8.2.18

Descolorido

O que me podem dizer
esfíngicos olhares
gatos matreiros
lágrimas desnatadas
as palavras metodicamente sublinhadas
no tabuleiro descolorido?

O que me podem dizer
atrocidades sem rosto
as pedras lisas de tão gastas
o cobre escondido
as velhinhas que tremeluzem sua tristeza
nos xailes descoloridos?

O que me podem dizer
os bascos insubmissos
as marés sem freio
a carne bravia, tisnada, afoita
os copos altos cheios do vinho
retirado de vinhas descoloridas?

O que me podem dizer?

O que me podem dizer
que eu não julgue saber
por dentro de um oráculo frívolo
contra os mestres sapientes
contra os pesares desarmadilhados
na obnóxia condição humana?

Servem-se
as gotas todas da chuva
que não se recusa
um nada do tamanho do tudo.

#465

Vejo na tua boca
uma sede que espiga
e ao desejo não emparedo limites.

7.2.18

Relativismo

Este tossicar repetido
dilemas que fermentam
na epístola da inverdade.

Os insinceros fazem jogo dúplice:
o que podemos aferir
quando narram intrujices?
Os novelos do raciocínio
esbarram nas nuvens frigoríficas
fortalezas onde se oculta o entendimento.
Desafio para os apóstatas do fingimento,
todavia, entediante jogo:
pelo meio do tempo
ou nos seus interstícios
nunca é dado saber
se se sabe o que sabe
ou se o que é dado como conhecimento
é um logro incomensurável.

As margens do lago espelhado
(onde as montanhas com acobreada vegetação
se refratam nas águas paradas)
podiam legar um subsídio para o enigma;
desenganem-se até os cultores do lago:
a montante
a represa ameaça desmoronar
e as águas mansas
depressa serão depostas.
Em sua vez
o caudal desgovernado
em soma com os destroços
em aleatória errância.

#464

Estava capaz de um cometimento
um golpe de asa,
“ou assim”,
uma palavra interditada
para arrumar o atónito incongruente.

6.2.18

#463

Medrou a tempestade
nas irrefreáveis veias
e o verbo em sua haste,
abraseado.

Sobremesa

Uma voz sem nome
na floresta fria
murmúrio incessante.
A solidão composta
no inviável sacrifício
entre árvores altas.
O rio sussurra segredos
escondido no fundo vale
torna-se bússola restante.
Do labirinto gutural
o sangue enregelado
e o medo por companhia.
As bandeiras ausentes
desaprovam os vasos vazios
e a música cicia-se no remoto.
Se há limites por desafio
fronteiras hasteadas
convoco a clepsidra árabe.
Muito ao longe
cantorias num minarete
páginas abertas com avidez.
No muro sombrio
um frágil véu levita sobre o chão
e eu aprendo com os arbustos.
Não choro
por secas as lágrimas
nem por sua serventia.
Outrora houve embaraços
sobressaltos em noites contínuas
vontade de capitular.
Outrora é pretérito
e as vozes audíveis
não são miragem.

#462

Se por cada rosa, um espinho
antes cardos
que logro não são.

5.2.18

Choque frontal

Da tocha acesa
uma ponta de sol humilde
contra ascetas furibundos
e seus mastins apoderados.
Subindo a ladeira íngreme
na cadência arranjada contra o desencorajamento
vociferam as ramagens inclinadas pelo vento
e os ossos doem no pedregoso caminho
agredidos pelo vento indomável. 
Nem assim capitulo.
Terei a mania que sou probo,
mas é só uma farsa
um ato volitivo de esvaziada camada. 
Não chegam os castelos todos
no tortuoso, banal sofisma de sacrifícios,
como se os sacrifícios fossem caução. 
Não será má ideia
desatribuir importância
até às coisas tidas por imperiais. 
E jogar-me no imenso mar lúdico
que espera
sem contar com os improváveis esgares
de beneplácitos não averiguados. 
Que não se espere nada.
Que não se espere por nada.

4.2.18

Ano zero

Ano zero.
Disfarço-me de vulto.
Porque os vultos não contam
e zero é o vazio a condizer.
A espera pelo ano depois do zero
é a mordaça que sacia o vulto.
Não se sabe
se zero é véspera do um
ou apenas
um labirinto sem porta de saída.
Entretanto
pode ser que acorde
e o pesadelo se dissolva na água matinal.

3.2.18

#461

Na sua lascívia
ela transfigurava-se,
arroz malandro.

