4.2.21

Ervas daninhas

Tirando 

as ervas daninhas

e os coevos admiradores

de aspirantes a tiranetes

fica a aveludada pista

para o tangencial amanhã.

Ao calhas

a matilha limítrofe

fareja o sinal da morte

pois a morte é mantimento.

Admirados

os representantes das farsas

passam a mão pelo amanhã

e certificam-no

com um selo arcaico.

Sem saberem

povoam-se

ervas daninhas

no seu

(próprio)

prândio. 

#1895

[Crónicas do vírus, CDLXVII]

 

As palavras imponderáveis:

zaragatoa

síncrono

confinamento

assintomático

profilático

ventilador

zoom

distanciamento

vacina.

3.2.21

O bom gigante

Deito-me à amálgama

que incendeia a boca.

Ao longe

o latido de um cão

irrompe a solidão da madrugada.

Lembro o crepúsculo de véspera

uma claridade singular, 

maduramente ocre,

agigantando-se

contra a decadência do dia;

lembro

como fiquei extasiado

e quase entoei uma prece

para tornar imorredoiro este entardecer.

Mas agora era madrugada:

a negação 

do imorredoiro, quimérico ocaso de véspera.

Entendo agora

a amálgama que não julgo ser prisão

nem labéu que me desterra

mas o manancial que semeia

a estatura maior do que sou.

#1894

[Crónicas do vírus, CDLXVI]

 

Todo este tempo depois

a suspeita 

que o devir falhará 

os hábitos do outrora.

2.2.21

#1893

[Crónicas do vírus, CDLXV]

 

Atirados

para o minimalismo

quase 

em monástica condição.

Roteiro para sair da desgraça

Não se montam escadotes

num rossio deixado ao deus-dará.

 

Os poetas esqueceram-se da chave.

 

Pelo estreito corrimão

não cabem dois pares de mãos.

 

Aos cabelos enxovalhados

atirem-se pétalas de ouro.

 

Este puré não vinga

na assembleia de Ícaro.

 

Não se elevam sacerdotes

no harém esquecido num mapa perdido.

 

Os poetas nunca foram servis.

 

Pelas avenidas apinhadas

correm as mãos desajeitadas.

 

Aos ourives apeçonhados

atirem-se cabelos desemparedados.

 

Este vinho não convence

na conferência de Eros.

 

Não se fingem astronautas

na maré rasurada das medidas.

 

Os poetas não querem um céu.

 

Pelo cais solitário

avança a matilha caiada.

 

Aos órfãos revoltados

atirem-se mães à solta.

 

Este cozinhado não se valida

no estertor de Zeus.

#1892

[Crónicas do vírus, CDLXIV]

 

Folgam 

os peixes do Douro

com a deserção dos pescadores.

1.2.21

Já não há bandeiras para estes mastros

(Trama desnacionalista)

 

As bandeiras choram.

Escamam as suas lágrimas

nos bebedouros onde se alicia

a melancolia.

Os prantos fundem-se com as preces:

ah, 

outrora lançávamos os dados

e hoje não passamos de peões

num tabuleiro onde somos

deslembrança.

As bandeiras rasgadas,

pontuação da desesperança

e só por um segundo

a grandeza,

essa tão fátua grandeza,

se levanta das teias dos manuais:

neles se encerram as suas fronteiras;

neles 

vivem os fantasmas

que resistem ao exorcismo do presente.

O futuro 

é feito do presente 

que vamos adestrando,

este o seu autêntico tirocínio.

O passado 

tem o conhecimento 

como única serventia;

não se presta

a ser a fonte ardilosa

de onde manam 

oráculos disfarçados de miasmas.

#1891

[Crónicas do vírus, CDLXIII]

 

Não chegam

as letras do alfabeto

para emoldurar 

o retrato da peste. 

31.1.21

Fora de moda

Não se diga

uma palavra

sobre as modas

que o silêncio

as devolve

as desmodas.

Na casa decimal

avalia-se o encargo

à revelia da lei,

não vá a ambição 

de estar in

perder-se na mealha rota

e acabar no entreposto

onde se arquiva 

out.

#1890

[Crónicas do vírus, CDLXII]

 

Assentamos nas ruínas

que herdámos 

da fragilidade.

30.1.21

#1889

[Crónicas do vírus, CDLXI]

 

Agora

de túnica vestido

o mundo espera.

29.1.21

Torre de marfim

Torre de marfim:

onde as vidraças

não cobram franquia

e as palavras se emaranham

numa gólgota medieval.

 

Torre de marfim:

onde, 

circunspectos,

fiscais fazem a corte ao zelo

e sonham

em sonhos sem sono

com judiciosas armadilhas

onde, 

impreparadas,

as pessoas são caçadas.

 

Torre de marfim

até ficar condenada

à verrinosa ferrugem

dos apóstolos da decadência.

#1888

[Crónicas do vírus, CDLX]

 

Um deserto

sem horizonte,

o ato isolado

que se demora.

28.1.21

A profecia que ninguém viu

“Estou pronta”,

avisou, 

a profecia,

com um pé delicado porta fora

sem saber da chuva torrencial.

“Estou pronta”,

repetiu, 

a profecia,

ao notar a indiferença da audiência

assim se sabendo sozinha.

