[Crónicas do vírus, CDLXI]
Agora
de túnica vestido
o mundo espera.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Torre de marfim:
onde as vidraças
não cobram franquia
e as palavras se emaranham
numa gólgota medieval.
Torre de marfim:
onde,
circunspectos,
fiscais fazem a corte ao zelo
e sonham
em sonhos sem sono
com judiciosas armadilhas
onde,
impreparadas,
as pessoas são caçadas.
Torre de marfim
até ficar condenada
à verrinosa ferrugem
dos apóstolos da decadência.
“Estou pronta”,
avisou,
a profecia,
com um pé delicado porta fora
sem saber da chuva torrencial.
“Estou pronta”,
repetiu,
a profecia,
ao notar a indiferença da audiência
assim se sabendo sozinha.
“Digo outra vez:
es-tou pron-ta!”,
silabou,
a profecia,
com todo vagar,
a convocar a atenção
quase em súplica
– quase como se fosse preciso
desenhar em legendas
a gramática da advertência
que encorpava
a profecia da profecia.
Ninguém a ouviu.
Quando a profecia se abateu
o esquecimento de todos
embaciou o olhar
e ninguém deu a mão
à profecia.
À profecia
que órfã ficou.
[Crónicas do vírus, CDLVIII]
O paga do
na sede
de sermos animais sociais
é a misantropia à força.
Não prometo tréguas
se nunca dancei com a guerra.
Aos tiranetes da razão
brindo
com uma infusão de loucura
e pé ante pé
assombro-os
com o vulto de que me faço.
Aconselham
que ninguém mate com ferros
para em ferros não ser morto:
esse é o vão a que não me agarro;
deixo-o para os agiotas
que vomitam
por cima da métrica assisada.
[Crónicas do vírus, CDLVI]
A revisitação da quarentena
como pretexto
para a procrastinação de muitos.
Ora:
é esta filigrana
que nos deixa em cabelos de ouro
o sono que entronca nos corpos nus
diamante sem bruto capataz
uma cornucópia tatuada no peito
com um nome sem recusa,
nos olhos vigilantes
não tementes.
À hora incerta
não declaramos um êxtase na alfândega
e ninguém nos quer prender.
O lobo uiva as sílabas sopesadas
e tiramos à sorte o devir
uma senha que escolhe o sortilégio
condensando nevoeiros baços
sobre as cortinas onde se esconde
a indigência.
Por ora
sabemos as páginas onde nos escondemos:
descontamos as onomatopeias
e a pontuação em desacerto
até do fundo do rio,
decantado o lodo,
extrairmos os ossos legados:
a mais pura
das imperfeições,
percebemos logo.
A nossa,
incomparável e incalculável,
imperfeição.
[Crónicas do vírus, CDLIV]
Esta matemática
que desassossega,
almirante
de um sinal escatológico.
Açambarco a roupa
que a nudez me embaraça.
Se ao fundo do lago vou
é por saber que,
submerso,
o corpo se resguarda
do olhar invasivo.
O corpo imerso
cuida da sua tolerância.
Não se blasona
(não que não houvesse
causa própria)
nem se exibe
atentatório
contra o zelo da estética.
Trago a roupa ao corpo
em vergonha própria.
Diletante
capitalizo a nudez
contra o jugo do preconceito
ao lado de quem o toma
como caução.
Digo-te
que me torno o alçapão
por onde se decompõe
a bandeira do ocaso
erradicando
os errantes dandies
que afocinham nas faldas do passado.
Digo-te
que não trago em mim
o avental descabido
nem me povoam
palavras desabridas
ou contextos milenares
ou me acorrento ao murmúrio contrafeito.
Já te tinha dito:
não contem comigo para
messianismos indigentes
farsas habilitadas por bem-postos senhores
concursos de malbaratada erudição
uma esgrima de emoções
ou palcos de gente meã
disfarçada de sociais galantes.
Digo-te
assim mesmo
que sou astronauta
por dentro do império
recolhido em meu labirinto.
Toda esta simples complexidade
noite por dentro do dia
mentira contada a todas as mentiras
presa com armas de caça
pressentimento virado do avesso,
assíduo contumaz:
um poeta à revelia.
O burocrata
não lê poesia.
Não lê;
só lê
as detalhadas ordenanças
que estipulam o irrisório
e depois esquecem
a lana caprina.
O burocrata
não tem orgasmos
(a não ser
quando lê as ordenanças
que o conduzem à excitação
e etecetera e tal).
O burocrata
não sabe o que é o mundo
nem a cor de gastronomia forasteira.
O burocrata
usa gravatas lilases.
O burocrata
respeita escrupulosamente
a monotonia.
O burocrata
sabe de cor
os corredores do bafio
e detesta fragâncias.
O burocrata
não transige na métrica
que é o seu vocabulário.
O burocrata
hiberna.
Oxalá
o burocrata
soubesse sonhar.
Daquela angra
uma colher sobre o mar
e nem sal
nem um pouco do suor estimado
em maresias tardias.
Altivo
veio crismar
o oceano:
eram faustosas
as estrofes a ele dedicadas
mas eram apenas uma farsa:
nos fardamentos encorpados
as algas faziam de eruditos
escorregadiças,
ardilosas,
em seus cenhos de fealdade.
À doca veio encontrar-se
com a usura das marés.
Num póstumo candelabro
as virtudes apanhadas por junto,
num único molho,
reduzidas a um módico,
eram a angular estafeta
entre as ideias avulsas.
Que ninguém procurasse
a coerência:
ninguém demandara aquele pedestal
com essa incumbência.
Apodrecem nas mãos
as vozes estilhaçadas.
E não se insurgem
os mundos que se escondem
da indigência malsã.
Estilhaçam na pele
os rostos decadentes.
E não se conformam
os povoados que se fingem
no teatro ensinado.
Decaem no corpo
os sexos resgatados.
E não se arruínam
os desejos que se adestram
na imaginação caudalosa.
[Crónicas do vírus, CDXLVI]
Regressamos
às nossas torres de marfim
aquartelados contra os fantasmas.
Um céu sanguíneo
a ler o dia
ainda matinal,
moeda franca
de um olhar sem arestas.
O céu sanguíneo
esculpe a curvatura do tempo
e ao longe
num trejeito efémero
a névoa dissolve-se
no rosto desapossado.
Não tenho horas para dar
na astúcia dos dedos
que contam o tempo destemido
empenhado pelo enrixado porvir
tutelado pelo pretérito envidraçado.
Não tenho nada para dar
enquanto sopeso as rugas frugais
desenhando o mapa da pele emaciada
vinificando memórias consentidas.
Não tenho um módico para dar
e aprovo a lanterna viva
que se arruma nos viveiros possíveis.
[Crónicas do vírus, CDXLIV]
Os súbditos
são o presente envenenado;
os suseranos
são o rosto da mendacidade.