11.4.19

Mão-de-obra

Não é emergência
o grito da cria
no úbere maternal.

Não é emergência
a chuva esforçada
no intervalo invernal.

Não é emergência
o lodo imprestável
na pia abismal.

Não é emergência
o farol bastardo
contra a haste sacrificial.

Não é emergência
a fala muda
no cemitério batismal.

Não é emergência
a prece chorosa
no resgate conventual.

Não é emergência
a voz furtiva
no palco matinal.

Não é emergência
o voto impeditivo
no clamor sacramental.

Não é emergência
o entardecer agravado
na véspera do ato final.

#999

“Os direitos do homem desnaturado”.
Ou os direitos desnaturados do homem?

10.4.19

Opúsculo

A que jogo jogamos
quando os dados são o avesso da lua?
Talvez arrumemos a barricada
a fábrica intensa dos sonhos 

– a fábrica que fabrica sonhos intensos – 

e ficamos a saber dos sortilégios em cadeia
e das inverosímeis escadas sem abismo.

A que jogo jogamos?

Oxalá os lúdicos instantes tivessem inflação
para agarrar os demónios pelos cornos
(têm-nos, não têm?)
e reduzir o marfim a quimeras
com que daria de comer aos miseráveis.

#998

O diabo paga portagem
na alfândega que guarda as almas?

#997

Como caxemira
que cai em corpo elegante,
dizer (ufano de si mesmo):
paradigma e corte epistemológico.

9.4.19

Cisma

Que cisma imóvel
o torniquete da vontade
que afivela o céu colonizado
por nuvens incessantes. 
Do cisma que se planteia
não tem recobro o respeito
como se tudo não fosse se não farsa
um fingimento sob o olhar tutelar 
do senador. 
Como locomotiva de alta tonelagem
o respeito que se aguarda
faltando só a imperativa genuflexão:
se ao menos os impropérios
tivessem devida voz
e os seus incapazes transbordassem da covardia
ah, então,
teriam império 
as palavras reprimidas
sem vírgulas de permeio
nem sílabas a salivar na boca
tudo em sua devida forma
pois aos rostos sem mácula
(os que não se apequenam 
no compasso onde se mede o inventariado)
não ficam palavras por dizer
nem meias frases a descair da boca
uma babugem pútrida,
como timorato descaimento do medo 
travado ainda a tempo
de soçobrar ao silêncio 
– ao silêncio
que é verbo do medo. 
Que ninguém se embeba 
no veneno da pesporrência
se seu desiderato for dar-se ao reconhecimento;
pois ninguém consegue sê-lo
se for seu o olvido do respeito.
Que ninguém cisme com o preceituado.

#996

Nunca avisaram
que devemos cair 
como os gatos.

8.4.19

Sentido proibido

Guardamos
na lombada do dia
o traço fino das nuvens
a baça lembrança
do porvir.

Há espadas gastas
na meada à espera de vez
e os artistas emudecem
na greve contra a febre 
das palavras.

As tochas ufanas
sublevam-se no copo mais alto
em prosa inflamada
por dentro das fogueiras que as 
ateiam.

Nos claustros
em doses razoáveis
a doçaria conventual rima
com os mendigos subtraídos
às ruas.

Não contam os verbetes rasurados
ou as estações de comboios abandonadas
na impressão venal dos cobradores
correndo até o fôlego se dissolver
dentro da tirania do vento irrecusável.

Pela noite
à hora do deitar
conto em sílabas
as palavras não ditas:
antes elas do que as palavras 
malditas.

Depois do inventário
ofereço-me aos sonhos sem paradeiro
a ossatura hibernada
na louca vertigem do insondável
em que amanhecem os sonhos.

Não saberei
se deles extraio matéria tangível
ou se prefiro o olvido
o propositado, exíguo olvido
para me não cegar com sonhos improváveis.

Hasteado numa bandeira sem rosto
exorto os cálices brandidos
a recusarem os sismos em que dançam
e resguardo-me nas ameias 
com o olhar humedecido
pelo vento montanhês.

#995

(Variação do #994)

As interrogações incomodam:
vê-las pela mão
é o eflúvio que sobe a palco.

