18.9.19

#1192

Trespassam-se convicções. 
Motivo: sua confirmação ao espelho.

17.9.19

Pauta

Deste-me 
um mapa
as paisagens em cores plúrimas
um diadema que veio tocar-me
e eu soube
que na morada que seríamos
seria o repouso da beleza
uma orquestra com as vozes sublimes
entoando as músicas sem acaso
num consumado beijo perene.
Deste-me
o que de valioso é património
e das mãos um feixe de luzes irrompe
o acontecimento crepuscular
sem data de validade
sem medo sequer dos medos
desenhando os deslimites do intemporal
na constelação de corpos que somos
pluralidade singular
matriz com selo cautelar.
Deste-me
as palavras sem rebordo
as palavras-refúgio
e eu do magma 
fiz levitar as bandeiras sem algemas
a tua boca saciada pela minha boca.
Quais são as casas que nos perseguem
as montras ilógicas onde a fala se desprende?
E nós, 
odes a nós mesmos,
arquitetos da safra abundante
um vulcão à beira-mar
uma maré copiosa
estandarte onde, 
serenos, 
os traços dos rostos sem reticências 
se recolhem.
Não damos caução a exemplos
que por nós somos inteiras peças
incorruptíveis ao desejo segredado
uma maré cheia que nunca esmaece
no bojo denso com magnólias a imperar
como se fôssemos nós mesmos
a avenida que nos tem por morada.
Não esbracejamos esta inteireza
que prescindimos das bandeiras que ostentam
petulância.
Somos nós
e por nós chega
na vidraça que reflete os nossos corpos
no uníssono que sabem
atestado lúcido no aroma da loucura
sem espartilhos
nem palavras banidas.
Somos
um amor
e nadamos por dentro dele
saciando a vontade de viver.

#1191

Subo ao teatro
onde os sonhos são desmentidos
no chão impreciso do palco.

16.9.19

Jam session ao entardecer

Sem regras. 
O mar imponderável 
seguido
de um imponderável mais fundo
enquanto as vozes sussurram
nomes inventados
o desmentido da erudição. 

Fala mais alto,
o espontâneo,
traduz instintos sem algemas
e a vontade de romper a ordem
no rendilhado de ameias vertidas
na intemporalidade. 

À primeira tentativa de regras,
o fautor condenado ao exílio;
essa é a única regra consentida 
– a proibição de regras,
para além daquela que as proíbe. 

Entreolham-se os confrades
à espera de um mote
à espera da refulgência da inspiração
que dê o mote
para a réplica ao mote de partida. 

A exaltação dos espíritos lisérgicos
é uma combustão
a transcendência dos olhares a desmedo
o cerzir de palavras improváveis
num intenso fervilhar 
em que se compõe o texto,
a múltiplas vozes. 

No fim,
não sobra registo
a não ser a memória efémera dos confrades,
um pedaço sem marca do tempo.
E essa 
é a segunda 
e última
das regras consentidas.

#1190

Evocação da infância:
Benny Hill a dar palmadinhas
na careca do pequeno ancião.

15.9.19

Servidão

O servo impreciso,
naipe que não vê a luz do dia,
proclama o juro estimado
a febre sem dor
e a recusa da complacência.
Oxalá desdissesse a servidão
os pactos sobrepostos à vontade
as mil e uma tergiversações
os altares que são a pauta indesejada.
Oxalá
que das servidões
sobrassem apenas os servos.

#1189

As mãos futuras,
rainhas sem coroa,
metáforas da casa sem paradeiro.

#1188

Demora-te
no fundo exercício
da tua demora.

13.9.19

#1187

Da “mão beijada”
ser metáfora do gratuito
é desonra às mãos que se beijam.

Em ponto morto

1
Começada a empreitada pelo telhado
contra os cânones
e o conselho do prior.

2
Se havia fio condutor
não era à prova de água
e o cão tresloucado tratou de o provar.

3
A iguaria merecia distinção
e os ancoradouros de outros lugares
assinaram a tinta-da-china.

4
O operário esfrega as mãos
mas não é de contentamento
é para acentuar as rugas.

5
A escola inventariou um saber
sem ajuda das prateleiras da biblioteca
na sua opacidade inútil.

6
A fortuna está nos livros,
repetiu o filósofo
enquanto ninguém lhe dava atenção.

7
A praça estava deserta
na panóplia de silêncios
de que é fautora a noite.

8
Se ao menos um livro
viesse conhecer a noite
traduzia a audácia em sabores.

9
São contemplativas as preces
menos para o sacerdote
que ferve à espera do manjar.

10
As mãos inscrevem-se nas flores
e perfumadas assentam o entardecer
na literatura experimental.

11
Não sabem nada, os turistas
a não ser emprestar mundo
à cidade que os recebe.

12
Do alto das muralhas
os rapazes admiram o rio 
só falta uma estrofe a desenhar os limites.

13
Da noite estimada
a coreografia de luzes
e a volúpia dos corpos.

14
Da alvorada anunciam-se os alicerces
por onde os cânones
interpretam os começos.

15
Desafiam-se as larvares consumições
as onomatopeias costuram as paredes
e os ascetas despem-se de pressupostos.

16
Tudo é nudez
em palavras e ideias
para ninguém ganhar vantagem.

#1186

O truque, é tudo puerilizar
para a criança feliz
(que não devia ter abandonado o corpo)
entronizar.

