[Crónicas do vírus, CDLVII]
Não posso mudar
de concelho
mas posso mudar
de conselho.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Ora:
é esta filigrana
que nos deixa em cabelos de ouro
o sono que entronca nos corpos nus
diamante sem bruto capataz
uma cornucópia tatuada no peito
com um nome sem recusa,
nos olhos vigilantes
não tementes.
À hora incerta
não declaramos um êxtase na alfândega
e ninguém nos quer prender.
O lobo uiva as sílabas sopesadas
e tiramos à sorte o devir
uma senha que escolhe o sortilégio
condensando nevoeiros baços
sobre as cortinas onde se esconde
a indigência.
Por ora
sabemos as páginas onde nos escondemos:
descontamos as onomatopeias
e a pontuação em desacerto
até do fundo do rio,
decantado o lodo,
extrairmos os ossos legados:
a mais pura
das imperfeições,
percebemos logo.
A nossa,
incomparável e incalculável,
imperfeição.
[Crónicas do vírus, CDLIV]
Esta matemática
que desassossega,
almirante
de um sinal escatológico.
Açambarco a roupa
que a nudez me embaraça.
Se ao fundo do lago vou
é por saber que,
submerso,
o corpo se resguarda
do olhar invasivo.
O corpo imerso
cuida da sua tolerância.
Não se blasona
(não que não houvesse
causa própria)
nem se exibe
atentatório
contra o zelo da estética.
Trago a roupa ao corpo
em vergonha própria.
Diletante
capitalizo a nudez
contra o jugo do preconceito
ao lado de quem o toma
como caução.
Digo-te
que me torno o alçapão
por onde se decompõe
a bandeira do ocaso
erradicando
os errantes dandies
que afocinham nas faldas do passado.
Digo-te
que não trago em mim
o avental descabido
nem me povoam
palavras desabridas
ou contextos milenares
ou me acorrento ao murmúrio contrafeito.
Já te tinha dito:
não contem comigo para
messianismos indigentes
farsas habilitadas por bem-postos senhores
concursos de malbaratada erudição
uma esgrima de emoções
ou palcos de gente meã
disfarçada de sociais galantes.
Digo-te
assim mesmo
que sou astronauta
por dentro do império
recolhido em meu labirinto.
Toda esta simples complexidade
noite por dentro do dia
mentira contada a todas as mentiras
presa com armas de caça
pressentimento virado do avesso,
assíduo contumaz:
um poeta à revelia.
O burocrata
não lê poesia.
Não lê;
só lê
as detalhadas ordenanças
que estipulam o irrisório
e depois esquecem
a lana caprina.
O burocrata
não tem orgasmos
(a não ser
quando lê as ordenanças
que o conduzem à excitação
e etecetera e tal).
O burocrata
não sabe o que é o mundo
nem a cor de gastronomia forasteira.
O burocrata
usa gravatas lilases.
O burocrata
respeita escrupulosamente
a monotonia.
O burocrata
sabe de cor
os corredores do bafio
e detesta fragâncias.
O burocrata
não transige na métrica
que é o seu vocabulário.
O burocrata
hiberna.
Oxalá
o burocrata
soubesse sonhar.
Daquela angra
uma colher sobre o mar
e nem sal
nem um pouco do suor estimado
em maresias tardias.
Altivo
veio crismar
o oceano:
eram faustosas
as estrofes a ele dedicadas
mas eram apenas uma farsa:
nos fardamentos encorpados
as algas faziam de eruditos
escorregadiças,
ardilosas,
em seus cenhos de fealdade.
À doca veio encontrar-se
com a usura das marés.
Num póstumo candelabro
as virtudes apanhadas por junto,
num único molho,
reduzidas a um módico,
eram a angular estafeta
entre as ideias avulsas.
Que ninguém procurasse
a coerência:
ninguém demandara aquele pedestal
com essa incumbência.
Apodrecem nas mãos
as vozes estilhaçadas.
E não se insurgem
os mundos que se escondem
da indigência malsã.
