27.1.21

#1885

[Crónicas do vírus, CDLVII]

 

Não posso mudar 

de concelho

mas posso mudar

de conselho.

#1884

[Crónicas do vírus, CDLVI]

 

A revisitação da quarentena

como pretexto 

para a procrastinação de muitos.

#1883

[Crónicas do vírus, CDLV]

 

Desaprendemos

os nomes

dos corpos outros.

26.1.21

Gigante desadormecido

Ora:

é esta filigrana

que nos deixa em cabelos de ouro

o sono que entronca nos corpos nus

diamante sem bruto capataz

uma cornucópia tatuada no peito

com um nome sem recusa,

nos olhos vigilantes

não tementes.

À hora incerta

não declaramos um êxtase na alfândega

e ninguém nos quer prender.

O lobo uiva as sílabas sopesadas

e tiramos à sorte o devir

uma senha que escolhe o sortilégio

condensando nevoeiros baços

sobre as cortinas onde se esconde

a indigência.

Por ora

sabemos as páginas onde nos escondemos:

descontamos as onomatopeias

e a pontuação em desacerto

até do fundo do rio,

decantado o lodo,

extrairmos os ossos legados:

a mais pura 

das imperfeições,

percebemos logo.

A nossa, 

incomparável e incalculável,

imperfeição.

#1882

[Crónicas do vírus, CDLIV]

 

Esta matemática

que desassossega,

almirante 

de um sinal escatológico. 

25.1.21

Manifesto contra a nudez

Açambarco a roupa

que a nudez me embaraça.

Se ao fundo do lago vou

é por saber que, 

submerso,

o corpo se resguarda

do olhar invasivo.

O corpo imerso

cuida da sua tolerância.

Não se blasona

 

(não que não houvesse 

causa própria)

 

nem se exibe

atentatório

contra o zelo da estética.

Trago a roupa ao corpo

em vergonha própria.

Diletante

capitalizo a nudez

contra o jugo do preconceito

ao lado de quem o toma 

como caução.

#1881

[Crónicas do vírus, CDLIII]

 

“Depois da peste”:

haverá

um depois da peste?

#1880

[Crónicas do vírus, CDLII]

 

Depois da peste,

recriar

ou morrer?

24.1.21

#1879

[Crónicas do vírus, CDLI]

 

A peste:

a quinta estação

contra o avoengo calendário?

23.1.21

#1878

[Crónicas do vírus, CDL]

 

O perfume da distopia:

parecer fora-de-lei

ao visitar a rua. 

À revelia

Digo-te

que me torno o alçapão

por onde se decompõe

a bandeira do ocaso

erradicando

os errantes dandies

que afocinham nas faldas do passado.

 

Digo-te

que não trago em mim

o avental descabido

nem me povoam

palavras desabridas

ou contextos milenares

ou me acorrento ao murmúrio contrafeito.

 

Já te tinha dito:

não contem comigo para

messianismos indigentes

farsas habilitadas por bem-postos senhores

concursos de malbaratada erudição

uma esgrima de emoções

ou palcos de gente meã

disfarçada de sociais galantes.

 

Digo-te

assim mesmo

que sou astronauta 

por dentro do império

recolhido em meu labirinto.

Toda esta simples complexidade

noite por dentro do dia

mentira contada a todas as mentiras

presa com armas de caça

pressentimento virado do avesso,

assíduo contumaz:

um poeta à revelia.

22.1.21

O burocrata

O burocrata

não lê poesia.

Não lê;

só lê

as detalhadas ordenanças

que estipulam o irrisório

e depois esquecem

lana caprina.

O burocrata

não tem orgasmos

(a não ser

quando lê as ordenanças

que o conduzem à excitação

e etecetera e tal).

O burocrata

não sabe o que é o mundo

nem a cor de gastronomia forasteira.

O burocrata

usa gravatas lilases.

O burocrata

respeita escrupulosamente

a monotonia.

O burocrata

sabe de cor

os corredores do bafio

e detesta fragâncias.

O burocrata

não transige na métrica

que é o seu vocabulário.

O burocrata

hiberna.

Oxalá

o burocrata

soubesse sonhar.

#1877

[Crónicas do vírus, CDXLIX]

 

Neste janeiro

só os pássaros

podem voar.

21.1.21

Motivo

Daquela angra

uma colher sobre o mar

e nem sal

nem um pouco do suor estimado

em maresias tardias.

Altivo

veio crismar

o oceano:

eram faustosas

as estrofes a ele dedicadas

mas eram apenas uma farsa:

nos fardamentos encorpados

as algas faziam de eruditos

escorregadiças,

ardilosas,

em seus cenhos de fealdade.

À doca veio encontrar-se

com a usura das marés.

Num póstumo candelabro

as virtudes apanhadas por junto,

num único molho,

reduzidas a um módico,

eram a angular estafeta

entre as ideias avulsas.

Que ninguém procurasse 

a coerência:

ninguém demandara aquele pedestal

com essa incumbência.

#1876

[Crónicas do vírus, CDXLVIII]

 

Os dias de não mais

(epifania da liberdade)

estão para quando?

20.1.21

#1875

[Crónicas do vírus, CDXLVII]

 

Jogamos o jogo

ou deixamos que outros

atirem os dados?