12.9.19

FFW (fast forward)

Penso rápido
que é pressa o comando
e ninguém gosta de ficar para trás.

Um penso rápido
para os embriões de ruína
condenados a lamber as feridas
com a saliva azedada.

Rápido, 
que pensa o ilustre
e nem desconfia
das toneladas que se esvaem
na tabuada de tanto afã.

Rápido, 
um penso
que a precipitação sangra
e há o risco
de serem cegas as cicatrizes.

#1185

Apartado postal,
a sua posição na luxúria.

(Ou um eufemismo de promiscuidade.)

#1184

Sentia-se estaleiro
a desarrumação anotada
em cadernos de encargos.

11.9.19

#1183

Desço do lado que não me pertence:
as mãos inteiras
cheias como muralhas acessíveis.

Prova de vida

Desconheço a cor da morte.
Não patrocino
as lautas indagações
sobre a escravatura que nos espera.
Não comento
as conjeturas dos esconjurados da vida.
Não perco um minuto
a providenciar sementeira
à ossatura do desencontro fatal
nesse venal penar 
que é viver à espera de morrer.

Se for preciso
faço de conta que sou imortal
(à espera 
que a ideia cavalgue sobre
o fatalismo de viúvos incorrigíveis).
Não deixo o corpo correr atrás da decadência.
Não convoco a apoplexia das doenças
antes que elas tomem conta do corpo
contra a vontade da tutela.
Não vou atrás dos rostos perdidos.
Não gloso a métrica humedecida em subsolos
e às flores encontro melhor serventia
do que serem hóspedes em cemitérios.

Não deixo o meu corpo à morte.
Juro que não serei húmus 
e em testamento lego as cinzas
à fronteira derradeira do mar aberto.
Que me encontre 
o sortilégio das ondas
e todo o sal se concentre nas partículas minhas
em avivado oceano.

Não serei morte
imortalizada no alpendre 
onde 
por junto 
jazem os demais 
já inertes.
Não serei morte.
Porque quando à morte não ser recusa
não serei consciência para da morte ter saber.
E isso
é a quimera que se congemina na morte.

#1182

O vulto desenhado na parede,
uma convulsão contra o olhar
ou o medo da covardia.

10.9.19

Testemunha ocular

O que mais gostava de ser na vida
era testemunha ocular.
Desprezava
os que se diziam 
apenas
testemunhas:
faltava-lhes a parte do “ver para crer”
e não eram confiáveis,
em decorrência.
Estavam alijados da reputação
de quem é testemunha ocular,
o estamento mais elevado
entre as porteiras.
Dizia todos os dias:
a diferença entre uma testemunha
e uma testemunha ocular
é a mitomania daquelas.
Dizia-se,
enquanto passava ao lado
da sua porteira condição.

#1181

Prospera o medo da velhice
ao entrar numa farmácia.

9.9.19

Os miseráveis (criação)

Trivial
a lamentação expedita
dos fracos, incorrigíveis ascetas
por dentro da arrumação enquistada
o solilóquio arrastado,
pesaroso,
um rosário de fragilidades a comiserar,
e a convocar comiseração 
elevada a uma qualquer potência. 
Os prantos são chamamento
achas incandescentes dentro da carne crua,
peritos na sua própria crucificação. 
Os contos 
são pedras incrustadas
nos rostos desfigurados por rugas de dor
e qualquer palavra é arrancada a ferros
um santuário de angústias em maré alta
antes que ao cais amarre um ombro condoído
para amparar o corpo combalido. 
São desamores
intrigas em que são presas
deslealdades
tresleituras de personalidade
(ou não fosse suficiente 
o caldo pestilento de que patronos)
farsas por dentro de farsas
sentimentos órfãos
a impagável ausência de insónias
a mentira persecutória,
as almas mais perdidas. 
Não esconjuram fantasmas:
os fantasmas alimentam a apoplexia 
– e o que seria dos lamentos sem fantasmas?
Descreem de si mesmos,
cúpula das misérias do mundo 
que desaguam numa só pessoa. 
Não há meio
de colorirem o rosto com um nome válido 
de ungirem as cores do dia 
com um verbo radiante
de destroçarem as fatalidades sem remédio,
e, com remédio,
em meneio de inversão total,
serem seus próprios remédios
e recolherem do céu todo o plúmbeo suor
que se verte em forma de rugas. 
Não sabem
fugir de si mesmos,
montras especiosas de farsas sem título
e dão-se de comer
os pútridos, amedrontados umbrais
que são os corpos em que se hasteiam.

