3.6.17

Notícias manifestamente exageradas

Não sei
que batuta
orquestrou as vontades.
Não sei
por que opúsculo
levitam as notícias trazidas à pública praça,
nem por que escondidos púlpitos
terçaram suas observações.
Não sei
que crédito merecem pitonisas
arcaicamente
contumazmente
intencionalmente
mitómanas.
Não sei
das costuras
dos que se põem de cócoras
(concedo, em generosidade minha:
sem darem conta)
e bolçam desconhecimento
sobre vidas não suas.
Ainda estou para ter entendimento
sobre as vetustas incapacidades
dos inscientes que dão palco
a estes trovadores que apostrofam
vidas não suas.
Parece um imenso palco
onde se jogam
os ardis de quem de si foge
e se refugia nas
(assim supostas)
apoquentações atiradas para os contrafortes
que são o inferno dos outros,
os outros.
Como se os outros
que vidas outras sentenciam
fossem paradigmas de coisa alguma
em não passando de atores
na desarte de não conseguirem ser
personagens de si mesmos.
Quando as águas chegam às mãos
são águas impuras
fétidas
um logro onde os tiranetes
que se abespinham pelos pecadilhos outros
se despem do que são
na vergonha indizível de serem o que são
deixando à mostra,
depois do verniz destronado,
a decadência de um absoluto vazio.

#216

No recorte do vidro
a penumbra da areia
e o sibilar, em surdina,
do navio mercante.

2.6.17

#215

Daquela medida
rasa
em que cem lágrimas
se articulam,
uma vasa. 

Latitude

Os olhos vendados
adormecem vizinhos da buganvília centrípeta.
As costas viradas na horizontal
deitadas depois na cama de jardim
vedam as sobrancelhas gastas
que vigiam a polinização do pretérito.
Esgaçam-se olhares recolhidos
no justo avesso das mãos ávidas
e a fina usura do tempo
é medida do trespasse admirado.
Não haverá levas iguais
no desabotoar dos segredos.
Nem os segredos divergem
enquanto ficarem segredos.
É por isso que os olhos se embaciam:
não são guturais desejos
que crestam no fogo persistente
de fogueiras venais.
Os olhos
preferem continuar vendados.

1.6.17

#214

For ages
drawing waves within
drowning into the reckless sea.

Medo

De onde chegam
as nuvens que se deitam
sobre o olhar vencido?
Punhais sem mão
bustos em demanda de rosto
serpentes afiveladas
uma corda-garrote atando o pescoço
um teto feito de água
apneia
ósculos de gente-pesadelo
montra com cadáveres para comer
grotescos artistas
o corpo nu na rua
sumidades impantes
madraços suplicando boçalidade
eruditos a braços com estorvos na escrita
o ridículo
velhos curandeiros de sotaina
novos curandeiros sem sotaina
deserto
divindades com mácula
preces
sangue a sair das veias notórias:
medos.
E o medo de ter medo
nos estouvados labéus
labirintos só com porta de entrada
precipícios sem aviso
nevoeiro no quarto
chão sem chão
e o avesso dos medos;
medos ainda
um polvo disforme
tentáculos a perder de vista
em asfixia dos sentidos.
Sem saber
se é pesadelo,
apenas
ou medo tangível
locupletando a lucidez
tornada contumaz.

31.5.17

#213

Atirei para depois de amanhã
o coldre da sentença,
na contrafação da audácia.

Retrospetiva

Corríamos
contra os corrimões
emaciados do tempo.

Atirávamos
os corpos sem sentido
contra os paredões da loucura.

Atravessávamos
as ruas vidradas
no desencontro das luzes.

E sabíamos
jogando as mãos contra paredes
do luto transversal que não incomodava
das proezas avocadas em logros
da angústia do vazio
trespassando o sono em contínuas sessões.

Fomos
sem termos noção das estradas andadas
sem sermos reféns
a não ser
de nós mesmos.

Andámos
no sargaço ao acaso
nas ondas e marés que se compunham
graças aos dedos salgados
e à indomável estrutura da vontade.

Hoje
em retrospetiva
ao menos
sabemos disso tudo.