2.2.18

Nuvem

Abraça-se o manto denso na cumeeira
e alvitra-se a proeza
que braços tão altos se elevam
sem medo de alcantilado promontório
sem tergiversar na vertigem. 
Como se estivesse alado
e, todavia, as asas disfarçadas na ambição,
faz de alpinista
não se atemoriza com os degraus embaciados
nem com o musgo embebido nas rochas. 
O manto galopa a serrania
ao início invisível
ganha espessura com o que traz agarrado às mãos
e o manancial que veio adejando
desde o vale onde se fez nascituro.
Deita-se na encumeada
refrescando os sentidos 
na cor baça que a empareda. 
O sol,
naquela encumeada deixado murcho,
nada pode com suas bravas forças
contra a investida da nuvem tresmalhada. 
Assim se ensine às criancinhas:
pequenos corpos
transfiguram-se grandes espíritos. 
Assim impere a vontade.

#460

A terra dura
fealdade sem vergonha
e suas gentes que com as mãos duras
escavaram lugares nesta terra.

1.2.18

O piano resplandecente

Por dentro deste motim
o sangue efervescente
desembaraçadas as facas afiadas
calados os sons guturais em verbo de ira.

De dentro deste motim
bolço ao mundo a ossatura matricial
e dos bolsos arranco as palavras gentis
contra os ferozes mastins da dissidia.

Ao fim deste motim
os jardins alindados onde a neve repousa
e os esquilos furtivos abrem nozes.

Amanheço à imagem das mãos
inteiras e açoradas
movediças
com a sede do mundo inteiro
no cruzamento dos ventos sem rumo
inventando dicionários, cores e frutos
e deixando à janela
na consagração da manhã demiúrgica
a seiva fecunda do febril estado nómada.

#459

Desce do ubere
em torrencial tiragem
a ciclópica empreitada dos deleites. 

31.1.18

Fresco noturno

Morde-me esta intuição
prisão dilacerante
uma terrina estilhaçada como palco
e os pés feridos nos despojos lançados.
Arranjo coragem para o longo estio
e nem a sombra contumaz
chega a ser sombra
desmentindo os argonautas pueris
e o mar precoce.
No vetusto banco do jardim
calcinado pela ferrugem do tempo
sentamo-nos lado a lado.
Olhamos
olhamos em redor
e para as copas das árvores
à espera de perderem a vergonha da nudez.
Somos a alvenaria constante
os azulejos cintados numa constelação de cores
a palavra-viva contra a matéria-morte
a palavra que dispensa contratos
o contrato de cimento armado na pele ávida.
Nas mãos amplamente abertas
guardamos em segredo o estirador,
nosso salvo-conduto.
Somos:
sem a desmedida função
de não sermos o que não queremos.
A noite invadiu tudo
mas ainda vamos a tempo
da sessão da meia-noite.

#458

O velho
demoradamente olhando as mãos abertas,
o oráculo das rugas seladas.

30.1.18

Irmandade

Embebidos espíritos de pertença
na proteção dos da casta
– oh! louvável sacrifício
generosidade desarmante
desde os primórdios da gesta
em meneios arcanos
o círculo restrito em ciclo vicioso
– e aos de fora,
o cilício
ou uma cápsula de cianeto
com o selo da exclusão.

Arautos da identidade
areópagos da coletiva pertença
emulsionam as probidades da casta:
pois pertencemos sempre a algo
e o algo que é titular nosso
é nossa garantia de réditos fartos.
Proclamam as figuras venerandas,
mostruários da gesta assim protegida
num enredo não só semântico,
que as prebendas provam o fático suco
da pertença assim assinalada.

Ai de quem invetivar a irmandade,
ó canhestra ousadia,
que logo os mastins se soltam em iracunda caça
para devolverem os predatórios ao ultraje
de onde não deviam ter permissão para sair:
o dedo apontado,
o supremo opróbrio
caindo sobre seus humilhados dorsos
e o isolamento sem remissão.
Não sem findar a questiúncula
com pejorativo rótulo pespegado aos dissidentes
aos que o topete tiveram
de blasfemar contra a irmandade:
“sociopatas”.
Juntando,
se a preceito vier,
julgamento sem pronúncia em oposição
sobre
os maus hábitos
as más companhias
as más palavras
as más decisões
a má estética
mas sobretudo
sobre o infortúnio da sociopatia.

Rematam com a comiseração 
que têm por própria dos generosos
abrindo a porta da irmandade
(com a condição prévia da desculpa humilhante)
aos tidos por tresmalhados.
Ah!
prendada longanimidade dos confrades
auto estetas da irmandade
assertivamente adivinhando
o interesse dos proscritos 
em deixarem de o ser.

