20.7.17

Basalto

A lente gasta
trava o olhar. 
Nem a impaciência
murmura as dores rudimentares
na varanda do baço conhecimento. 

Pedras no sapato,
diriam os ainda penhores da lucidez
não fosse a lucidez impossível
por furtivas contrariedades à vontade. 

Qual foi o pretérito equinócio
que acendeu as contrariedades?
A lente gasta
profundamente baça
quase como se jogasse à cabra cega. 
Qual foi o pretérito equinócio
que contraiu a lente baça?
Um enigma 
mal disfarçado de enigma:
à falta de miopia
as lentes precisas não são. 
Sem lentes para repousar o olhar
qual o pretérito equinócio
que arregimenta o caos assim ungido?

A falta de vontade
ou
os olhos embaraçados pela vetusta acrimónia
ou
os olhos desembaraçados das vulgatas de antanho
ou 
a folhagem desprendida da tempestade
atirando areia aos olhos
assim já não ancorados. 

Sem os néctares por companhia
hipotecado por uma cegueira estulta
atira os papéis sem serventia
para a fogueira que empresta luz. 
Há um cansaço que se adia
pelo tempo fora
uma falsa valsa sem coreógrafo
o fastio de barriga cheia
a maré das contrariedades depostas
a maré das contradições em ebulição.

Já não repousam os olhos
sob a lente indulgente:
dessa carestia não padecem
resplandecentes
ufanos
humildes pescadores
no mar imenso sem horizonte à vista.

#261

A partida temente
hemisfério sem vidro
no ónus dos leões esfaimados. 

19.7.17

#260

Abraço os despojos
no derramamento do avesso
em pérgulas vertidas sobre o mar.

TNT

Amotinado
no escol bastardo
do batel insaciável
confirmo o imarcescível.
A escotilha sem fundo
não é lastro confiável.
A escotilha sem fundo
não aprova método confiável
e os nervos fundem-se
no lagar lânguido onde passam
paisagens bucólicas
vinhedos metodicamente erguidos
longos cabelos femininos
saciando o faminto desejo
sapatos seráficos
e povoados sem gente,
perdidos na história do tempo.
Os freios à volta
esbracejam
enxotados pelo amotinado pensamento.
As paredes vítreas
consomem a lenta combustão venal.
Agora
no estremunhado entardecer
olho à volta
e as pessoas soam todas
a alquimia.

#259

Espada embainhada:
do visceral sangue
palidez e senescência.

18.7.17

#258

No vagar
desta interminável farsa
somos ramos desprendidos
ao acaso da maré.

Desemparedado

Deixei desapalavradas
as juras mortiças.
Ajustei à cintura
os vulgos destronados
da vulgata do tempo.
Dei por mim
prisoneiro de um céu terreno
no atribulado leito de um sonho
desmedido.

Sem saber
(ou porventura não)
desalinhei os despojos
os estados de desalma
as purificações infecundas
as juras mortiças.
Desapalavradas as certezas
sobrou a clareza do nada
e nesse altar desordenado
medrou o que de mim veio ao luar.

Não cobro os juros pretéritos
nem sou penhor de aforros vindouros.
O vinho astuto contenta-me
na improvável aposta com os demónios
na liquefeita demanda dos nefelibatas
sem ter domínio das alcáçovas porfiadas
ou desenhar os limites das juras
entretanto mortiças.

Há um clarão ao longe
que perdura num pedaço da noite:
quem sabe
do clarão vêm devolvidas as palavras
do que dantes foi desapalavrado
ou palavras outras
hino sem ser alçapão
estrofe impregnada do ouro vivaz
balsa atirada ao mar em convulsões
para a redenção sem motivo aparente. 

17.7.17

#257

Falava sozinho
o asceta:
era como um cavaleiro galante
mas sem cavalo.

Símbolo

Carrossel avariado
coisa nenhuma no chapéu assombrado
oxalá as virtudes no chá coalhado
deixassem de remoer no baú amarelado.

Loucura vertida
no sopé da manhã desajustada
oxalá cantos em estrofe macerada
vertessem ninhos em saia destravada.

Rio arejado
margens robustas em tijolo arrimado
oxalá as barcas em vinho estouvado
remassem no lastro encaminhado.

Cadeira descaída
guitarra compulsada na tarde esvaída
oxalá gaiatos em palavra contraída
ensinassem os remoinhos em suposição traída.