30.5.17

Oásis

A moldura serviçal
dando peso aos braços desamparados
esteriliza os parafusos
que embaciam o pensamento.
No próprio pesar
onde se contrariam demónios
pedras angulares
e outros improfícuos algozes
embelezo as chaves urdidas
e empresto
com tamanho ato
a beleza maior à casa habitada.
Abrem-se as janelas
e o vento fica de fora
como de fora fica
a chuva campestre;
de dentro
e por dentro do composto quimérico
de que são feitas as mãos
arqueia-se a vontade sobre o corpo transido
e a fome inteira
a fome contumaz
não oblitera a vontade.
Oxalá
de noite tudo viesse à planura dos olhos
e as palavras fossem todas férteis
ciciadas em segredo
entre os lençóis aquecidos
a rosácea do rosto cansado
as unhas dedilhadas com o suor sobrante
o coração desimpedido
no cabaz macio do amor sem data.
E a inteireza sobe à tona
quando aos oxalás
se achou louvor.   

29.5.17

Grisalho

A faca não ensanguentada
o sol espevitado na sombra telúrica
um código anacrónico
o fumo estival
(cuspido por um vulcão reavivado)
as beldades timoratas
os cães no telhado
a lua que emerge do fundo do poço
o sangue aplacado
as avenidas atravessadas no silêncio
projetos arrumados no sótão da memória
a desmemória amontoada no miradouro
um padre escolhido para desmentidos
as lágrimas enxutas
os xailes espalhados junto das cinzas
as ruínas alevantadas
os madraços colhendo frutos
uma buzina ininterrupta
(forja o engodo dos desalmados)
um batel sisudo entorpece as águas
as fontes trémulas povoam sonhos
e os fins que não têm chão próprio
num terreiro sem sepulturas
sem fins a preceito
sem fim
no fim.

#212

Sangue fundente.
O festim da noite
Pele mestiça nas bainhas da loucura.  

28.5.17

#211

Uma âncora ao lastro
no fundear seguro
as mãos já não
no escorregadio musgo.

27.5.17

Tinta permanente

Pele lavada
que demanda congosta
na ímpia desconstrução banal
deita-se nua
sob o efeito da lua empedernida
na estufa maior 
no jardim da transumância. 
As palavras dedilhadas com vagar
(pois no oráculo do tempo
o vagar ganhou um trono)
desenham-se na planície do corpo
percorrendo sua alvura imperial
como se o corpo
estivesse à espera de ser caiado. 
Um astuto arco-íris 
embebido nos poros 
mapa prístino da peregrinação andada
numa iridescência inflamada
arrefecido na tinta permanente. 

26.5.17

#210

Trespassada a penumbra funda
voei sobre a árvore centrípeta
as mãos ungidas com o ouro escondido.

Última vez

Dizem:
“há sempre uma primeira vez”.
E poucos notam
que em tantas vezes
há uma vez que é última.
O segredo
(quase uma impossibilidade)
é perpetuar a última vez
de cada vez que acontece.
Para desmentirmos as impossibilidades.

25.5.17

#209

Scattered sea 
above the void of decay 
blossoming undevoted pearls
under bedrock skies. 

Dança com o Japão

Em perfeita negação da obsolescência
tirava à sorte
entre os dedos de uma mão
o critério banal da leviandade.
Tinha de dançar com o Japão
e as noites baças não seriam estorvo
nem a despropensão para a coreografia.
À medida que o vento vindicava presença
e as espadas hirsutas mugiam a fuligem
os cálculos dos argonautas eram a baliza
dentro das limitações da sua matemática.
Contudo
deixei os sapatos no hotel vidrado
e fiz notar
que não sabia que eram precisos
para dançar com o Japão.
Prometeram-me engenhos pirotécnicos
festejos a preceito
uma homenagem em caso de coreografia
medalhas e tudo.
Foi quando fiz de conta
ter-me esquecido,
ao acaso,
em perfeito exercício de inocência fraudulenta,
dos sapatos amestrados.
Não dancei com o Japão
(nem com ninguém)
nem comendas trouxe em resposta.
Dormi como quis
o sono sopesado dos anónimos.

#208

Chaves perdidas
num fundo sem fundo
e as preces agitam-se
na personagem que vem
debaixo do nevoeiro. 