#994

Que interrogações incómodas.
Interrogam o que está situado
e desassossegam espíritos educados
(eufemismo para “formatados”).

7.4.19

Degredo

Quem guarda a paisagem?

Quem cuida da moldura
onde está desenhada a paisagem,
quem lhe garante luminosidade?

Onde ficar
quando a paisagem se acanha
numa miríade de recantos
e quase todos ficam num esconderijo?

O que fazer
quando a paisagem ecoa
através de um vidro sujo?

Quem culpar
se a faro encontrar
vestígios de uma paisagem corrompida?

#993

(Fenícias, de Eurípides)

E todo este sangue 
lavado em lágrimas
à espera do esquecimento dos homens.

6.4.19

Chuva

Já não me lembrava 
como é a chuva. 
E agora que a vejo 
com a mediação deste vidro, 
apetece desacorrentar do conforto 
e sentir as gotas 
como se fossem as sílabas do bom tempo. 
É assim que acontece 
com as pessoas que voltam a saber 
de um bem escasso.

#992

Não é santo este porto
para o pecado seu santuário ter.

5.4.19

Avesso

Ah! 
Se ao menos fosse meu o periscópio
admitia rever os cânones
ao ser possível
através do periscópio
nadar em teorias que não vieram ao conhecimento
benzer pressuposições impensáveis
abraçar o que hoje recuso.

Na falta de periscópio
tento ter mão num microscópio.
E ter escrutínio em milimétrico detalhe
do que me é servido
e em que me sirvo.

Há alturas
em que parece só apetecer 
o que foi denegado
e do conhecimento conhecido
ser imoderado apóstata. 

#991

Pela madrugada
o hálito desigual
no perímetro da penumbra.

4.4.19

Sob a curadoria da sombra

Quero viver na sombra. 
A coberto do ozono da visibilidade
para na rua andar
sem meu rosto ser vandalizado
no penhor do olhar desconhecido. 
Ser se não mais um rosto anónimo
no meio da indiferença 
que é o apelido do anonimato. 
Não quero nome visível.
Não quero ter janelas sem vidros
para os olhares voyeursse atirarem para dentro
e se fazerem convidados 
num festim que não é seu.
Abdico de homenagens
(se elas me forem creditadas)
sinecuras
privilégios
reconhecimentos
deferências
agradecimentos
ou paráfrases
(já para não falar de citações).
Dispenso as comendas
se houvesse caso de as haver. 
Publicamente sentencio,
para memória futura,
que não aceito que uma rua
hipoteque o meu nome,
pois se há angústia que me consome
é a de saber meu nome imortalizado
e ainda por cima
aprisionado numa sempre exígua rua. 
Protesto se me quiserem
servidor de causas públicas 
– ou de quaisquer causas, 
já que vem a talhe de foice.
Quero viver na sombra. 
Quero viver à sombra.

#990

Mergulho na tela
onde o vazio não tem cor
e sei dos sonhos que não guardo memória.

#989

O futebol não é importante.
O futebol não é. Importante.
O futebol não. É importante.
O futebol não é. Importante.

3.4.19

Jogar às crises

Parece um fingimento
a auréola que descai sobre o rosto
o ancoradouro sem âncora
a meia haste entre a euforia e a melancolia. 
Arrastava o corpo na errância
contra os mastins da memória
os apoderados dos intempestivos pesares;
não sabia das ruas andadas
nem queria saber por mandar os pés
em encruzilhadas por achar:
não podia ser a sua própria negação
e não era a luz desmaiada da alvorada
que o desmentia. 
Ao menos
o conforto que o abraçava,
o de saber que há outros,
muito mais,
que não sabem das bainhas internas
e, imersos numa anestesia mendaz,
não se configuram como casos de crise. 
Nem tudo as dores aplacam
e, assim como assim,
começou o dia com a interrogação
“alguma vez sentiste dores excruciantes?”
e não soube dizer que sim. 
Era outro conforto. 
Há crises 
que são crises apenas fingidas
as dores necessárias
de um conforto 
absurdamente esvaziado de substância. 
As crises da insubstância.

#988

Veio a chuva em seu crepúsculo
e tudo se transfigurou em veio luminoso.

