
para o caso de não ser bastante a penitência.
Inglória aventura:
as lágrimas são fonte seca
e as dores 
imigraram do dicionário dos sentidos. 
Depois
tudo fica com uma clarividência estrelar:
desprendem-se os nós verdugos
os que desembolsaram
o capital social da inquietação
os que tiveram cobertura de demónios sonhados
em perfeita arritmia dos sentidos
como quem atira areia para os olhos
só para mascarar os palcos 
que interessa esconder. 
Não há proveito nas estações desapiedadas. 
Não colhem os frutos podres
nem o amargo veneno em nota de rodapé. 
O eremita não é (eremita). 
Tem andado ao engano
apoderado por um papel que lhe meteram
entre duas distrações cósmicas. 
Agora
o eremita tem de aprender
(a não ser eremita). 

#147

A vertigem derrotada
e tudo 
com as mãos recolhendo
a haste antes do ocaso. 

27.2.17

#146

Os promitentes dos apocalipses
e o seu concubinato com a melancolia 
na exata medida do amor do mundo.  

Naufrágio

Visto do naufrágio
e vistas as ausentes boias de salvação
sobrava mar de mais
e nadar.
Frias as águas
e tempestuosas
sinal da empreitada abruptamente
impossível.

Os braços não capitularam.
Passaram
a meio da tempestade
as frugais imagens em rol de memórias
alguns arrependimentos
um punhado de proezas
orgulho reprimido
a infatigável perseverança na espécie
os rumores das cinzas imprestáveis
o fogo que se emaciava no penhor das forças
e todo o musgo dos sonhos.

Os braços não capitularam.
Sentia o estrépito das ondas no rosto
constantemente esbofeteado
como quem se desforra do pretérito
em havendo contas por saldar.

Uma centelha esbracejava
no que parecia ser ao longe
entre as bofetadas de mar
e os levantamentos do vento indomável.
Podia ser um farol.
Um navio em socorro.

Não era
(ainda)
tempo para capitular.

26.2.17

Margem

De que adianta a epistolar vénia
se o chão é todo pútrido
se as margens escondidas
escondem sempre o mesmo
assim que são franqueadas?
Deixem o vernáculo no estábulo
os amofinamentos em seus perecimentos
as colheitas sem suas maleitas.
Olhar hirto
em frente
sem decair, nunca,
pois ajuramentámos a nossa, a maior,
dignidade.
Os dedos delgados não esfriam
enquanto escrevem epitáfios perenes.
Das raízes da água
em momento de tonitruante inspiração
agasalhos que não temem a imersão.
Venham as águas
por mais frias que sejam
que já temos descrédito talhado à medida.

25.2.17

Manutenção

O invisível lírio
estabelecido
hasteia o frémito sentido
na flor quente da carne
a fórmula reinventada do desejo
contra as crisálidas apodrecidas
sentadas às janelas sem cortinas.