4.4.19

Sob a curadoria da sombra

Quero viver na sombra. 
A coberto do ozono da visibilidade
para na rua andar
sem meu rosto ser vandalizado
no penhor do olhar desconhecido. 
Ser se não mais um rosto anónimo
no meio da indiferença 
que é o apelido do anonimato. 
Não quero nome visível.
Não quero ter janelas sem vidros
para os olhares voyeursse atirarem para dentro
e se fazerem convidados 
num festim que não é seu.
Abdico de homenagens
(se elas me forem creditadas)
sinecuras
privilégios
reconhecimentos
deferências
agradecimentos
ou paráfrases
(já para não falar de citações).
Dispenso as comendas
se houvesse caso de as haver. 
Publicamente sentencio,
para memória futura,
que não aceito que uma rua
hipoteque o meu nome,
pois se há angústia que me consome
é a de saber meu nome imortalizado
e ainda por cima
aprisionado numa sempre exígua rua. 
Protesto se me quiserem
servidor de causas públicas 
– ou de quaisquer causas, 
já que vem a talhe de foice.
Quero viver na sombra. 
Quero viver à sombra.

#990

Mergulho na tela
onde o vazio não tem cor
e sei dos sonhos que não guardo memória.

#989

O futebol não é importante.
O futebol não é. Importante.
O futebol não. É importante.
O futebol não é. Importante.

3.4.19

Jogar às crises

Parece um fingimento
a auréola que descai sobre o rosto
o ancoradouro sem âncora
a meia haste entre a euforia e a melancolia. 
Arrastava o corpo na errância
contra os mastins da memória
os apoderados dos intempestivos pesares;
não sabia das ruas andadas
nem queria saber por mandar os pés
em encruzilhadas por achar:
não podia ser a sua própria negação
e não era a luz desmaiada da alvorada
que o desmentia. 
Ao menos
o conforto que o abraçava,
o de saber que há outros,
muito mais,
que não sabem das bainhas internas
e, imersos numa anestesia mendaz,
não se configuram como casos de crise. 
Nem tudo as dores aplacam
e, assim como assim,
começou o dia com a interrogação
“alguma vez sentiste dores excruciantes?”
e não soube dizer que sim. 
Era outro conforto. 
Há crises 
que são crises apenas fingidas
as dores necessárias
de um conforto 
absurdamente esvaziado de substância. 
As crises da insubstância.

#988

Veio a chuva em seu crepúsculo
e tudo se transfigurou em veio luminoso.

2.4.19

Lume brando

Queremos ouvir
o eclipse
a madurez estendida nos braços contumazes
o quadrilátero untado de vozes pueris
as invenções sem autoria
as ideias formadas na crueza
os fantasmas virados do avesso
(e por isso já não fantasmas).

Queremos respirar
o beijo
as montanhas por perto
(dantes apenas silhuetas)
o fôlego das marés
a folga dos humildes serventuários do saber
a estrutura óssea dos escultores
a macieza da pele que cobre a cidade
a indigência refratária
o exílio improvável.

Queremos falar
das mãos
de coreografias sem regras
de um poema a duas mãos
(assumindo que uma é a que escreve)
da modesta alquimia das varandas
do interrompido grito
do miado do gato afável
das peças enferrujadas pelo desuso
do matricial desejo irrefreável.

Precisamos de ver
os teatros que dançam nas nossas mãos
os dardos inocentados
os mapas reinventados pelo olhar sarcástico
as bombas não detonadas
as preces exauridas
os devaneios não crucificados
a estultícia em nota de rodapé
a passerelle deserta
a guitarra com cordas rombas
um poço com fundo marcado
o mercado que recusa moedas
e o cintilante véu que desmente a ignorância.

Podemos cuidar
da serenidade
das lágrimas sem paradeiro
dos medos excruciantes
das janelas desamparadas
das cidades esquecidas
e das que pedem conhecimento
dos patriarcas sem sono
do alpinismo emparedado
das vítimas sem culpa
dos servis, metódicos mandatários da lógica
dos intrujões sem cobertura
dos pederastas da mentira
do cavalete das cores refrigeradas
da imensa coutada de almas revividas
sem a decrepitude que é lema da decadência.

