24.1.19

Logo

Admito as lágrimas
no largo que é seu lugar
não sem advertir os dias lunares,
que convocam lobos famintos,
que se pressentem vozes radiosas
versos de poucas falas
as sílabas compostas no tear arcano
sem notícia da ferrugem
nem a oposição de comezinhos oradores. 
Na conta corrente
raspo o salitre desprendido do mar
e os navios em espera são testemunha,
notários involuntários 
por sua envergadura ser sobranceira 
à minha demanda. 
Não noto a presença de marinheiros
(devem estar algemados ao sono);
naquele momento
sou o único marinheiro em redor
com a vantagem
de não responder perante comandante nenhum.
Hei de fazer com este salitre
um tesouro inteiro
e dele darei conta aos trovadores vindouros.

#891

O crédito malparado
paga multa de estacionamento?

#890

Subo pelo vento
heurístico impulso
na montanha não crepuscular.

23.1.19

Mergulho

Trago o uniforme em dia
não apareça, sem marcação, vistoria
e eu apanhado em falso. 
Era assim, dantes,
quando era impressionável
pelas impressões de fora. 
Agora
tenho a ideia de ser juiz de mim mesmo
não à espera de veredictos de juízes de fora. 
Trago, se preciso for,
indumentária não cuidada
ao acaso dos humores que se sopesam
na virtude do momento,
andrajos se preciso for
(descontado o exagero). 
O espelho estilhaçado fez os demais obséquios:
gratifico o desleixo
uma possível medida da liberdade
o inenarrável prazer de celebrar
o ar respirável que circula em minhas veias
sem estorvos e contaminações
sem olhar às coisas 
se não através do meu olhar. 
Há quem diga
em pungente tom censório
que se trata de egoísmo lesivo
possivelmente uma aproximação à sociopatia. 
Devidamente registado. 
O sono 
continua a ser safra meridional,
o astuto sinal da medida que conta
na equação que vem nos (meus) livros.

#889

Quando se pede tempo de empréstimo
não chega a vontade ao entardecer,
sitiada por adiamentos que definem o nunca.

22.1.19

O vinho

Conferência de imprensa. 

Um ruído de fundo
o vinho em espera
tomando forma. 

Burburinho.

O orador entra em cena. 
Nervoso. 

Os dedos trémulos tingem as folhas;
talvez a mnemónica fique estrábica
e a mensagem, adulterada,
seja treslida. 

Ou não. 
Uma dupla negativa anula-se
e a prédica é não intencionalmente percebida.

Os ouvintes
na sala e no refúgio das televisões
sempre têm o vinho
ainda em espera
não capaz de azedar 
no sufrágio dos contratempos. 

Findada a tumultuosa prédica
não há demandas. 

Estão todos
com o sentido no vinho. 

De pior cepa não será
por temível que seja 
a mistela servida.

#888

Não percebo por que é pejorativo
lavar a roupa suja. 
Os costumes
detestam a roupa lavada?

21.1.19

#887

Vingo a alma do tamanho dos mares
e um pequeno tudo tenho
em erupção no peito:
o bálsamo do amor.

Virtudes

Do leilão de apóstrofes
não se livram os apóstolos.
São as tendências da moda. 
Os apóstolos 
teimam na altivez
e discorrem, demoradamente,
sobre as virtudes da virtude. 
Arregaçam as mangas
e no conciliábulo de imperativos categóricos
ensaiam certezas à prova de bala. 
Fazem apostas entre si,
os apóstolos,
para estancar a hemorragia das ideias,
tão fecundos nas hipóteses de virtude
que candidatam ao lugar cimeiro
das virtudes. 
Digladiam-se uns com os outros
quando as lentes 
depuram virtudes em oposição. 
Outros corroboram-se mutuamente
na linhagem das mesmas virtudes,
apenas misturadas 
por divergências de pormenor ou de estilo. 

Oxalá
uns e outros
não tivessem de esbarrar
nuns exilados
uns reprováveis mastins que desalinham,
categóricos desmilitantes de tudo
que indeferem virtudes 
– indeferem as virtudes. 