24.5.17

Diálise

Línguas agastadas
lançam o opróbrio
contra quem agita as águas mansas
com a rebeldia indomável.
Apertam o jugular ao tempo canhoto
sem os sais puros em dívida
sem os pais incertos do enxovalho
sem sequer saberem olhar de frente.
Línguas desapalavradas
no ruído das palavras venais
onde devia medrar o musgo do silêncio
sem supor o tiranete festim
de tirar palavra aos diletos seguidores
dos circenses pederastas.
Ah!
A toleima arregimenta-se
contra a lua verbena
contra iracundos mestres canhestros
contra as contrariedades que deslaçam
o poiso fértil das divindades;

contra tudo o que seja contra.

Oxalá
pudessem mudar de olhos
pudessem saber de cor a cor das palavras
sem o baço buço que as deslustra
sem os ramos pútridos que apodrecem árvores
sem as arcas sombrias
ou os anagramas da impiedade.
À espera de vez
os imorredoiros sacerdotes
arrastam a ossatura em prebendas vãs
que outros de semelhante jaez
se oferecem reciprocamente.

Um holofote fundido
é fiel capaz
no meio de tanto deserto.

#207

Perguntou-lhe
o que é a sombra da dúvida. 
Disse:
uma certeza
ou um eufemismo. 

23.5.17

Tendência

Depois de amanhã.
No casual desencontro com a história
fiquei de cerzir as costuras do tempo
sem o medo capataz que o consome.

Não foi adiamento.

Fiquei à espera de oportunidade loquaz
em vez de apressar os sentidos
contra o estrepitoso acidente em contramão.
Contra os sapatos gastos
movi as influências que pude:
deitei fora
vitupérios constantes
o embaraço dos outros
torres de marfim destituídas
um compasso datado
o perfunctório mergulho no poço perdido.
A lisura da lua acesa
disse
que não podia adiar o adiamento.

Se os mastins esfaimados não se importunassem
com a míngua desassisada
as veias teriam resgate ao seu sobressalto
e eu podia arregimentar um módico de planura
entre o alcantilado das serranias bravas.

Tropeço em pedras venais
e, todavia, não mercadas.

Não perco o prumo.

Contra as marés dominantes
levanto o mastro ufano
de quem não esconde feitos havidos.
Já ensinam as vozes avisadas:
a falsa humildade é a grotesca vaidade
onde tudo se consome num estertor inadiável.

Depois de amanhã
ainda vai a tempo.

#206

Princípio geral da precaução:
a melhor profecia
é a que não tem confirmação. 

22.5.17

Equador

As palavras mudas
as palavras mudam.
Tenho a dizer
à sintomática audiência sentada
e à que se encontra de pé
que dos armários do mundo
sobejam umas migalhas de ouro
autêntico arquétipo
da fortuna que a ninguém interessa.

Mudas, as palavras
mudam as palavras
com a muda do tempo.
Tenho a desdizer
de cima do palco encardido
que um punhado de gente se assenhoreia
das ruas inteiras
dos segredos que se especulam
e que atiram penumbra para cima do sol.

Mudam as palavras mudas
e o ruído com que enfeitam os quadros
é o desenho protestado em rimas sucessivas
sem o incómodo do amanhã.
Documentadas as existências efémeras
abdico do sangue fundo
e trago ao de cima
a volúvel bandeira sem cor
contra os bastardos consumados
e as vozes guturais que aparecem no vazio.

Mudas as palavras que mudam
na judiciosa prisão
dos fantasmas desenganados.

Muda a muda do resto
no opúsculo contrariado
contra os remos quebrados
que esbarram nas águas mortiças.

#205

Peito feito
nos despojos da madrugada
dando ao marejar dos olhos
cor em rima perfeita. 

21.5.17

Prescrição

Neste lugar 
sem pressa
é destino arrumar
a insónia avessa. 

Professo pensar
no armário singelo
enquanto se armar
o país amarelo. 

Amiúde um ciciar
com rosto a orvalhar
desengata o pesar
e cavalga num novo lugar.

Sem redenção
um assalto estulto
nos contrafortes da quitação
de cujo autor se sabe um vulto.

20.5.17

Casa grande

Abotoo o sono,
ancorado às promessas diuturnas,
arranco aos ossos a matéria centrípeta
e alinho com o caudal do dia.
As raízes secas
corroem o ar húmido a destempo
e não se sabe
quando chega o entardecer.
De memória, tenho nos bolsos
o tesouro datado
o frio por dentro do Verão
o ronronar de um gato
o rio nascente
e o apetite ávido pelas paisagens
onde cresce o desejo pelo mundo.