24.7.17

Diz-me um nome

Era um vulto
uma sombra deformada
o esquálido lençol caindo
sobre o vulto.

Tirava as medidas ao sol
enquanto ensaiava as demandas.
Pudesse ao menos o medo
ser o rigor baço
do silêncio;
quem sabia
se as réplicas em devolução
seriam medonhas
um apocalipse sem freio
uma maré viva, violenta
um mergulho inútil sobre o decorrido
viúvas ideias tateando cegas na escuridão.

Não reprimi mais
a demanda esperada à boca de cena
antes que apodrecesse na violada integridade:
pergunta pelo meu nome,
pergunta pelo meu nome,
antes que seja tarde.

Olhei
no contorno do meu ser.
Podia ser que houvesse alguém
a tomar entre mãos
a compungida demanda.
Um viajante por acaso
um nómada cavalgando a poeira
um prodigioso marçano
escapando entre as gotas da chuva
o arco-íris, diz-se, penhor da felícia
o jogo amparado pelos ascetas mudos
um coiote desinteressado, mas faminto
uma sereia fora do lugar
artistas à míngua de influência
devolutos lugares prometendo gente
a gente inteira possuída pelos seus nomes.

Não estava ninguém.

Era um vulto
e um espelho,
um espelho peça sozinha na paisagem:
e o vulto
o retrato da pessoa permanecida diante
do espelho.

23.7.17

#263

Margens sem estorvo,
de tantas pontes
serviçais.

Máquina do tempo

Brincávamos nas fronteiras da loucura:
não havia tempo capaz
de esfriar a ousadia.
Nos rostos arqueados
lavados nas águas cansadas
havia um desmentido do enunciado.
Tirávamos à sorte
as cartas madraças
apostando a ferocidade
contra a imaculada macieza
dos temperos que compunham as almas.
Não eram ilusões
os ossos emudecidos no viés do nevoeiro
nem os rapazes frenéticos
confirmavam o imorredoiro que julgávamos
possível.
A máquina do tempo
era a derradeira arma de arremesso
contra os impudores ocultados;
a maneira
de vergar o impossível
num braço-de-ferro pueril.
Uma filigrana tão frágil.

22.7.17

Re-cultura

De pernas para o ar
era assim que estava o mundo.
Uma muralha estilhaçada
sob o peso de balas de seda
apetrechadas por santos fraudulentos.
Um grande buraco no céu
e as flores irradiando numa volúpia ímpar
ensinando aos artesãos
(do mundo)
a navegação necessária
em águas tão tumultuosas.

21.7.17

Voz

Sob a chuva fria
a minha voz.

O tira-teimas.

Sob a chuva
já ensopado
e a chuva já não fria
a voz cansada
numa enseada.

Os dados atirados
no articulado palco sem chão
e um vulto
sereno
vagaroso
apontando com o dedo trémulo
para um norte sem bússola
sem a voz emudecida.

Alcanço o piano
o piano sem as negras teclas
e, a medo,
martelo duas, três teclas.
Era a minha voz
embargada
no lago louco sem nuvens por perto.

Já sem chuva
o corpo entretanto frio
a voz arrancada a ferros
deixada num solilóquio solene
percutindo nas árvores avulsas
sitiando a noite
já não medonha.

Era só a minha voz
transida pela chuva fria
transigindo os proibidos a eito.

A voz
que ninguém ouvia.

#262

Sóbrio:
sobre a sobranceria esbracejada
do sobrado aviltante
sobeja o nada sem estima.

20.7.17

Basalto

A lente gasta
trava o olhar. 
Nem a impaciência
murmura as dores rudimentares
na varanda do baço conhecimento. 

Pedras no sapato,
diriam os ainda penhores da lucidez
não fosse a lucidez impossível
por furtivas contrariedades à vontade. 

Qual foi o pretérito equinócio
que acendeu as contrariedades?
A lente gasta
profundamente baça
quase como se jogasse à cabra cega. 
Qual foi o pretérito equinócio
que contraiu a lente baça?
Um enigma 
mal disfarçado de enigma:
à falta de miopia
as lentes precisas não são. 
Sem lentes para repousar o olhar
qual o pretérito equinócio
que arregimenta o caos assim ungido?

A falta de vontade
ou
os olhos embaraçados pela vetusta acrimónia
ou
os olhos desembaraçados das vulgatas de antanho
ou 
a folhagem desprendida da tempestade
atirando areia aos olhos
assim já não ancorados. 

Sem os néctares por companhia
hipotecado por uma cegueira estulta
atira os papéis sem serventia
para a fogueira que empresta luz. 
Há um cansaço que se adia
pelo tempo fora
uma falsa valsa sem coreógrafo
o fastio de barriga cheia
a maré das contrariedades depostas
a maré das contradições em ebulição.

Já não repousam os olhos
sob a lente indulgente:
dessa carestia não padecem
resplandecentes
ufanos
humildes pescadores
no mar imenso sem horizonte à vista.