Queremos abraçar
o veludo da esperança
a espuma das ondas do mar
os violinos que garganteiam na orquestra
as manhãs sem rebuço
os corpos inteiros e alvoraçados
a maçã do rosto centrípeta
o trovejar da alma insaciável
as palavras robustas
a gotícula que se desprende dos poros
o olhar enxuto
as estradas que dão para todos os lugares
a mirífica paisagem
na comunhão da janela entreaberta.

#987

Um refúgio
como subterfúgio
na traição da vontade.

#986

Esbracejam as palavras
ditas
com o sublinhado dos gestos.

1.4.19

Sísmico

As facas falam fundo
no inverosímil aconchego dos verbos. 
Destino ao dantes o esquecimento pretérito
e do caudal intermitente 
cobro as muralhas intemporais
as cimentadas pedras que se não estilhaçam
no nó górdio dos impostores.
Calam fundo as facas sem dó
nas varandas estéreis 
onde entoa o vento suão. 
Adormecidos os querubins irados
apetece arrotear planícies com a esteva própria
sem a condição anémica dos timoratos. 
As fundas facas contêm esse presságio:
os ramos aparados
não circuncidam o olhar sem fronteiras
é como um voo sem sobressaltos,
abstido. 
Das miragens que se prometem
quero léguas em apartado;
as fundas facas calam vozes gongóricas
e do silêncio em legado
retiro o tutano que cala as fundas facas.

#985

Arrefece a latitude
e o lado lateral do pensamento
sobe ao palco.

31.3.19

Somatório

Partilho o copo cego
no lagar das armadilhas.
Subo na vertical da parede
o arnês esquecido no novelo da coragem
e bebo a força 
no rubor que sobe ao rosto.
Não sei nada de armadilhas.
Prefiro o luar ao púlpito da hipocrisia
o entardecer ao estiolado verbo
que desfaz as palavras em nada.
Pode ser
que o valor não se exaura
nem que medre o impasse. 

#984

No começo da crónica maldita
antes do vocabulário extinto.

30.3.19

#1025

Como podes dizer
que me “conheces de ginjeira”
se não sei
da tua intimidade com a ginjeira?

Raridade

Dei ao entardecer 
a palidez com que se compôs. 
O sol prometeu-se ao amanhã. 
Deitou-se com o mar 
e fiquei à espera de o saber, 
altivo e fresco, 
misturado com o orvalho matinal.

#983

Uma coordenada GPS
pode ser um poema.

29.3.19

Transparência

Dou-me de penhor
às arcadas furtivas
onde se sobrepõem
o chão humedecido pelas lágrimas
e as cordas rombas de um vagar semântico.

Arranjo tempo que sobre
e sobre as costas das dívidas incobráveis
amontoo o património invisível
a gramática absurda que só ela faz sentido.

Penhoro à força
o sorriso fácil dos tutores da alegria
à força:
pois de tanto ser forçada
é ardil manhoso
disfarce que deles faz
flibusteiros sem remédio.

Prefiro
os rostos sem cosméticos
as vozes não falseadas em sustenidos
os verbos frontais
os medos que são medos
e todo um mar de fragilidades
a quintessência da nossa coragem.

#982

Arregaça as mangas
e descarna as veias ferventes
na exatidão de ti mesmo.

28.3.19

As bocas foram feitas para o beijo

Pediste-me um beijo
e um beijo é dever direito
o bálsamo dos amantes.
Soube das palavras hasteadas ao vento
quando as bocas se tocaram
e de um golpe só
cuidaram da hibernação do restante.
Pois se de um beijo dependesse
era vida exultante nas costuras dos braços
uma embriaguez sem recaída
todo o sistema solar cabendo nas mãos
as vírgulas que pediam ainda mais água
uma estepe farta com pequenas flores púrpura
o horizonte desenhado pelas mãos uníssonas.
Um beijo.
Não é miragem enfadonha
nem palco com chão apodrecido
ou um verbete apagado em chama decaída
ou tributo que paga recompensas;
é a voragem contida na carne dos lábios
as línguas húmidas que se entrelaçam
os corpos 
que se entregam à dança em que são peritos
e a velocidade crescente
o foguetão solar que não sai das nossas mãos
e incendeia o rastilho que não espera.
E o beijo
matriz de tudo
incenso incalculável do prazer em espera
é epilogo que incuba o retiro final.
Mas o beijo
os beijos todos
os que o foram 
e os que esperam por seu tempo
são dom imaterial a que nos agarramos.
A nossa 
droga dura.

