2.2.18

Nuvem

Abraça-se o manto denso na cumeeira
e alvitra-se a proeza
que braços tão altos se elevam
sem medo de alcantilado promontório
sem tergiversar na vertigem. 
Como se estivesse alado
e, todavia, as asas disfarçadas na ambição,
faz de alpinista
não se atemoriza com os degraus embaciados
nem com o musgo embebido nas rochas. 
O manto galopa a serrania
ao início invisível
ganha espessura com o que traz agarrado às mãos
e o manancial que veio adejando
desde o vale onde se fez nascituro.
Deita-se na encumeada
refrescando os sentidos 
na cor baça que a empareda. 
O sol,
naquela encumeada deixado murcho,
nada pode com suas bravas forças
contra a investida da nuvem tresmalhada. 
Assim se ensine às criancinhas:
pequenos corpos
transfiguram-se grandes espíritos. 
Assim impere a vontade.

#460

A terra dura
fealdade sem vergonha
e suas gentes que com as mãos duras
escavaram lugares nesta terra.

1.2.18

O piano resplandecente

Por dentro deste motim
o sangue efervescente
desembaraçadas as facas afiadas
calados os sons guturais em verbo de ira.

De dentro deste motim
bolço ao mundo a ossatura matricial
e dos bolsos arranco as palavras gentis
contra os ferozes mastins da dissidia.

Ao fim deste motim
os jardins alindados onde a neve repousa
e os esquilos furtivos abrem nozes.

Amanheço à imagem das mãos
inteiras e açoradas
movediças
com a sede do mundo inteiro
no cruzamento dos ventos sem rumo
inventando dicionários, cores e frutos
e deixando à janela
na consagração da manhã demiúrgica
a seiva fecunda do febril estado nómada.

#459

Desce do ubere
em torrencial tiragem
a ciclópica empreitada dos deleites. 

31.1.18

Fresco noturno

Morde-me esta intuição
prisão dilacerante
uma terrina estilhaçada como palco
e os pés feridos nos despojos lançados.
Arranjo coragem para o longo estio
e nem a sombra contumaz
chega a ser sombra
desmentindo os argonautas pueris
e o mar precoce.
No vetusto banco do jardim
calcinado pela ferrugem do tempo
sentamo-nos lado a lado.
Olhamos
olhamos em redor
e para as copas das árvores
à espera de perderem a vergonha da nudez.
Somos a alvenaria constante
os azulejos cintados numa constelação de cores
a palavra-viva contra a matéria-morte
a palavra que dispensa contratos
o contrato de cimento armado na pele ávida.
Nas mãos amplamente abertas
guardamos em segredo o estirador,
nosso salvo-conduto.
Somos:
sem a desmedida função
de não sermos o que não queremos.
A noite invadiu tudo
mas ainda vamos a tempo
da sessão da meia-noite.

#458

O velho
demoradamente olhando as mãos abertas,
o oráculo das rugas seladas.

30.1.18

Irmandade

Embebidos espíritos de pertença
na proteção dos da casta
– oh! louvável sacrifício
generosidade desarmante
desde os primórdios da gesta
em meneios arcanos
o círculo restrito em ciclo vicioso
– e aos de fora,
o cilício
ou uma cápsula de cianeto
com o selo da exclusão.

Arautos da identidade
areópagos da coletiva pertença
emulsionam as probidades da casta:
pois pertencemos sempre a algo
e o algo que é titular nosso
é nossa garantia de réditos fartos.
Proclamam as figuras venerandas,
mostruários da gesta assim protegida
num enredo não só semântico,
que as prebendas provam o fático suco
da pertença assim assinalada.

Ai de quem invetivar a irmandade,
ó canhestra ousadia,
que logo os mastins se soltam em iracunda caça
para devolverem os predatórios ao ultraje
de onde não deviam ter permissão para sair:
o dedo apontado,
o supremo opróbrio
caindo sobre seus humilhados dorsos
e o isolamento sem remissão.
Não sem findar a questiúncula
com pejorativo rótulo pespegado aos dissidentes
aos que o topete tiveram
de blasfemar contra a irmandade:
“sociopatas”.
Juntando,
se a preceito vier,
julgamento sem pronúncia em oposição
sobre
os maus hábitos
as más companhias
as más palavras
as más decisões
a má estética
mas sobretudo
sobre o infortúnio da sociopatia.