“Digo outra vez:

es-tou pron-ta!”,

silabou, 

a profecia,

com todo vagar,

a convocar a atenção

quase em súplica

– quase como se fosse preciso

desenhar em legendas

a gramática da advertência

que encorpava

a profecia da profecia.

Ninguém a ouviu.

Quando a profecia se abateu

o esquecimento de todos

embaciou o olhar

e ninguém deu a mão 

à profecia.

À profecia

que órfã ficou.

#1887

[Crónicas do vírus, CDLIX]

 

À força

exílio,

antes que a forca.

#1886

[Crónicas do vírus, CDLVIII]

 

O paga do abuso

na sede

de sermos animais sociais

é a misantropia à força.

27.1.21

Punchline

Não prometo tréguas

se nunca dancei com a guerra.

Aos tiranetes da razão

brindo 

com uma infusão de loucura

e pé ante pé 

assombro-os

com o vulto de que me faço.

Aconselham

que ninguém mate com ferros

para em ferros não ser morto:

esse é o vão a que não me agarro;

deixo-o para os agiotas 

que vomitam 

por cima da métrica assisada. 

#1885

[Crónicas do vírus, CDLVII]

 

Não posso mudar 

de concelho

mas posso mudar

de conselho.

#1884

[Crónicas do vírus, CDLVI]

 

A revisitação da quarentena

como pretexto 

para a procrastinação de muitos.

#1883

[Crónicas do vírus, CDLV]

 

Desaprendemos

os nomes

dos corpos outros.

26.1.21

Gigante desadormecido

Ora:

é esta filigrana

que nos deixa em cabelos de ouro

o sono que entronca nos corpos nus

diamante sem bruto capataz

uma cornucópia tatuada no peito

com um nome sem recusa,

nos olhos vigilantes

não tementes.

À hora incerta

não declaramos um êxtase na alfândega

e ninguém nos quer prender.

O lobo uiva as sílabas sopesadas

e tiramos à sorte o devir

uma senha que escolhe o sortilégio

condensando nevoeiros baços

sobre as cortinas onde se esconde

a indigência.

Por ora

sabemos as páginas onde nos escondemos:

descontamos as onomatopeias

e a pontuação em desacerto

até do fundo do rio,

decantado o lodo,

extrairmos os ossos legados:

a mais pura 

das imperfeições,

percebemos logo.

A nossa, 

incomparável e incalculável,

imperfeição.

#1882

[Crónicas do vírus, CDLIV]

 

Esta matemática

que desassossega,

almirante 

de um sinal escatológico. 

25.1.21

Manifesto contra a nudez

Açambarco a roupa

que a nudez me embaraça.

Se ao fundo do lago vou

é por saber que, 

submerso,

o corpo se resguarda

do olhar invasivo.

O corpo imerso

cuida da sua tolerância.

Não se blasona

 

(não que não houvesse 

causa própria)

 

nem se exibe

atentatório

contra o zelo da estética.

Trago a roupa ao corpo

em vergonha própria.

Diletante

capitalizo a nudez

contra o jugo do preconceito

ao lado de quem o toma 

como caução.

#1881

[Crónicas do vírus, CDLIII]

 

“Depois da peste”:

haverá

um depois da peste?

#1880

[Crónicas do vírus, CDLII]

 

Depois da peste,

recriar

ou morrer?

24.1.21

#1879

[Crónicas do vírus, CDLI]

 

A peste:

a quinta estação

contra o avoengo calendário?

23.1.21

#1878

[Crónicas do vírus, CDL]

 

O perfume da distopia:

parecer fora-de-lei

ao visitar a rua. 

À revelia

Digo-te

que me torno o alçapão

por onde se decompõe

a bandeira do ocaso

erradicando

os errantes dandies

que afocinham nas faldas do passado.

 

Digo-te

que não trago em mim

o avental descabido

nem me povoam

palavras desabridas

ou contextos milenares

ou me acorrento ao murmúrio contrafeito.

 

Já te tinha dito:

não contem comigo para

messianismos indigentes

farsas habilitadas por bem-postos senhores

concursos de malbaratada erudição

uma esgrima de emoções

ou palcos de gente meã

disfarçada de sociais galantes.

 

Digo-te

assim mesmo

que sou astronauta 

por dentro do império

recolhido em meu labirinto.

Toda esta simples complexidade

noite por dentro do dia

mentira contada a todas as mentiras

presa com armas de caça

pressentimento virado do avesso,

assíduo contumaz:

um poeta à revelia.

22.1.21

O burocrata

O burocrata

não lê poesia.

Não lê;

só lê

as detalhadas ordenanças

que estipulam o irrisório

e depois esquecem

lana caprina.

O burocrata

não tem orgasmos

(a não ser

quando lê as ordenanças

que o conduzem à excitação

e etecetera e tal).

O burocrata

não sabe o que é o mundo

nem a cor de gastronomia forasteira.

O burocrata

usa gravatas lilases.

O burocrata

respeita escrupulosamente

a monotonia.

O burocrata

sabe de cor

os corredores do bafio

e detesta fragâncias.

O burocrata

não transige na métrica

que é o seu vocabulário.

O burocrata

hiberna.

Oxalá

o burocrata

soubesse sonhar.