2.4.19

Lume brando

Queremos ouvir
o eclipse
a madurez estendida nos braços contumazes
o quadrilátero untado de vozes pueris
as invenções sem autoria
as ideias formadas na crueza
os fantasmas virados do avesso
(e por isso já não fantasmas).

Queremos respirar
o beijo
as montanhas por perto
(dantes apenas silhuetas)
o fôlego das marés
a folga dos humildes serventuários do saber
a estrutura óssea dos escultores
a macieza da pele que cobre a cidade
a indigência refratária
o exílio improvável.

Queremos falar
das mãos
de coreografias sem regras
de um poema a duas mãos
(assumindo que uma é a que escreve)
da modesta alquimia das varandas
do interrompido grito
do miado do gato afável
das peças enferrujadas pelo desuso
do matricial desejo irrefreável.

Precisamos de ver
os teatros que dançam nas nossas mãos
os dardos inocentados
os mapas reinventados pelo olhar sarcástico
as bombas não detonadas
as preces exauridas
os devaneios não crucificados
a estultícia em nota de rodapé
a passerelle deserta
a guitarra com cordas rombas
um poço com fundo marcado
o mercado que recusa moedas
e o cintilante véu que desmente a ignorância.

Podemos cuidar
da serenidade
das lágrimas sem paradeiro
dos medos excruciantes
das janelas desamparadas
das cidades esquecidas
e das que pedem conhecimento
dos patriarcas sem sono
do alpinismo emparedado
das vítimas sem culpa
dos servis, metódicos mandatários da lógica
dos intrujões sem cobertura
dos pederastas da mentira
do cavalete das cores refrigeradas
da imensa coutada de almas revividas
sem a decrepitude que é lema da decadência.

Queremos abraçar
o veludo da esperança
a espuma das ondas do mar
os violinos que garganteiam na orquestra
as manhãs sem rebuço
os corpos inteiros e alvoraçados
a maçã do rosto centrípeta
o trovejar da alma insaciável
as palavras robustas
a gotícula que se desprende dos poros
o olhar enxuto
as estradas que dão para todos os lugares
a mirífica paisagem
na comunhão da janela entreaberta.

#987

Um refúgio
como subterfúgio
na traição da vontade.

#986

Esbracejam as palavras
ditas
com o sublinhado dos gestos.

1.4.19

Sísmico

As facas falam fundo
no inverosímil aconchego dos verbos. 
Destino ao dantes o esquecimento pretérito
e do caudal intermitente 
cobro as muralhas intemporais
as cimentadas pedras que se não estilhaçam
no nó górdio dos impostores.
Calam fundo as facas sem dó
nas varandas estéreis 
onde entoa o vento suão. 
Adormecidos os querubins irados
apetece arrotear planícies com a esteva própria
sem a condição anémica dos timoratos. 
As fundas facas contêm esse presságio:
os ramos aparados
não circuncidam o olhar sem fronteiras
é como um voo sem sobressaltos,
abstido. 
Das miragens que se prometem
quero léguas em apartado;
as fundas facas calam vozes gongóricas
e do silêncio em legado
retiro o tutano que cala as fundas facas.

#985

Arrefece a latitude
e o lado lateral do pensamento
sobe ao palco.

31.3.19

Somatório

Partilho o copo cego
no lagar das armadilhas.
Subo na vertical da parede
o arnês esquecido no novelo da coragem
e bebo a força 
no rubor que sobe ao rosto.
Não sei nada de armadilhas.
Prefiro o luar ao púlpito da hipocrisia
o entardecer ao estiolado verbo
que desfaz as palavras em nada.
Pode ser
que o valor não se exaura
nem que medre o impasse. 

#984

No começo da crónica maldita
antes do vocabulário extinto.

30.3.19

#1025

Como podes dizer
que me “conheces de ginjeira”
se não sei
da tua intimidade com a ginjeira?

Raridade

Dei ao entardecer 
a palidez com que se compôs. 
O sol prometeu-se ao amanhã. 
Deitou-se com o mar 
e fiquei à espera de o saber, 
altivo e fresco, 
misturado com o orvalho matinal.