[Crónicas do vírus, DVI]
Alívio;
ou emboscada?
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Eram as cores baças
que tingiam as açucenas
ecoando na avenida melancólica,
como se a véspera de primavera
fosse o presságio do outono.
Já se sabe
“anda tudo trocado”
e a voz popular engana-se
com estrondoso sucesso.
Se ao menos
as cores se avivassem
ninguém mentia
ao outono tardio.
Disponho os garfos fundentes
na mnemónica das mãos quentes
e faço da reserva mental,
com o aparato da discrição,
a água que emerge da maré.
Não sei quantas balas preciso
para o tear da paz;
desconfio que sejam muitas,
incontáveis balas,
murmura o engenheiro da sabedoria
enquanto à minha volta
não vejo rostos nem sinto nomes.
Revejo expressões idiomáticas;
são tão irrisórias
que mais deviam ser
expressões imbecilocráticas.
Lá vêm as balas
cobertas com o bolor dos arcanos
rangendo metáforas demenciais
convencidas que falam mais alto
do que as palavras.
As balas caem no vazio.
Espera-se que a sua quentura
seja o lugar-comum que sepulta
os estultos.
Deste fogo cruzado
não quero participação.
As vítimas inocentes,
uma contradição de termos,
são incineradas no vagão ferrugento
que desaprova a lucidez.
São a prova do bestiário
que é o palco do mundo.
[Crónicas do vírus, DIII]
Do espírito de contradição:
misantropo incorrigível,
agora
a rua era o melhor habitat.
Nunca o lixo
esteve tão perto
do luxo.
E o luxo
lambendo as feridas do lixo
perdeu a marca registada.
A franquia do luxo-lixo
tornou-se lugar-comum.
Mas ao lixo
nunca se chamava
um luxo.
Este burocrático bocejo
partilha do mesmo bacelo
a matéria nua no póstumo adiar.
O medo desarmadilhado
concebe-se na ousadia dos imberbes.
Deitam-se os números ao acaso
e o rosto cobre-se de um verbo venal:
não há nada que possa ser mudo
na consoante que desimagina um dia
o fardamento puído no mar prometido
enquanto a boca fala e fala
às catedrais fingidas no meio dos espectros.
Não quiseram cancelar deus
dentro do prazo
e ficaram com deus imorredoiro,
um deus sentado a adejar sobre eles,
sem saberem que serventia lhe dar.
Aos chamamentos contínuos
o silêncio estrutural.
Podiam não ter cancelado deus
a tempo
mas deus já os tinha desterrado
para a pátria dos mudos
(o que ia dar ao mesmo).
Não cancelaram deus
dentro do prazo:
deus antecipou-se.
E eles,
insubmissos mortais,
guardaram para si
o diamante da ousadia:
deus não está no meio de nós,
disseram em desdém,
que a eles,
mudos por divino decreto,
deus não ouvia.
[Crónicas do vírus, D]
Como a água barrenta do Douro
alvejada quando o mar a abraça,
esperamos pelo dia depois da peste.
O corso
penhora o viés
dos feiticeiros.
Em vez
de pautas autênticas
os trovadores falam
de luas esquecidas
e embaciam os olhos
em luras fingidas.
O cidadão,
disbúlico,
fermenta o paternalismo
enquanto protesta
contra a presença perene
dos mandantes.
[Crónicas do vírus, CDXCVIII]
A peste
é um parêntesis no tempo
ou a confirmação de que somos
uma grande mentira.
A caligrafia
no pranto sem meada,
visível embaraço.
Segredam:
é a apoteose
e as vírgulas parecem
estar de acordo
tal como os sábios
esquecidos da sua erudição.
Doravante,
só há planícies
– planícies e súplicas.
O riso calcificado
desamanhece,
estorva a prosápia dos aspirantes.
Se ao menos se soubesse
do paradeiro da gramática
e não houvesse terroristas do idioma
o apogeu teria lugar
para além do dicionário.