Rematam com a comiseração 
que têm por própria dos generosos
abrindo a porta da irmandade
(com a condição prévia da desculpa humilhante)
aos tidos por tresmalhados.
Ah!
prendada longanimidade dos confrades
auto estetas da irmandade
assertivamente adivinhando
o interesse dos proscritos 
em deixarem de o ser.

Escapa-se-lhes a irremediável condição
autistas eles,
irremediáveis também,
não sabendo
que a sociopatia é imorredoira.

#457

Heurístico, contínuo juramento:
deixar à solta as palavras,
sejam elas a falar sem freios.

#456

A torre mais alta
desejo deitado ao logro
em mendaz transfiguração do devir.

29.1.18

Manual de navegação

Os nós desatados
a medula cheia
no vago quintal das roseiras.

Combina a lua com o mar
na esgrima sem espadas
a devoradora bênção dos poetas.

Meios-irmãos enlaçados
no oxigénio das palavras
contra as profecias gastas.

O aneurisma das ideias arcaicas
sem lapela por ostentar
na desautorizada mentira das lápides.

Os nós por desatar
um ainda por dissipar
e uma medula por cumprir.

#455

Um esboço de sombras;
pois é um logro
tanta claridade (baça).

(A Mark E. Smith)

28.1.18

Por conta

Por conta das contas de cor
declamando de cor
a cor descontada da contagem às avessas:
conto por contos
as contas do entretanto andado
e não tenho em conta as contas anotadas.
Por conta dos contos reditos
a conta certa das palavras estremunhadas
em contagem descendente no conto final.
Tudo será coutada
miríade anotada em vulcões contados
e as lavas por conta de fábulas
no esgrimir das contas sem cálculo.

#454

Ao longe
um rio, largo caudal
a sofreguidão dos dias incompletos.

27.1.18

Silvestre

Este desajustado passo,
insubmisso desencontro
com o fado determinado,
dança na ténue linha
no desembaraço de um trapezista
desfeitos os medos no desfreio do desassombro.
Não sejam chamadas as cautelas
nem a anjos sejam reservados lugares:
o oxigénio corre sem embaraços
e o calçado gasto tutela as cordas deslaçadas
que se arpoam ao cais
de onde se avista o sol posto.

#453

Fogo que se alimenta do fogo
estilhaços depostos
no que dantes fora desordem.

26.1.18

Vozes

Ouço vozes:
pedem água sem espinhos
árvores sentadas nos braços
um garfo estendido no dorso do gato.

Ouço vozes:
às vezes, apenas um rumor
outras, trovões que esventram a manhã
em conspirações sem tutor.

Ouço vozes:
as palavras indiferenciadas
as palavras cuidadosamente detidas
o amontoado que se refaz numa frase.

Ouço as vozes:
as doces melodias balbuciadas
as dos contramestres em terra
as de cuidadosos assaltantes da angústia.

Ouço as vozes:
às vezes, um latido ao longe
que faz da noite sua refém
no desembaraço do sono estilhaçado.

Ouço às vozes:
um encanto
um porventura
um porém.

Ouço às vozes:
deslamento
desalinhar
dissidir.

Ouço com as vozes:
o triunvirato das páginas entre mãos
a espera da madrugada vindoura
o sorriso farto sem peias.

Ouço uma voz:
telúrica
demiúrgica
ecoante.

#452

De leito
que é meu corpo despojado
métrica do teu irrenunciável desejo.

25.1.18

Marasmo

À entrada da torre
ninguém discerne ser de Babel
onde as forquilhas levitam
sobre o transido,
fatigado dorso
e não há água que chegue
para a sede de todos.

Outros afivelam
(todavia sem saberem)
suas caixas de Pandora
uma bigorna mastodôntica
arqueando-se nas vértebras sacrificiais
dos seus próprios fautores.

O véu confunde-se com a sombra
adulterando o imoderado cabaz
onde frui uma miríade de saber.
Não de saber-ciência
mas de saber-saber
a candeia sem embaraços na rarefeita noite.
Oxalá pudessem os olhos
prevenir contaminações
as alavancas enferrujadas que esbarram no chão
e ditam o retrocesso nos tempos
aos meãos tempos possivelmente olvidados
ou possivelmente apenas fermentando.

Maldita dicotomia
entre o querer e o não poder
amaldiçoados sejam
os impreparos da desrazão.

Que importam
as caixas de Pandora
ou as torres de Babel?
Incineradoras implacáveis
reveses fadados à dor
insentidas elucubrações,
estéreis
Condenadas a malograr o ser.
As espadas desembainhadas
deviam estar no ponto de mira
das caixas de Pandora e das torres de Babel
as mais autênticas masmorras
onde, prisioneira, morre à sede
a vontade.