No palco congeminado
atrizes bondosas em passo apressado
oxalá num desejo desatinado
amaciassem os cardos em espigar atrasado.

Na certeza desembainhada
marca nunca dantes registada
oxalá os dentes na palavra jurada
trouxessem enciclopédia jamais arroteada.

#256

Do eu tão virado
para dentro de si mesmo
que no seu avesso
só conhecia o eu conhecido.

16.7.17

Escuta

Ouço o sonho,
sentinela. 
Ouço
o murmúrio em volta
de um velho doente
e as gaivotas aparatosas
as mais predadoras de todos. 
Ouço vultos
na triagem da noite
e os livros desaparecidos
em lamentos guturais
que parecem chegar de um jardim
deserto. 
Ouço
as rodas inteiras da alma
a soma capaz dos estreantes
a inocência das crianças efusivas
a corda bamba nas mãos do artesão
um circo apreendido
missas negras em reforço das lides
um casaco sem corpo
ordenhando as lisas lágrimas dos arcaicos. 

Rogo

A viagem isenta
os mapas perdidos
sem o hálito pesado
dos armários passados
nem o hábito irritante
da certeza do devir.
O nevoeiro atrasa o olhar
em sua demanda precocemente
inquisitorial:
a viagem
é um destino que colhe
sortílego adiamento,
o adiamento do destino.
Saltimbanco
se faz o viajante
no coabitar dos desejos nos seus 
deslimites.

15.7.17

#255

Braço de ferro
entre o estoico e o hedonista:
alvíssaras à modernidade.

14.7.17

#254

Se não fosse 
a usura do tempo
dir-se-ia que o corpo se resgatara. 

#253

Se não fosse 
a usura do corpo 
dir-se-ia que o tempo não vingou. 

Ermo

No ermo
não se rasgavam páginas
só porque uma vivalma passeava diferença.
Não havia tutores de ergástulos
vindicando um saber sem refutação
indispondo-se com perguntas. 
Nesse ermo lugar
provavelmente
as pessoas dormiam de dia. 
Saltavam infantilmente à corda
no imorredoiro,
e também pueril,
sorriso sem cortinas. 
Sendo ermo o lugar
a nudez não era vergonha. 
O sexo,
banal
(sem ser depreciativo)
obnubilados os esgares de reprovação
na ausência de códigos de conduta
e de quem os apascentava
numa totalitária impureza. 
No ermo 
onde as pessoas depositavam seus sonhos
o chão não tinha esteios
e do céu sem nuvens vertia-se chuva. 
O ermo lugar
era destino dos sonhos
um palco etéreo com vozes a preceito
palavras estrelares
bondade intrínseca
a que nem se chamava bondade
chapéus garridos dando amparo dos demónios 
um lugar frágil,
contudo,
dentro de uma redoma,
onde o giz lapidar era dado sem distinções
e onde não havia mandantes. 
Os ermos lugares
habitam nos sonhos
que, 
por o serem,
são o coldre desassisado de lugares ermos. 

13.7.17

#252

Pudéssemos mudar de olhos
e as coisas que vemos
na sua mesmice
eram trespassadas pelo mesmo olhar?

Invasores

Conquistado o dorso de castelo
já não suas muralhas
indiviso território.

Os profanos riem-se
com a generosidade dos iconoclastas
em seu cio contra deísmos atávicos.
Não sabem
os profanos em sua sobranceria
que podem os deuses
ser ilusão vertida
no pensamento fácil dos prosélitos
mas é sempre devido
o devido manto de esguardo
pelas crenças outras.

Dentro do castelo
experimentam os néctares desconhecidos
os sonhos inexperimentados
as medidas julgadas impossíveis
vários impossíveis.
É a prova dos nove,
dizem
vitoriosos
os profanos invasores.
Adestram invasão sem armas
invasão permitida pelos aldeões:
pode dar-se o caso
de os invasores saldarem a invasão
com a noção de terem sido eles
os invadidos.

É a prova dos nove,
advertem,
alarmados,
os mais desconfiados entre os profanos
com os braços caídos dos aldeões,
não seja a invasão
o ardil dos invadidos
para virarem o jogo do avesso
– e sem terçarem uma arma sequer.

Desta prova dos nove
ninguém tem oráculo.

Os profanos
em sendo possível prevenir
a escala indesejável da invasão
teriam preferido a inércia
(enquistando a heresia do ateísmo)
ou ousariam
o risco de serem convertidos
pelos deístas invadidos?