#981

Não tiro o chapéu a ninguém
pois não sou de usar chapéus.

27.3.19

Mar de março

De todo este mar
que é tela aos meus olhos
embebo a planura sem fim
as modestas ondas como sal
do travejamento com fundas raízes. 
Do mar que é capitão
aqui sentado com a terra nas costas
como se apenas de mar fosse feita a paisagem
e deste imenso chão azul
irradiassem os nutrientes
uma forte erupção dando resguardo à alma. 
O mar como janela ampla
deitada sobre o céu
até os dois se fundirem,
sob o amparo de meus olhos testemunhas. 
Recolho do mar as sílabas cantadas
na pauta desenhada pelas ondas menores
e desse murmúrio
recupero o fôlego
cresço mais alto 
que os aviões que se inscrevem no céu. 
Estendo a mão,
como se estivesse a abrir a janela. 
E o mar estivesse contido
na minha mão já não desamparada.

#980

Medalhado,
o verbo consentido
no porão perdido da valsa intransitável.

26.3.19

#979

A senhora dos correios
desafia para uma lotaria. 
Ela recusa:
“prefiro continuar a ter sorte no amor.”

Manual de sobrevivência

É esta a contingência. 
O lugar avulso
sem a crispação dos importunados,
só as linhas púrpuras
onde se deitam estrofes arrancadas à dor. 

Não pareço os estouvados
nem treslouco a boémia reincidente;
poderia admitir
que invejo os estroinas
os múltiplos apeadeiros desandados
o altar perene 
onde estão vedadas as consumições
o aperaltado, descamisado andar dos dias
no tributo da maresia que sintetiza 
os elementos
sem o aparato das elipses enigmáticas
que ascendem desde labirintos espúrios. 

Não sou capaz,
ó fraqueza minha 
– ó franqueza que me trais
e deixas transido diante da farsa
incapaz de dela ser intérprete. 

Os minaretes
em seus cantos sonhadamente entoados
convocam a via etérea
o canto maldito
as preces opostas
as apostas na loucura desenraizada
os remos temerários que sulcam tempestuoso mar
a coragem dos estouvados
o peito aberto às pedras cuspidas
a gare que se mostra à controvérsia
a cúspide laminada na recusa do estertor
a fome contida em esboços a carvão
as espadas sempre embainharas
o rosto cristãmente oferecido
em duelos preparados para a resignação
os olhos que, todavia, não capitulam. 

Nem tudo tem a servil andança
da vergonha. 

Assim como assim
já açambarquei algumas das proezas assinaladas. 
É este o vespeiro em que estou
uma frenética valsa dos apressados
em voos rasantes uns aos outros
no vexante senado 
em que ninguém deixa de ser senador,
bolçando a indiferença que consta
do manual hodierno de sobrevivência. 

(Ou será o manual de sobrevivência hodierna?)

#978

Do rosto da trovoada
colho uma espuma fina
a raiz quadrada da sentinela.

25.3.19

As cicatrizes sem cor

Dizem que as cicatrizes
têm cor
que falam no abismo de suas arestas
que são o fertilizante de pesadelos. 

Desconheço. 

Tenho uma tese diferente. 
As cicatrizes são a pulsação irrefreável
de um imaginário
acossado pelas diversas camadas
sobrepostas umas nas outras
onde têm palavra os dissidentes da brisa serena
e se esgrimem as palavras contundentes
as frieiras que ferem as mãos
sem lhes emprestarem cicatrizes visíveis. 
Ou então
(ensina a minha tese)
as cicatrizes são curáveis
indiferentes a medicinais prescrições
ou às meritórias efabulações de peritos
em curar as consumições das almas. 