Escapa-se-lhes a irremediável condição
autistas eles,
irremediáveis também,
não sabendo
que a sociopatia é imorredoira.

#457

Heurístico, contínuo juramento:
deixar à solta as palavras,
sejam elas a falar sem freios.

#456

A torre mais alta
desejo deitado ao logro
em mendaz transfiguração do devir.

29.1.18

Manual de navegação

Os nós desatados
a medula cheia
no vago quintal das roseiras.

Combina a lua com o mar
na esgrima sem espadas
a devoradora bênção dos poetas.

Meios-irmãos enlaçados
no oxigénio das palavras
contra as profecias gastas.

O aneurisma das ideias arcaicas
sem lapela por ostentar
na desautorizada mentira das lápides.

Os nós por desatar
um ainda por dissipar
e uma medula por cumprir.

#455

Um esboço de sombras;
pois é um logro
tanta claridade (baça).

(A Mark E. Smith)

28.1.18

Por conta

Por conta das contas de cor
declamando de cor
a cor descontada da contagem às avessas:
conto por contos
as contas do entretanto andado
e não tenho em conta as contas anotadas.
Por conta dos contos reditos
a conta certa das palavras estremunhadas
em contagem descendente no conto final.
Tudo será coutada
miríade anotada em vulcões contados
e as lavas por conta de fábulas
no esgrimir das contas sem cálculo.

#454

Ao longe
um rio, largo caudal
a sofreguidão dos dias incompletos.

27.1.18

Silvestre

Este desajustado passo,
insubmisso desencontro
com o fado determinado,
dança na ténue linha
no desembaraço de um trapezista
desfeitos os medos no desfreio do desassombro.
Não sejam chamadas as cautelas
nem a anjos sejam reservados lugares:
o oxigénio corre sem embaraços
e o calçado gasto tutela as cordas deslaçadas
que se arpoam ao cais
de onde se avista o sol posto.

#453

Fogo que se alimenta do fogo
estilhaços depostos
no que dantes fora desordem.

26.1.18

Vozes

Ouço vozes:
pedem água sem espinhos
árvores sentadas nos braços
um garfo estendido no dorso do gato.

Ouço vozes:
às vezes, apenas um rumor
outras, trovões que esventram a manhã
em conspirações sem tutor.

Ouço vozes:
as palavras indiferenciadas
as palavras cuidadosamente detidas
o amontoado que se refaz numa frase.

Ouço as vozes:
as doces melodias balbuciadas
as dos contramestres em terra
as de cuidadosos assaltantes da angústia.

Ouço as vozes:
às vezes, um latido ao longe
que faz da noite sua refém
no desembaraço do sono estilhaçado.

Ouço às vozes:
um encanto
um porventura
um porém.

Ouço às vozes:
deslamento
desalinhar
dissidir.

Ouço com as vozes:
o triunvirato das páginas entre mãos
a espera da madrugada vindoura
o sorriso farto sem peias.

Ouço uma voz:
telúrica
demiúrgica
ecoante.

#452

De leito
que é meu corpo despojado
métrica do teu irrenunciável desejo.

25.1.18

Marasmo

À entrada da torre
ninguém discerne ser de Babel
onde as forquilhas levitam
sobre o transido,
fatigado dorso
e não há água que chegue
para a sede de todos.

Outros afivelam
(todavia sem saberem)
suas caixas de Pandora
uma bigorna mastodôntica
arqueando-se nas vértebras sacrificiais
dos seus próprios fautores.

O véu confunde-se com a sombra
adulterando o imoderado cabaz
onde frui uma miríade de saber.
Não de saber-ciência
mas de saber-saber
a candeia sem embaraços na rarefeita noite.
Oxalá pudessem os olhos
prevenir contaminações
as alavancas enferrujadas que esbarram no chão
e ditam o retrocesso nos tempos
aos meãos tempos possivelmente olvidados
ou possivelmente apenas fermentando.

Maldita dicotomia
entre o querer e o não poder
amaldiçoados sejam
os impreparos da desrazão.

Que importam
as caixas de Pandora
ou as torres de Babel?
Incineradoras implacáveis
reveses fadados à dor
insentidas elucubrações,
estéreis
Condenadas a malograr o ser.
As espadas desembainhadas
deviam estar no ponto de mira
das caixas de Pandora e das torres de Babel
as mais autênticas masmorras
onde, prisioneira, morre à sede
a vontade.

Não possam as torres de marfim
tornar-se caixas de Pandora.