Onde o rio torce o braço
e o poente se esconde
nas costas dos socalcos
o feixe de luz habita a janela
ciciando o ocaso.
Onde o rio torce o braço;
antes que os poetas acordem
e tragam para a moldura
o bojo dos almirantes da palavra
e esta,
desenhadora,
amanheça em camadas de sentido
destronando as comendas dos avoengos.
[Crónicas do vírus, CDXCVI]
À medida que o passo avança
um deserto
que parece não ter fim
e devora a paciência.
Esconjurado o fogo ávido
os corpos deitados pelo chão
sobre tapetes puídos
exalam o sacrifício do medo
enquanto pela portada
um clarão se projeta na parede.
Até parece
que a parede
não está encardida.
Os projetos de passado
imersos no bolso do avesso
como se houvesse oráculos
e dos oráculos pudéssemos pedir
o futuro emprestado.
Não se confia na resistência de materiais
depois de tantas labaredas
e de quase tudo consumido no planalto
onde os espectros ficam longe.
Imaginamos a maré que rasteja até ao areal:
os pequenos despojos de água
fundidos na areia
como acontece
com a memória que atravessa o tempo
e se encerra em pontes herméticas,
o lugarejo ermo onde avança o rosto
contra as espadas que dinamitam o sono
em estilhaços que tornam o dia impuro.
Amanhã faz-se o resto.
A vassoura está perdida
e os vestígios ainda fumegantes
bolçam uma maldição,
uma maldição qualquer,
anónima,
ergástula,
o condoído lamento
que saciado na anemia.
Atravessam-se as portas
que se julgava fechadas.
Os amotinados não estão no lugar
– eles nunca estão em lugar algum.
Leiam-se os éditos
nos idiomas que houver por inventariar
e diga-se,
com a voz ornamentada a tinta da china,
que a enxada remexe a terra
à procura dos diamantes prometidos.
Os medos não vêm à porta
e no juramento sem cerimónia
enfeitam-se as deusas com a nudez
entre os dedos que as desenham
e as bocas vadias
que nelas encontram sede.
Parto sem as chaves da porta
não sei das marés amanhecidas
nas palavras suadas
e aos parapeitos nus devolvo
a fala.
Oxalá seja uma empreitada impura
um daqueles objetos disformes
entoando o salitre atirado longe
e contra os tiranetes categóricos arrimar
a fala.
Concebo-me fecundo aríete
nos despojos de um dia esquecido
arriscando a métrica invalida
e às Desdémonas participo o império
da fala.
No juramento sem lacre
o coração arremete contra o remoinho
onde máscaras sem sentido
patrocinam um medo que não meço
pela fala.
Chego ao estuário que extasia a boca
sem saber dos caminhos demandados
e todavia rasurei as arestas sem previsão
num anoitecer sem angústia à mercê
da fala.
Na fala que me concebe
arrumo as palavras mortas
contra as armaduras tomadas por vultos
antes que seja a espera a minha consumição
na fala em que me concebo.
Os calendários são armadilhas:
a transfusão de dias
deixam-nos desiguais.
Todavia
não consta
que fevereiro se queixe de nanismo
nem que maio ou outubro
protestem contra a engorda forjada
ou que junho e novembro
desaprovem a dieta à força
ou que dezembro e janeiro
e julho e agosto
se amotinem por serem desiguais
na alternância de meses desiguais.
Está é uma desigualdade
sem paladinos
a quererem ditar a sua correção.
[Crónicas do vírus, CDXCIII]
Damos abraços
ao pesadelo duradouro
sob o vento ancião
que protesta
um arrepio de apocalipse.
As curvas do rio
acordam da penumbra.
Ordenam as palavras dispersas
enquanto os patamares esperam:
esta noite
não é vitral do luar;
é o santuário do pecado.
Às escuras
as curvas do rio
apenas o pressentem.
[Crónicas do vírus, CDXC]
Amanhã
quando for o lugar desse amanhã
seremos anagrama
do que já fomos.