#1180

A fermentação ávida
saliva à boca da noite.  

8.9.19

#1179

Ah! 
Soubesse de ermos lugares
como manobra de reanimação.

#1178

[Domingo]

Uma colherada de ócio
para desmentir a rotina.

6.9.19

Itinerário

Amanheço
num itinerário sem gramática
o motim que não se intimida
com ordens falsamente benignas.
No itinerário
esboço as palavras e os silêncios
reinvento a gramática
depois de a esvaziar.
Tirei o dia para a sublevação
e até o meu sangue protesta
de tanto tumulto,
mesmo sabendo que não é presa;
mesmo sabendo
que é a compensação contra 
os miradouros disfarçados de espionagem.
No dia findo
revejo o itinerário
e selo a marca registada
de uma gramática singular,
fundação que estiliza um devir.

#1177

Compêndio do anarquista:
contraiu o poder
e celebrou, duas vezes. 

(Contraiu, como aquisição
e contraiu, como contração.)

5.9.19

Salvo conduto

Falamos em palavras descarnadas
como se as janelas não tivessem vidros
e a fúria e a bondade de tudo
se medissem numa névoa indistinta
entre os filhos de árvores fecundas
e a tinta vertida em páginas sem fundo. 

Sabemos do paradeiro do que somos
se parecem férteis as dúvidas sobre a linhagem
a controversa assinatura armada
em notários sem rosto
e em doces gestos repetimos os reptos
de onde sorvemos o retilíneo oxigénio. 

Damo-nos ao mundo
em troca da sua generosidade;
não devemos as mortalhas despojadas
e nem em memórias tornamos viável
o resgate que muitos habilitam. 

Do lancinante esbracejar das hesitações
colhemos uma habitação,
porém temporária. 

São as janelas descarnadas
os olhos agigantados no sopé do miradouro
os sísmicos dançares, desajeitados,
as muralhas por fazer e as que passaram 
a inúteis
o fogo que teima em ser imorredoiro
todas as canções indolentes
as fadas que se confundem com sereias
circuncisadas de matéria visível
e os penhores inteiros,
aos que não transigem com o alimento provável,
em dação dos corpos nunca exangues
por serem promitentes estafetas de esculturas
o mirífico lugar que ainda está por descobrir. 

O lugar
onde não há conhecimento da palavra “mau”
nem se corre por cima dos outros
na vergonha contumaz da desconfiança. 

Lá,
o lugar sem ermo
armado na consagração dos nomes inteiros
furiosamente bondosos
inteiros,
inteiros.

#1176

Que faço eu aqui
à espera da tresloucura?

4.9.19

#1175

Concebo 
a maresia sem espinhos
os braços langorosos em espera.

Pontos cardeais

Chego de olhar segado
que medram impostores 
– mas o que sei de fingimento?

(A não ser
os não dolosos fingimentos
em que se finge não ver
quem não se quer falar.)

Habilito com cortesia
quem desenha confiança 
– mas o que sei de fingimento?

(A não ser
os lucros disfarçados de dano
ou os danos transfigurados em lucro,
ou os dois por junto.)

Prometo juros certos
aos demandantes de contendas 
– mas o que sei de bélicas desaventuras?

(A não ser
as desabridas arengas
em epistolares provocações
com irritantes figurantes.)

Projeto uma casa santuário
aos que se recolhem em meu exílio 
– mas o que sei de arquitetura?

(A não ser
o rendilhado das palavras
a dedo escolhidas em estirador
de luminosa colheita.) 

Dou coutada aos sonhos,
que vejo utópicos e idealistas em barda 
– mas o que sei de miragens?

(A não ser
as miragens dos desertos
que nunca demandei
por antinomia de geografia.)

3.9.19

Almanaque

Sou o avesso das medidas
sentinela dos pesares sem nome
aríete das danças sem coreografia
um zénite.
Arrumo a areia sem dono
a mortificada alusão ao progresso
os dentes desalinhados
sem próteses a rimar.
Anoiteço no coro inadvertido
sobre a varanda quimera
devolvo as lágrimas aos seus curadores
e explico aos improcedentes
o mistério que não quis alunar
no dorso da meditação. 
Sou o inventário da inquietação
implacável com o dorsal acomodado
estreante da fala insólita
na justaposição de alcateias e colmeias. 
Não adivinho adivinhas
nem telefono a oráculos
não obedeço a mandantes
e riposto contra a desordem sem vestígio. 
Acompanho os mares
sem seguir marés. 
E anteponho o olhar insaciável
sobre a cortina da comiseração
a pungente serenidade dos que capitulam
por ser intangível o sangue que me ferve
na balaustrada solene em que me faço palco. 
Este é o palco
em que sou mais do que matéria
o combustível imarcescível no golfo das sílabas
e terço as armas contra a solidão dos verbos
que outros desprezam. 
Entre o dia e noite
sem medidas cautelares
sem avisos com antecedência,
só o espelho radiante que dimana do meu peito.