14.3.18

#508

Pois que o mar assim o quis:
sublevação tumultuosa
a dramática mercê pré-apocalíptica.

13.3.18

#507

Apostilha da revisão constitucional:
amor mínimo nacional
(proposta do sindicato do desamor).

Maré viva

Guardo no bolso
um pedaço da carne honesta
em segredo escondido
do olhar sem peias.

Guardo em mim
as armas por terçar
armas nunca bélicas
no parapeito da alma não frugal.

Guardo no avesso do olhar
as frondosas pedras cinzeladas
no rebordo das palavras vorazes
preces sem audiência à espera.

Guardo em estiradores gastos
o esboço impossível
e reservo um esgar desmaiado
na indiferença metodicamente alinhada.

Guardo na janela forrada pelo mar
o luar que veio parar às mãos
um sorriso pueril
contraponto da reincidente fuselagem.

Guardo
em memória futura
a cartografia dos sonhos vertidos
os ramos dúcteis no preparo do dia
a bastante competência
a distração dos contratempos.

Guardo-me das intempéries
do flagelo intemporal
da repressão do dissídio
dos embaraços sem remédio.

Guardo-me.
Porque sei que
“moro no rés-do-chão do pensamento”
e agrada-me
porque do pensamento se cuida
na quadriga de minha atalaia.

#506

Remexemos o fundo,
arrastão telúrico,
dos vendados olhos em rugas.

12.3.18

Demónios desamparados

Ah, estes demónios de veludo
barba rala e anéis vitupério
numa correria frontal
contra o comboio da lógica
enxertam suas beatas ainda acesas
na boca distraída dos amolecidos.
Os demónios amestrados
são risíveis
ninguém os leva a sério,
a não ser como contrafação do termo.

Não é como dantes:
no pelourinho dos pesadelos
demónios apalavrados
lançavam as sementes do medo
uma vergonha imensa
como se do lago viéssemos untados
com as penas rosadas dos cisnes
e toda a gente escarnecesse.
Era isso:
tínhamos medo do palco
onde troçar dos nefelibatas era passatempo.

Os demónios tinham rosto
nem se transfiguravam atrás de máscaras.
Mas pesadelos desta leva
eram dantes.

Podia-se alvitrar
que os demónios hodiernos
são de fracos pergaminhos.
Desengano:
seus motejos desvitais
à mercê de infundadas cominações
– e o sono é à prova das conspirações
dissolvendo a legitimidade dos demónios
na água pestilencial que se verte nos bueiros.

#505

Inventariei as memórias do futuro
e verti as alíneas 
num chão de espelhos.

11.3.18

Escape livre

Não sejam
as negras nuvens
mortificação:
ao menos
têm uma densidade.
Por labirínticas que sejam
por serem tutoras de dilemas surdos
por serem respaldo do desencontro;
mas densas.
São corredores baços
paredes não tateáveis
palavras que ecoam na sombra
rostos sem silhueta
manhãs com a reprovação dos druidas:
densas, negras nuvens
carregadas com um húmus ímpar
bibliotecas prolixas:
nelas se pode beber
a versatilidade das fontes
e escapar ao dilúvio dos queixumes.
Impossíveis efeitos especiais
sem eremitas nos flancos
são a multiplicação da raiz quadrada das nuvens
pela temerária disfunção do olhar turvo.
Um preceito inigualável:
quando pouco se espera da função
ela presta-se ao proveito mais elevado.

#504

Temperamental, o mar
e as veias ebulindo
em tumulto apaziguador.

10.3.18

#503

Prometeram beleza.
Não prometeram saber.
(Desfile de moda. Modelos sisudos.)

Banda sonora

Na música compartilhada
uma combustão uníssona:

na música datada
as rugas envernizadas;

na música intemporal
o ensejo de perenidade;

na música redescoberta
o tributo à lhaneza;

na música neófita
ambição sem medida
(há quem diga:
o retardar do envelhecimento);

na música improvável
o carimbo inesperado;

na música ímpar
a autonomia da singularidade;

na música relâmpago
um beijo sísmico;

na música mercadoria
a simplicidade mundana;

na música exótica
o quartel da diferença;

na música reinventada
um esboço de começo;

na música memória
o desapegar das peias modernas;

na música moderna
um subsídio contra o passado.

Música atrás de música
nos sentidos apalavrados
sentida paga contra os fogos ateados
sedimento de um mundo entrado pelas mãos.

9.3.18

A ponte franzina

Uma ponte na meada do caminho.
Atravesso
ou tenho medo?