Por um momento
até os apóstolos divergentes
convergem numa batalha farta:
dar luta sem quartel 
a esses desapoderados
essas más influências
demoníacas paisagens que convidam
à insurgência. 

Não contavam
com a heresia das virtudes
e sabem do sono hipotecado
só de saberem destes hereges. 
Num salto no tempo
temem a anomia
e, quais santidades vilipendiadas,
unem-se em aliança virtuosa. 

Meio caminho já foi andado
para o deserto das virtudes. 
Que não há de ser
degredo
(em negação dos virtuosos). 

#886

História de um eclipse:
a lua foi resgatada
da (sua) vergonha.

20.1.19

Curadoria dos sonhos

Não sou dos meus sonhos
e por assim ser
equaciono errado serem os sonhos meus. 
Interpelo os sábios
se adejam intrusos
na morada dos sonhos
de modo que eles,
em habitando em meu sono,
sinto serem incursão exterior,
desligados de mim. 
E, todavia,
sou eu que os sonho,
esses sonhos contrariados. 
Está frágil teia onírica
enreda-me
deixa o sono nos contrafortes do inverosímil;
mas não são feitos dessa matéria,
os sonhos 
– um pulcro desideal 
fantasia em febril elucubração
ou pesadelos que pesam 
na fronte do dia sucessivo?
Ainda estou para saber
se os meus sonhos são meus 
se não são de minha tutela.

#885

Cessar fogo. 
À falta de generais.

19.1.19

Perdidos e achados

Não sei que mapa me deu.
A constelação obsoleta
traduz do latim.
O orgulho do pai
trespassa o olhar dos filhos
em lotarias sucessivas sem enredos
na escolta dos nomes achados.
Deixaram de ser perdidos
o paradeiro devolvido à casa da partida.

#884

Escreve os nomes que te faltam
e deixa a folha em branco.

18.1.19

Noite insubmissa

Sentinela
o sono adiado
a flor noturna aprisionada
e um sussurro que ecoa no luar.

Aprecio
o silêncio da noite.
As horas vadias
o tempo que não foge
a baixa densidade populacional
as ruas vazias
o cheiro do asfalto
a litania dos ruídos sem paternidade.

Aprecio.
Pois foram escassas 
as noites neste preparo
quando o sono ganha seu império.

Aprecio.
pela raridade
das noites sem sono.

#883

Deles o aparato:
imprevidentes epicuristas
exibindo a soberba sem fundo.

17.1.19

Metáfora

Deixa-me uma metáfora
o aveludado rosnar entre vírgulas
o verbo lúgubre bolçando páginas evitáveis
no alpendre de onde se avista 
o cais esquecido. 

Permite-me a delicadeza
do favor não configurado
e no eclipse deixarmos a carne fervente
enquanto juram os ministros da lassidão. 

Desconheço a matriz
o volúvel ponto de Arquimedes
a desconstrução de todas as construções
num baú de desperdícios em forma de comendas
e exasperados penhores das solenidades
em seu fulgurante despenhar. 

Pudessem as auroras 
tingir-se do amarelo do ouro
em fábricas abandonadas,
tecidas por artesãos senescentes,
e a provecta idade,
sucedâneo de uma perícia singular,
não seria o venal desperdício sem valor.

Deixa-me uma metáfora
a uso;
uma que seja o retrato claro
o tapete em forma de filigrana
o poema reduzido a um punhado de estrofes
síntese perfeita
do muito que ficou por dizer. 

Uma metáfora:
do silêncio apalavrado.

#882

Atravessei portas
(as blindadas, até)
como se não tivesse saído 
do mesmo lugar.

16.1.19

Simplesmente

As noites impossíveis
cadastro cingido à alma
protestam um lugar.

Desde o nevoeiro hirsuto
uma voz 
teatraliza o fôlego necessário
o cónego desprendido na literacia dos sinónimos.

Habitam as casas vazias.

Acalmam o vinho no cálice em espera.