As cores das cicatrizes
são indeléveis,
apagam-se com a vontade que fala mais alto
o sublime cais onde os vestígios sem serventia,
tal como sucede à matéria desperdício,
não têm transação no trânsito das almas. 

Às cicatrizes
sobrepõe-se a pele que se renova
adesivo sem milagres
no parapeito a que se agarra a vida.

#977

Pesam toneladas
as palavras orquestradas
sabendo que são perfunctórias.

24.3.19

#976

Segundo Beltrano (anonimato resguardo),
de fonte segura.
Alguém lhe testou o ph?

A melancolia adiada

A chuva constante
(uma memória distante)
servia o rio caudaloso.
Não se entende a sequidão de agora
a magreza das paisagens
mirradas
se há por aí tantas lágrimas derramadas
no epicentro de tanta melancolia
(um desporto favorito).
Ou as coisas é que mudaram:
ou a melancolia epicentro
foi gasta 
por um arremedo de aquecimento global
ou as lágrimas secaram
no penhor da rigidez das almas.

#975

(Descartes do meliante)
Logro
logo 
ludibrio.

23.3.19

Cartada

No tira-teimas mais teimoso
duvido que as dúvidas sejam ajuda
e a ajuda não se estima
no logradouro dos orgulhosos
(que a recusam).
Podemos ser apátridas
incansáveis perseguidores de quimeras
pescadores de versos improváveis
crianças perenes sem a parte pueril
argonautas com aguçado apetite
lutadores sem arena ensanguentada
e mesmo assim
devolvem-nos ao mar
as marés com que nos ornamentam
pois sabemos que o mar
é a haste da sabedoria.
No amparo da noite desenhado pela lua
atiramos à sorte a sorte contra o azar:
não sabemos ao certo
o mapa sem fronteiras
pois as fronteiras foram dissolvidas
no verbo que se não gasta
nem com languidez do tempo.
Por isso
pesamos as sílabas
como se fossem pedras preciosas
nenhuma sílaba deixada por dizer
no ouro inteiro que é gramática onde repousam
as bocas controversas.
E voltamos ao tira-teimas:
a pedra angular por onde se verte a angústia
o medo do medo maior
a partida
irremissível, sem remédio.
Oxalá houvesse um firmamento outro
por onde prosseguir,
dizem:
uma passagem
está por onde somos
meros intérpretes de vontade que não é nossa.
Perdemos o norte, o sul
perdemos das mãos a bússola itinerante.
Podemos emaciar o rosto
no sobressalto da finitude.
Até que um golpe de asa transfigura o palco,
subitamente irreconhecível.
Adiam-se as inquietações
e um pássaro generoso,
com a cobertura de suas asas, 
tudo cobre
e na sombra se distingue o chão húmido
a morada derradeira dos que capitularam
e dos que à capitulação se encomendam.
E, enfim,
já é possível transcrever estrofes proibidas
sem o medo do medo maior
sem sermos assaltados pelos vultos algozes
e da porosidade das pedras 
que compõem a montanha
sermos tutores do devir.
Apanhamos
os contornos do desenho em que somos rostos
e descobrimos um sorriso discreto
não forçado
a aquiescência da maré que tem lugar
sem ter data no calendário.
Bebemos no verso do dia
tiramos ao tutano da vida 
tudo que nele se contém
para devolvermos em dobro
até sentirmos a ossatura firme
um calendário sem páginas por dedilhar
e do copo subimos as paredes
fazendo nele as gotas tidas por evaporadas,
do corpo habilitarmos a muralha
de onde somos feitores.
Não aprendemos a dizer adeus;
refugiamo-nos nos braços do outro
curadores do corpo nosso
e do sexo trazemos o descuidado prazer
que ensina a geografia do infinito,
em oposição
aos manuais do entendimento.
O tira-teimas 
consome-se na sua infecundidade:
que desperdício de vida
estar à espera da morte
com o medo que ela infunde.