Vejo as fundações em ruínas
a ferrugem tomando conta dos corrimões
uma convocatória para a desgraça;
ou vejo
uma centelha a refulgir no epílogo da ponte
a vegetação radiosa
o ajuramentado paraíso
(e quem acredita em paraísos?).

Da ponte não sei segurança
nem concebo o retrocesso.

No jogo dos dilemas
os dados são esquinudos.
Antes atirar uma moeda ao ar
e saber a cor da sorte ou do azar
na mediana bota do bandido à discrição.

#502

Parábola do hedonismo
(por mais que não pareça):
cuidar do corpo
antes que o corpo se descuide de nós.

8.3.18

#501

Desafiou a lotaria.
Não passaria sob escadas.
Percebeu:
o não azar não é caução de sorte.

Monólogo da indeterminação

Não faço a menor ideia.
De nada.
No assalto das dúvidas
tenho índice numeroso.
Das ideias feitas
das certezas à prova de bala
dos céus eternamente claros
das luas que só irradiam luar alvo
dos profetas que adivinham oráculos:
não faço a menor ideia.
E gosto.
Gosto que as ideias sejam tumultuosas
congraçadas dentro das veias febris
a que apetecem os remoinhos dos opostos
a dança de contraditórios
as interrogações seguidas de interrogações
o deserto de respostas.
Não faço a menor ideia
da base que recebe os sedimento da razão;
pois da razão
julgo ser volátil
matéria que se dissolve entre os dedos
as mãos na impossibilidade de a agarrar.
Não faço a menor ideia
por que se excedem em fantasiosas bússolas
os pederastas da razão
por que tiram a pele à pele
na ambição de saberem algum saber.
Na dúvida
prefiro o contentamento
de não fazer a menor ideia
– nem, muito menos, a maior das ideias.
Quero os livros sem certezas:
argumentos ao sufrágio outro
convite à dissidência
só pelo inexcedível prazer
da argumentação seguida do seu contrário
– sem o imperativo de inventariar vencedor:
não há nas ideias
cunho de superioridade
(e se há em alguns peritos em tresler,
seu é o mal).
Quero aqueles livros
embebidos na intelectual humildade
de serem desmentidos em ilações
atiradas ao escrutínio.

#500

Do pontão alteado sobre o mar
asas abonadas ao corpo
e eu adejando sobre as águas,
seu vitral perfeito.

7.3.18

Ópera

O suor tingido de mar
nos olhos réplica de lua
esbraceja lugar entre os poros teimosos.
No sufrágio do desejo
a boca quente, faminta
arremete como um lobo
sobre a carne trémula que é teu corpo
retrato de um corço não apavorado.
No pináculo de um sonho
sinto as veias efervescentes
que vogam em teu caudal
sonho em si puro.
Sorvo da tua boca
a saliva refúgio,
a muralha
e damos as mãos sobranceiras
pois sabemos das desregras.
Sabemos da loucura
que dança nos corpos guerreiros.
Há palavras ciciadas
um tudo a que se afivela o momento
sua perenização
como se guardássemos o tempo
no penhor das nossas mãos uníssonas.
Somos césares
na grandeza do exíguo terreiro
onde triunfamos.
Temos a manhã
por fiel depositária da combustão dos corpos
na demora desejada
na volúpia que descarna as palavras,
insuficientes para retratos fidedignos,
mas sempre palavras-refúgio.
Sabemos que conta
o que contarmos como sortilégio,
o osso fundo em forma de esteio.
Corremos
no pêndulo da vontade que acomete.
Corremos
com o vagar que nos manda
e esquecemos os gramas do tempo
por dentro do voraz desejo sem freio. 
Somos alpinistas indomáveis
e nem alcantilados vãos nos retardam.
Em teu campo florido
derramo o albino suor.
Consumação.
E damos as mãos:
somos deuses
de uma matéria perfumada
com a nossa assinatura.

#499

Adenda ou nota de rodapé,
não importa:
conduzo na estrada sinuosa
até no ermo me encontrar.

6.3.18

Finis terrae

Tenho fronteiras em meu regaço
limites desenhados pela trova malsã
bandeiras descoloridas
idiomas vetustos, gastos
tenho uma espada desquiciada
nos despojos da imperial fachada
e os escombros dela emoldurados
mapa que custa pisar.

Tenho a terra molhada entre as mãos
o seu cheiro encantador
o aroma prazerosamente deletério
de um cachimbo fugaz
o refúgio contra o palavroso vazio
tirando o chão aos errantes
tirando as lágrimas dos melancólicos
e a sua melancolia legada ao escárnio.

Que território é o meu?