#251

Estimo os luares sondados
que sobrepõem dia
às densas cortinas da noite. 

12.7.17

Apostilha

Nada
no baço desarticular do fumo
no cigarro madraço
aceso
sem o nada por haver
entre as cortinas onde o tudo se esconde.

Tinha as medidas
no tempo em surdina
e os olhos eram a maresia
à espera de um miradouro a preceito.

Dizia:
quero o tojo a enfeitar a pedra chã
os peixes voadores em explosão cinética
uma constelação de palavras sobrepostas
uma chamada murmurada entre as paredes dúbias
o diálogo enroupado
chapéus datados, aformoseados
lugares terraplanados no templo das ilusões
logros acomodados nas esquinas sem sombra.

Nada digo
aos prazos diuturnos
aos deveres sem caução
aos propósitos inverosímeis
à mortalha onde medra a desconfiança
à palavra adeus no seu apocalipse
à noite medonha com medo de ser branca
aos vultos resgatados de um poço seco
aos fantasmas transbordados dos panos gastos
às intempéries boçais
aos deselegantes apóstolos das palavras banais.

Imperativo sem par
é o desligar a ficha da corrente
e povoar as imagens diante dos olhos
com os ingredientes da alquimia feita
com o ouro mágico ungido dos dedos.

#250

Lábios abastados
na combustão dos beijos fartos
a sementeira fértil de que somos
artesãos. 

11.7.17

#249

Toca-me com a tua voz
cobre-me
com a haste desfalecida
de uma alma cheia.

Senha

Se a lava do vulcão
cobrisse o ouro calçado
e a avareza
não fosse se não um pesadelo
os medos afivelados em salas fechadas
e os trovões já não medonhos,
apenas uma centelha aparatosa.

Mas o jogo não apetece
na sua funesta função:
o vulcão já não está adormecido
e os deuses
(ou o que deles sobra)
castigam os lugares
com sua iracunda cinza iridescente.

O sol sem céu
perdeu pergaminhos
e as pessoas já não sabem sorrir.

São os medos
terramotos perenes
enquanto os corvos se passeiam
pé ante pé
à espera da lúdica fome por matar.

#248


𝑁𝑜𝑟𝑚𝑎+ 𝑖𝑛𝑡𝑟𝑜𝑚𝑖𝑠𝑠ã𝑜3 = anarquia. 

10.7.17

Totalidade

Sou eu
dentro das nuvens
sua ossatura exemplar
mas não tenho lágrimas
e a chuva calculada fica adiada. 
Sou eu
mastro estocástico da outrora solidão
agora vertente exemplo do amor
imensa nau
onde todos os mares têm cabimento. 
Sou eu
caução maior da loucura sã
(e mesmo da insana,
se preciso for)
generosa alma
dádiva de frondosos frutos
corpo hasteado em penhor de invernia
desassombro faustoso
na opulência das páginas abertas
franqueza enquistada
no castelo amurado contra os vetustos ardis
frontispício aberto à lhaneza demandada
rio indomável
irrompendo entre as rochas timoratas
janela desembaciada à espera do amanhã
à espera da manhã quimérica
das almas suficientes
do amor majestoso
por onde regresso ao eu que sou.
Sou eu
esta pedra viva
onda sobreposta
perfume tardio
lua-sol
sem ocaso a pestanejar sobre o entardecer
sem pesares sombrios
só com a corda toda
o apetite desatado pelo húmus enriquecido
de olhos avidamente abertos
preparados para se embriagarem
na alquimia segredada num murmúrio
ouvido desde a voz quente
que dá alimento
à alma que assim se engrandece.
Sou eu. 

#247

A desforra dos fracos
sem combustão visível
no antebraço dos poderosos,
em seu sono. 

9.7.17

Contagem

Sessenta palavras:
um estaleiro ou uma serenata
o farol em cima das nuvens
beijo quente no rosto insaciável
diadema anelado.
Quarenta palavras:
o número errado
uma estrela cadente
as mãos trémulas
as dádivas estremunhadas
em campos floridos
despojando os favoritos lamentos.
Vinte palavras:
lágrimas virgens no assobio noturno
em verso desafinado
bestiário incapaz no ninho dos algozes
e juras interrompidas.

8.7.17

#246

Uma mão cheia
de rosas sem dono
para penhor alçado
do sensato contumaz.