#261

A partida temente
hemisfério sem vidro
no ónus dos leões esfaimados. 

19.7.17

#260

Abraço os despojos
no derramamento do avesso
em pérgulas vertidas sobre o mar.

TNT

Amotinado
no escol bastardo
do batel insaciável
confirmo o imarcescível.
A escotilha sem fundo
não é lastro confiável.
A escotilha sem fundo
não aprova método confiável
e os nervos fundem-se
no lagar lânguido onde passam
paisagens bucólicas
vinhedos metodicamente erguidos
longos cabelos femininos
saciando o faminto desejo
sapatos seráficos
e povoados sem gente,
perdidos na história do tempo.
Os freios à volta
esbracejam
enxotados pelo amotinado pensamento.
As paredes vítreas
consomem a lenta combustão venal.
Agora
no estremunhado entardecer
olho à volta
e as pessoas soam todas
a alquimia.

#259

Espada embainhada:
do visceral sangue
palidez e senescência.

18.7.17

#258

No vagar
desta interminável farsa
somos ramos desprendidos
ao acaso da maré.

Desemparedado

Deixei desapalavradas
as juras mortiças.
Ajustei à cintura
os vulgos destronados
da vulgata do tempo.
Dei por mim
prisoneiro de um céu terreno
no atribulado leito de um sonho
desmedido.

Sem saber
(ou porventura não)
desalinhei os despojos
os estados de desalma
as purificações infecundas
as juras mortiças.
Desapalavradas as certezas
sobrou a clareza do nada
e nesse altar desordenado
medrou o que de mim veio ao luar.

Não cobro os juros pretéritos
nem sou penhor de aforros vindouros.
O vinho astuto contenta-me
na improvável aposta com os demónios
na liquefeita demanda dos nefelibatas
sem ter domínio das alcáçovas porfiadas
ou desenhar os limites das juras
entretanto mortiças.

Há um clarão ao longe
que perdura num pedaço da noite:
quem sabe
do clarão vêm devolvidas as palavras
do que dantes foi desapalavrado
ou palavras outras
hino sem ser alçapão
estrofe impregnada do ouro vivaz
balsa atirada ao mar em convulsões
para a redenção sem motivo aparente. 

17.7.17

#257

Falava sozinho
o asceta:
era como um cavaleiro galante
mas sem cavalo.

Símbolo

Carrossel avariado
coisa nenhuma no chapéu assombrado
oxalá as virtudes no chá coalhado
deixassem de remoer no baú amarelado.

Loucura vertida
no sopé da manhã desajustada
oxalá cantos em estrofe macerada
vertessem ninhos em saia destravada.

Rio arejado
margens robustas em tijolo arrimado
oxalá as barcas em vinho estouvado
remassem no lastro encaminhado.

Cadeira descaída
guitarra compulsada na tarde esvaída
oxalá gaiatos em palavra contraída
ensinassem os remoinhos em suposição traída.

No palco congeminado
atrizes bondosas em passo apressado
oxalá num desejo desatinado
amaciassem os cardos em espigar atrasado.

Na certeza desembainhada
marca nunca dantes registada
oxalá os dentes na palavra jurada
trouxessem enciclopédia jamais arroteada.

#256

Do eu tão virado
para dentro de si mesmo
que no seu avesso
só conhecia o eu conhecido.

16.7.17

Escuta

Ouço o sonho,
sentinela. 
Ouço
o murmúrio em volta
de um velho doente
e as gaivotas aparatosas
as mais predadoras de todos. 
Ouço vultos
na triagem da noite
e os livros desaparecidos
em lamentos guturais
que parecem chegar de um jardim
deserto. 
Ouço
as rodas inteiras da alma
a soma capaz dos estreantes
a inocência das crianças efusivas
a corda bamba nas mãos do artesão
um circo apreendido
missas negras em reforço das lides
um casaco sem corpo
ordenhando as lisas lágrimas dos arcaicos. 

Rogo

A viagem isenta
os mapas perdidos
sem o hálito pesado
dos armários passados
nem o hábito irritante
da certeza do devir.
O nevoeiro atrasa o olhar
em sua demanda precocemente
inquisitorial:
a viagem
é um destino que colhe
sortílego adiamento,
o adiamento do destino.
Saltimbanco
se faz o viajante
no coabitar dos desejos nos seus 
deslimites.

15.7.17

#255

Braço de ferro
entre o estoico e o hedonista:
alvíssaras à modernidade.

14.7.17

#254

Se não fosse 
a usura do tempo
dir-se-ia que o corpo se resgatara. 

#253

Se não fosse 
a usura do corpo 
dir-se-ia que o tempo não vingou. 