Estilhaçam na pele
os rostos decadentes.
E não se conformam
os povoados que se fingem
no teatro ensinado.
Decaem no corpo
os sexos resgatados.
E não se arruínam
os desejos que se adestram
na imaginação caudalosa.
[Crónicas do vírus, CDXLVI]
Regressamos
às nossas torres de marfim
aquartelados contra os fantasmas.
Um céu sanguíneo
a ler o dia
ainda matinal,
moeda franca
de um olhar sem arestas.
O céu sanguíneo
esculpe a curvatura do tempo
e ao longe
num trejeito efémero
a névoa dissolve-se
no rosto desapossado.
Não tenho horas para dar
na astúcia dos dedos
que contam o tempo destemido
empenhado pelo enrixado porvir
tutelado pelo pretérito envidraçado.
Não tenho nada para dar
enquanto sopeso as rugas frugais
desenhando o mapa da pele emaciada
vinificando memórias consentidas.
Não tenho um módico para dar
e aprovo a lanterna viva
que se arruma nos viveiros possíveis.
[Crónicas do vírus, CDXLIV]
Os súbditos
são o presente envenenado;
os suseranos
são o rosto da mendacidade.
No lanço certo da escada
um esquadro
para desenhar o consentimento.
Povoado sem toponímia
uma fábrica de desrazão
e em tudo o que é adverso
manda-se a desratização
castrar o lóbulo promissor da infâmia.
De um jardim zoológico
plural
diria não ser visitante;
antes o mapa sem lucidez
do que os erros reprimidos,
tonturas excruciantes
que não pegam na lei da selva.
Sabias
em que dormitório
hibernava o biombo?
Era uma matéria venal
um esgar devolvido às sombras
penhor em causa própria
(ou penhor sem casa própria?)
a linhagem vetusta
dos sarcófagos sem paradeiro.
E, contudo,
servia-se o medo
às portas blindadas,
como se se arqueassem os corpos
e, em genuflexões pueris,
consagrassem os estultos sem armadura.
Sabias
que a mitologia
se consome na mentira?
Não eram verbos banais
os que chamavam a si a centelha puída.
Desarmávamos as esporas
que amaldiçoavam os espíritos singulares,
recorríamos aos mais fundos punhais
para sangrar os mastins desaçaimados
que nos impediam de sermos libérrimos.
Na contabilidade prematura
arranjávamos as ferragens
contra a decadência urdida
pelos espantonautas.
Seria caso
para erguer uma cortina de espantalhos
antes que todo o tempo fosse tomado
por quem o desmerece.
[Crónicas do vírus, CDXXXIX]
Não é um novo vazio;
é a continuação do vazio.
(Amanhã, o regresso do confinamento)
O acordar:
desembaraço as pestanas;
as sobras de um sonho
esperam à porta
vertidas num vulto
no crepúsculo em vão.
Pergunto pelo dia.
Os braços desarmam o torpor
o sangue sente o raiar
espera pelo rastilho
o acetinado forro da pele.
O murmúrio das vozes
distante
emoldura as primeiras ruas
como se elas descongelassem
com o estio à medida das almas primeiras.
Agora
as ruas já não têm só as árvores.
E as pessoas
quase todas contrariadas
avançam
contra a vontade
contra a manhã intrusa
preparam-se
para os segredos por vir
sobem ao palco
principais atores
do dia que as tutela.
Segredo um par de sílabas
detetive de meus sonhos
e levanto os corrimões que antecipam a tarde
no resgate da vontade,
procurador indigente dos pesares.
Espero pelo entardecer
refém de um tempo estiolado:
nesta conspiração não tenho voz
as espadas afiadas dançando sobre a cabeça
coreografando o vento sem algemas.
Espero
que o entardecer segrede
a geografia do sonho de que sou véspera.
Até ser um corpo passivo
amordaçado pela entrega do sono
vítima,
ou algoz,
do sonho estilhaçado.
O acordar,
ato repetido;
ou o corpo dormente
bolçando
um sonho
por dentro de um sonho.