Justiça

Apodrecem nas mãos

as vozes estilhaçadas.

E não se insurgem

os mundos que se escondem

da indigência malsã.

 

Estilhaçam na pele

os rostos decadentes.

E não se conformam

os povoados que se fingem

no teatro ensinado.

 

Decaem no corpo

os sexos resgatados.

E não se arruínam

os desejos que se adestram

na imaginação caudalosa.

#1874

[Crónicas do vírus, CDXLVI]

 

Regressamos

às nossas torres de marfim

aquartelados contra os fantasmas.

19.1.21

Céu sanguíneo

Um céu sanguíneo

a ler o dia 

ainda matinal,

moeda franca

de um olhar sem arestas.

O céu sanguíneo

esculpe a curvatura do tempo

e ao longe

num trejeito efémero

a névoa dissolve-se

no rosto desapossado.

#1873

[Crónicas do vírus, CDXLV]

 

Para a alfaia do medo

é preciso 

(saber como)

meter medo.

18.1.21

Da frugalidade

Não tenho horas para dar

na astúcia dos dedos 

que contam o tempo destemido

empenhado pelo enrixado porvir

tutelado pelo pretérito envidraçado.

 

Não tenho nada para dar

enquanto sopeso as rugas frugais

desenhando o mapa da pele emaciada

vinificando memórias consentidas.

 

Não tenho um módico para dar

e aprovo a lanterna viva

que se arruma nos viveiros possíveis.

#1872

[Crónicas do vírus, CDXLIV]

 

Os súbditos

são o presente envenenado;

os suseranos

são o rosto da mendacidade.

17.1.21

#1871

[Crónicas do vírus, CDXLIII]

 

Ainda 

na posição de presas

à mercê de um carrasco

sem rosto.

16.1.21

#1870

[Crónicas do vírus, CDXLII]

 

Ave Maria

cheia de desgraça,

ou “povo que vais descalço”?

15.1.21

Lei da selva

No lanço certo da escada

um esquadro 

para desenhar o consentimento. 

Povoado sem toponímia

uma fábrica de desrazão

e em tudo o que é adverso

manda-se a desratização

castrar o lóbulo promissor da infâmia. 

De um jardim zoológico

plural

diria não ser visitante;

antes o mapa sem lucidez

do que os erros reprimidos,

tonturas excruciantes

que não pegam na lei da selva.

#1869

[Crónicas do vírus, CDXLI]

 

(Variante do #1869)

 

A casa,

outra vez

refúgio do medo.

#1868

[Crónicas do vírus, CDXL]

 

A casa

outra vez,

refúgio do medo.

14.1.21

Fojo

Sabias

em que dormitório

hibernava o biombo?

Era uma matéria venal

um esgar devolvido às sombras

penhor em causa própria

(ou penhor sem casa própria?)

a linhagem vetusta

dos sarcófagos sem paradeiro.

E, contudo,

servia-se o medo

às portas blindadas,

como se se arqueassem os corpos

e, em genuflexões pueris,

consagrassem os estultos sem armadura.

 

Sabias

que a mitologia

se consome na mentira?

Não eram verbos banais

os que chamavam a si a centelha puída.

Desarmávamos as esporas 

que amaldiçoavam os espíritos singulares,

recorríamos aos mais fundos punhais

para sangrar os mastins desaçaimados

que nos impediam de sermos libérrimos.

Na contabilidade prematura

arranjávamos as ferragens 

contra a decadência urdida 

pelos espantonautas.

 

Seria caso

para erguer uma cortina de espantalhos

antes que todo o tempo fosse tomado

por quem o desmerece.

#1867

[Crónicas do vírus, CDXXXIX]

 

Não é um novo vazio;

é a continuação do vazio.

 

(Amanhã, o regresso do confinamento)

13.1.21

Estatura

O acordar:

desembaraço as pestanas;

as sobras de um sonho

esperam à porta

vertidas num vulto

no crepúsculo em vão. 

 

Pergunto pelo dia. 

 

Os braços desarmam o torpor

o sangue sente o raiar

espera pelo rastilho

o acetinado forro da pele. 

O murmúrio das vozes

distante

emoldura as primeiras ruas

como se elas descongelassem

com o estio à medida das almas primeiras. 

 

Agora

as ruas já não têm só as árvores. 

E as pessoas

quase todas contrariadas

avançam 

contra a vontade

contra a manhã intrusa

preparam-se 

para os segredos por vir

sobem ao palco

principais atores

do dia que as tutela. 

 

Segredo um par de sílabas

detetive de meus sonhos

e levanto os corrimões que antecipam a tarde

no resgate da vontade,

procurador indigente dos pesares. 

 

Espero pelo entardecer

refém de um tempo estiolado:

nesta conspiração não tenho voz 

as espadas afiadas dançando sobre a cabeça

coreografando o vento sem algemas. 

 

Espero

que o entardecer segrede

a geografia do sonho de que sou véspera. 

Até ser um corpo passivo

amordaçado pela entrega do sono

vítima, 

ou algoz, 

do sonho estilhaçado. 

 

O acordar,

ato repetido;

ou o corpo dormente

bolçando 

um sonho 

por dentro de um sonho.