Ermo

No ermo
não se rasgavam páginas
só porque uma vivalma passeava diferença.
Não havia tutores de ergástulos
vindicando um saber sem refutação
indispondo-se com perguntas. 
Nesse ermo lugar
provavelmente
as pessoas dormiam de dia. 
Saltavam infantilmente à corda
no imorredoiro,
e também pueril,
sorriso sem cortinas. 
Sendo ermo o lugar
a nudez não era vergonha. 
O sexo,
banal
(sem ser depreciativo)
obnubilados os esgares de reprovação
na ausência de códigos de conduta
e de quem os apascentava
numa totalitária impureza. 
No ermo 
onde as pessoas depositavam seus sonhos
o chão não tinha esteios
e do céu sem nuvens vertia-se chuva. 
O ermo lugar
era destino dos sonhos
um palco etéreo com vozes a preceito
palavras estrelares
bondade intrínseca
a que nem se chamava bondade
chapéus garridos dando amparo dos demónios 
um lugar frágil,
contudo,
dentro de uma redoma,
onde o giz lapidar era dado sem distinções
e onde não havia mandantes. 
Os ermos lugares
habitam nos sonhos
que, 
por o serem,
são o coldre desassisado de lugares ermos. 

13.7.17

#252

Pudéssemos mudar de olhos
e as coisas que vemos
na sua mesmice
eram trespassadas pelo mesmo olhar?

Invasores

Conquistado o dorso de castelo
já não suas muralhas
indiviso território.

Os profanos riem-se
com a generosidade dos iconoclastas
em seu cio contra deísmos atávicos.
Não sabem
os profanos em sua sobranceria
que podem os deuses
ser ilusão vertida
no pensamento fácil dos prosélitos
mas é sempre devido
o devido manto de esguardo
pelas crenças outras.

Dentro do castelo
experimentam os néctares desconhecidos
os sonhos inexperimentados
as medidas julgadas impossíveis
vários impossíveis.
É a prova dos nove,
dizem
vitoriosos
os profanos invasores.
Adestram invasão sem armas
invasão permitida pelos aldeões:
pode dar-se o caso
de os invasores saldarem a invasão
com a noção de terem sido eles
os invadidos.

É a prova dos nove,
advertem,
alarmados,
os mais desconfiados entre os profanos
com os braços caídos dos aldeões,
não seja a invasão
o ardil dos invadidos
para virarem o jogo do avesso
– e sem terçarem uma arma sequer.

Desta prova dos nove
ninguém tem oráculo.

Os profanos
em sendo possível prevenir
a escala indesejável da invasão
teriam preferido a inércia
(enquistando a heresia do ateísmo)
ou ousariam
o risco de serem convertidos
pelos deístas invadidos?

#251

Estimo os luares sondados
que sobrepõem dia
às densas cortinas da noite. 

12.7.17

Apostilha

Nada
no baço desarticular do fumo
no cigarro madraço
aceso
sem o nada por haver
entre as cortinas onde o tudo se esconde.

Tinha as medidas
no tempo em surdina
e os olhos eram a maresia
à espera de um miradouro a preceito.

Dizia:
quero o tojo a enfeitar a pedra chã
os peixes voadores em explosão cinética
uma constelação de palavras sobrepostas
uma chamada murmurada entre as paredes dúbias
o diálogo enroupado
chapéus datados, aformoseados
lugares terraplanados no templo das ilusões
logros acomodados nas esquinas sem sombra.

Nada digo
aos prazos diuturnos
aos deveres sem caução
aos propósitos inverosímeis
à mortalha onde medra a desconfiança
à palavra adeus no seu apocalipse
à noite medonha com medo de ser branca
aos vultos resgatados de um poço seco
aos fantasmas transbordados dos panos gastos
às intempéries boçais
aos deselegantes apóstolos das palavras banais.

Imperativo sem par
é o desligar a ficha da corrente
e povoar as imagens diante dos olhos
com os ingredientes da alquimia feita
com o ouro mágico ungido dos dedos.

#250

Lábios abastados
na combustão dos beijos fartos
a sementeira fértil de que somos
artesãos. 

11.7.17

#249

Toca-me com a tua voz
cobre-me
com a haste desfalecida
de uma alma cheia.

Senha

Se a lava do vulcão
cobrisse o ouro calçado
e a avareza
não fosse se não um pesadelo
os medos afivelados em salas fechadas
e os trovões já não medonhos,
apenas uma centelha aparatosa.

Mas o jogo não apetece
na sua funesta função:
o vulcão já não está adormecido
e os deuses
(ou o que deles sobra)
castigam os lugares
com sua iracunda cinza iridescente.

O sol sem céu
perdeu pergaminhos
e as pessoas já não sabem sorrir.

São os medos
terramotos perenes
enquanto os corvos se passeiam
pé ante pé
à espera da lúdica fome por matar.

#248


𝑁𝑜𝑟𝑚𝑎+ 𝑖𝑛𝑡𝑟𝑜𝑚𝑖𝑠𝑠ã𝑜3 = anarquia.