À desdita 
o rosto oferece o avesso
no imperscrutável arrojo dos imberbes.

A carta não tem remetente.

Na roda-viva do crepúsculo
entre acácias serenas
e o mar como pano de fundo
as mãos são coreógrafas da paisagem,
arquitetas.

Se fosse sabedoria a espessura dos instintos
deitaríamos à janela
os despojos infecundos
a praia cinzelada a carvão
os denodados mastins da volúpia.

Ficávamos
com a volúpia
toda para nós.

Egoisticamente.

#881

(Variação do #696)

Eternidade.
Má eternidade.
Maternidade.

#880

Por que é janeiro
desprezado pelos poetas?
(Se ele há tantos poemas sobre novembro.)

15.1.19

Talvez

Talvez 
fizesse uma salada niçoise
deste relógio embotado
juntando duas pitadas de rejubilo
à venda 
nos quiosques sobranceiros a jacarandás.
Talvez 
orquestrasse os dentes brancos
contra a madeira baça
em esperas sucessivas 
na militância dos eloquentes diseurs
de coisa nenhuma.
Talvez
atrelasse ao sol tardio
as pedras desemparelhadas pela tempestade
e o salitre embebido se tornasse vinagre.
Talvez
os gatos dormentes não saibam aritmética
e eu, desenganado,
persevero na lisura dos ingénuos
sem nada para dar em troca
sem nada querer receber 
no avesso do contrato vago.
Talvez
amotinado contra a diatribe do capitão
teça as velas em contravenção
sem medo das represálias
destarte destinadas ao fundo poço
da indiferença.
Talvez
poucas coisas façam sentido
poucas coisas sejam sentidas
e no meio delas
seja ator desorientado no palco sem chão.
Ou talvez
o mundo seja a perfeição indiscutível
e eu sua expressão incólume.

#879

Uma frase solta:
por vezes
o armistício exigível.

#878

Uma frase solta:
o descontexto
em forma de distração.

14.1.19

Renúncia

Os telhados abertos ao sul
na apalavrada jura
devolvida ao chão.

Subsistem as fardas alinhadas
em prejuízo da nudez
e da estética.

No papel onde estão as equações
bolça-se a vítrea bílis
o desaproveitamento cabal
em marégrafos com arestas e limalhas
o propósito da conspiração.

Nas agulhas terçadas
contra as furtivas veias
vagueiam os verbos rebeldes.

Todavia
as vendas não aderem aos olhos
pois os olhos são insubmissos.

#877

A história que não se conhece
embaciada por um biombo.
Provavelmente, a melhor.

13.1.19

#876

Como funciona o luar,
o imenso rosto caiado
que desarma o labirinto da noite?

12.1.19

#875

Convence-me
que os sonhos descarnados
se alinhavam no parapeito da manhã.

11.1.19

Má fazenda

A escolta formada:
como se fosse guarda pretoriana
os chacais dando o peito às balas
(ingénuos, não sabem ao que vão)
seguidos dos mastins
que aferroam furiosamente os calcanhares
dos diletantes próceres da dissidência,
à espera que desmaiem,
suas forças consumidas,
e assim à mercê da espada severa
dos generais. 

Eis a litania dos valentes. 

Um xarope contínuo
contra o pensamento afunilado.
O melhor elixir
para o contrabando do desalinhamento.
Dos bestuntos fidalgos
os que se besuntavam em latrinas
se lhes fosse garantido o unívoco pensamento
e a amestrada condução das almas,
sem lugar a dissidências,
sobra um desdém paradoxalmente magnífico.

Atrozes destes 
não são credores de indiferença,
que a indiferença é trunfo a seu favor. 
Na tradição do melhor pano 
onde se congraça a nódoa,
esses são a nódoa
(embora julguem,
com a altivez dos figurões
que a si convocam o pergaminho da importância,
que são o melhor pano).

#874

A razão é demencial. 
Por ela tantos mataram muitos mais. 
Se razão é lenitivo da morte,
desrazão será.