Não possam as torres de marfim
tornar-se caixas de Pandora.

#451

Defeitos da opinião democratizada:
hoje, todos acham qualquer coisa
sem terem encontrado algo.

24.1.18

#450

À semelhança
do pecado original de Desdémona:
como ajuizar a transparência do sufrágio
se as urnas são negras caixas?

Às coisas simples

Um tributo loquaz
sem conceitos pelo meio
apenas um ato singelo. 
Pois da singeleza das coisas
se batizam atributos ímpares. 
Pode não sobrar mais nada,
a não ser um ósculo denso
que devolve aos lábios a combustão de outrora;
ou as variegadas páginas
que trazem à tona as águas subterrâneas
de um rio dantes raso de caudal;
ou as palavras sem marca registada
as mais simples de todas
as mais difíceis de terçar
tão difícil como segurar a nuvem nas mãos
ou deitar as ondas do mar
com a ajuda de um braço;
ou abotoar o sobretudo para fingir o frio;
ou falar bem alto
a meio de anónima multidão
em hora de ponta
a imparável maré de um amor sem peias. 
Sobejam os arbustos à mercê da erosão
o sistema complexo reduzido a uma equação
a miríade de rostos indiferenciados
os braços sequiosos de corpo
um copo a vazar-se depressa
a multidão que,
somada,
corporiza milhares de anos
a constelação de nadas em ebulição
a afanosa sobranceria dos eruditos
e a correspondente obnubilar de pergaminhos:
um espelho retrovisor estilhaçado
no arfar genesíaco do meio dia
as espadas enferrujadas
o cinismo sem maldade
os choros precisos
as juras que fazem sentido
no meio do lugarejo desassisado
que terá deixado de fazer sentido. 
Que as odes sejam a antítese
dos personagens que ocupam o palco,
que selem a indiferença dos muros açambarcados,
a que escapa a prova dos nove,
seladas pelos vingadores das coisas simples.

23.1.18

A casa

A casa sem pejo
no sobressalto das vinhas
preparada para arrefecer a ira
grita contra as sombras do entardecer
enquanto os estorninhos regressam ao ninho.

Os vassalos sem guarda
não sabem do paradeiro da noite
tropeçam nos socalcos sem eira
perdidas as candeias a preceito
em seu olhar transfigurado em melancolia.

A curva do rio
deixa à mostra a quimera
um romance em forma de paisagem
nos versos destemidos do orvalho matinal
à espera do sol complacente.

Na casa há poejo
e o perfume incendia o ar
nas labaredas que desenham as paredes.

Na casa há uma solidão
e o silêncio que se ouve
nas muralhas longínquas onde se vê o mar.

Na casa sentem-se as mãos atadas
à medida que o solstício canta às raposas
odes de vazias estrofes.

Na casa vivem os mananciais
a merenda sumptuosa
estendida em toalha senhorial.

#449

E da noite
madressilva em infusão
e o corpo em poema ebulição.

22.1.18

#448

As redes caiadas
decantam o suor do mar
na mão saturada do pescador.

Os não escrúpulos

O homem dos polvos
tossia para dentro das artes
todo o escárnio
como se os polvos residentes
fossem vítimas a dedo. 
Não queria saber,
o homem dos polvos,
não queria saber
que os polvos fossem apenas
fáceis vítimas. 
Os polvos
em inviável tentativa de sublevação
protestavam
contra o inescrupuloso comportamento
do homem dos polvos. 
Os venais protestos
não chegavam aos ouvidos do homem. 
Tudo o que queria
era mercar os cefalópodes
em jornada de boa colheita
para os maus vícios custear. 
O homem dos polvos
não vinha para o regaço das insónias
ao admitir tão maus privados vícios. 
Os polvos também não queriam disso saber. 
A tais horas, aliás,
as horrendas criaturas fariam as delícias
dos que amesendavam as iguarias servidas
à base da sua matéria-prima. 
Entre arrozes,
vinagretas 
e polmes para acamar os tentáculos dos polvos
o homem seu captor 
já se esquecera do morticínio:
assim como assim,
ele nem apreciava polvo. 
Os hoje, pescados polvos, souberam atestar.
O homem do polvo,
esse,
esbracejava numa refrega virulenta
contra outros polvos que o amordaçavam.

21.1.18

#447

Nas mãos despojadas
um crepúsculo notado
moderado ocaso de nada.