Na provável descosedura de tudo
no improvável arpoar de uma lantejoula
por carência de cais
por mares que deixaram de ser navegáveis:
talvez não saiba dessa terra minha
ou ela esteja em ebulição
nas margens sitiadas de um rio murmurado
escondida do turbilhão hodierno
da intromissão dos outros sem caução.

Desta terra sem fim
(porque assim o determino)
desenho os contornos
os marcos geodésicos onde estou de atalaia
a boca do céu testemunha
para deleite das porteiras mascaradas de gente
e infortúnio dos profetas de tudo.

Desta terra
atestada terra sem fim,
seu curador legitimado.

#498

Um mosaico de rostos
constelação de nomes sem paradeiro
hibernação do mundo.
(Oxford Street, Londres)

5.3.18

#497

Há um lugar em Lisboa chamado Desterro.
Estarrecido fico
ao pensar por que deram ao lugar
tão ablegada toponímia.

Inventário

É a etiqueta
o manjar bastardo dos párias
a estulta montra do tempo
uma garrafa esquecida pela maré
os olhos marejados da idosa
a contrafação da gramática
a manhã tardia
um estroina interiorizado
um cálice dourado e, porém, vazio
braçadas fortes no mar contra
sapatos esgotados na fibra do caminho
– a possibilidade do impossível;
o marear das velas hirsutas
o espelho de sombras vetustas
a promessa infundada
os versos aformoseados pela singeleza
o parto adiado
o estranho ocaso lunar
os estragos do sorriso soez
o sarcasmo alinhado no avesso do dia
o pregão repetido, exaurido
a luz desmaiada na alvorada sombria
uma chávena de café sem misericórdia
o pranto das lágrimas enxutas
– a impossibilidade do possível.

#496

Desta candeia extingui o fogo;
não queria ter o porvir
de atalaia.

4.3.18

#495

O baraço solto
dança sem rota
na mão invisível do mar agitado.

Friendly fire

Só por obnóxias convenções
se estima
que um paradoxo deixa de o ser
e se verte no contrário do seu teor:
as balas perdidas
são, porém, balas:
magoam tanto
como não perdidas balas.
É como os zeladores de nós todos,
catedráticos das convenções
(que, por o serem, são bondosas),
no argumentário do bem maior
ou na lógica ilógica
dos danos colaterais.
Antes medrassem
filólogos sem desvios
e os conceitos eram conceitos
(e não uma amálgama
orquestrada pela variável batuta
dos catedráticos das convenções).

3.3.18

#494

Trazias no bolso
um bolbo esquecido
e não era a Holanda que te viu.

Crédito

Por estas ruas suadas
as paredes acordadas em vigília
e o altar onde se espera
a alvorada.
A muralha erguida
estilhaços de balas perdidas
um aquário com a água frígida.
No estuário soalheiro
os remorsos omissos
em vez da farsa composta
no dorso fingido das dádivas.
É por este ângulo estreito
na enseada refeita
que se a venda derrui
e o olhar ganha condição.

2.3.18

Monção

Inventei uma monção
agora que a chuva é teimosa
– uma monção que não é minhota.
No lago defunto
onde só os nenúfares medram
agora tudo bebe renovação
pela mão da vistosa visita da chuva.
Os desapossados de sorriso
por estes dias de tempestade
revolvem-se nas entranhas:
possuídos
ai, se ao menos pudessem,
disparavam o arsenal todo
contra os feitores da monção,
ou martelavam um tamponamento no céu diluviano.
Tirando os joelhos condoídos
de idosos em decadência
e os impensáveis aduladores do “bom tempo”
não se proteste contra a monção ágil
o filamento dourado da fértil terra
seu tesouro incandescente
a água de que somos todos escansões
– lá vai lugar comum:
“a fonte da vida”.

#493

As sábias sílabas
sulcam o sexo suplicado
sonhando sonhos entronizados.

1.3.18

Insurgente

Ah!
Este salafrário
o estroina mundano
profeta dos desacatos
ignóbil desarrumador de ideias
agitador incorrigível
aquele que pega nas marés
e as vira de pantanas
o provocador que zela pela polémica
estouvado e vicioso
sacripanta com fama de pária
personagem desamado
ele que tem a honra de aparecer desarmado
contra os areópagos
onde se sulfatam obediências.
Sem medo do desterro;
aliás
é essa a sua ambição maximalista
no contínuo terçar da insubmissão
contra as algemas do gerúndio
e as alimárias da infecunda existência.

#492

O mosto conseguido
na lágrima derramada pela manhã
e eu não vacilo no dia.