[Crónicas do vírus, DCXCVII]
Legados da peste (17):
teremos aprendido
a não verter cal
na carne viva?
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, DCXCVII]
Legados da peste (17):
teremos aprendido
a não verter cal
na carne viva?
Faço de meus pés
o planalto
onde estiola o mosto
que murmura versos
às veias incandescentes.
Desconverso a fala diuturna:
o remoço não começa
na haste fruída das flores colonizadas
mas nos baldios
onde a liberdade se antecipa.
O planalto
deixo-o sozinho
a macerar a noite.
[Crónicas do vírus, DCXCVI]
Legados da peste (16):
está por demonstrar
se mantemos a cepa
ou se traduzimos a mudança.
Os comboios
trazem notícias
que são mais
do que a soma do peso
dos passageiros.
Não são
como os fretes nos cargueiros,
muito embora a especialização em fretes
seja uma constante nos compêndios
que nos atiram como lastro.
Já a tara dos comboios
arranja-se no lastro
que se compõe do peso dos passageiros.
Os comboios
não se importam com fretes
e nem supõem
a taragem dos fretes
se pudessem saber das vidas que os habitam
transitoriamente.
(Que é um eufemismo
para o inferno são os outros
que não é lema ensinado
aos comboios).
O regatear
deixou se ser nas feiras;
emigrou
para comícios
e congressos partidários.
O capataz modula a voz
comanda as emoções do séquito
– confirmando
que o séquito não passa de um séquito
ordeiramente obediente
cimentando uma pertença
à medida dos decibéis do palestrante
que usa a batuta desde o púlpito.
[Crónicas do vírus, DCXCIV]
Legados da peste (14):
os narizes assaltados
e não é por mistelas inaladas.
[Crónicas do vírus, DCXCIII]
Legados da peste (13):
um epitáfio
a preto e branco
e o silêncio arrumado
a contemplar.
O leito
onde o rio se faz rio
entre falésias que antecipam a morte
e o doce ciciar dos corços.
Uma pequena balsa
desenha-se no rio
sem medo das fragas escondidas
arrumando o estio no orvalho ainda matinal.
As vozes sobem os penedos
alimentam-se nas arestas que ferem
mas não se intimidam com o precipício.
Onde não há afoiteza diante de contratempos
não há possibilidade de vida
nem o frémito da vontade.
[Crónicas do vírus, DCXCII]
Legados da peste (12):
como azulejos estilhaçados
à procura de estuque.
Por defeito
os palácios enganam os verbos
perdidas as algemas que eram seu
silêncio.
Na argamassa do mundo fátuo
alquimistas venerandos exibem
o elixir da quarta idade.
Os outros
desconfiam de tanta decadência
e perguntam
se podem perguntar
pelas perguntas que investem
a sabedoria.
Nas águas-furtadas,
a pátria do exílio voluntário,
o olhar perde-se onde a sepultura do rio
se mistura com o horizonte.
Poemas potenciais
iluminam a candidatura a vate,
por mais que essa não seja almejada
condição.
As janelas deixam entrar
o ar carregado de calor de agosto.
Maldita a hora
em que ordenou a filiação das janelas:
os pensamentos adormeceram
sob as pálpebras contumazes
e já não sobram palavras para completar
o poema potencial.
O presente é perfeito
e apresenta
o perfeito presente
no tempo cosmopolita
que é fusão
de antanho e porvir.
Corre a marginal
no parapeito do rio
e do sobranceiro patamar
a cidade em socalcos derrete-se
até ao caudal.
É como
se o pretérito se fundisse
no coevo
e no rio morasse
o poço sem fundo
que desarmadilha o futuro.
Até que
na irremediável, breve foz
todos os rostos se extinguem
e sobre apenas uma memória,
ela por sua vez
perecível
assim que os sedimentos são levados
para o fundo mar.
Arranquei a maldição
do meio do dia que estava.
Outros arqueiam-se
na superstição.
Não digo
êxodo.
Nem participo
com o meu corpo transido
na amálgama a que chamam
prazeres;
prefiro a enseada que se desenha
sob os poros que desinibem a respiração;
na moldura
que se justapõe aos tempos contínuos
abraço os verbos repelidos:
nunca me achei capaz
de figurar no elenco
onde quase todos participam.
Os vitrais animam a lucidez.
Ecos distantes
convocam a pele destatuada.
Não são os princípios que amparam um fim:
se soubesse com quantas candeias
se escreve o penhor
deixava-me estar sozinho
a um canto
para luzir o cenho descarregado,
o alvitre cheio de possibilidades
no mapa desarmadilhado de tempos erguidos.
Entronco no grande bazar
onde as vozes se reduzem ao murmúrio.
Coroas sem marca
marcam o cós do tempo.
Ainda estou para saber
como se leem os versos famintos
que correm no estuário desmaiado.
Julgo
que as palavras assim terçadas
explicam as águas termais do estuário.
[Crónicas do vírus, DCLXXXIX]
O rosto mau da política:
uma constante
não interrompida pela peste.
As artes dispostas no estuário
esperam pelas mãos adestradas,
esperam que as suas rugas sejam lição
antes de serem oferendas ao mar.
Os marinheiros admitem os mares a concurso.
Conhecem-nos melhor
do que as suas calejadas mãos;
é como se as mãos se deitassem aos mares
em metafórico alisar das ondas,
as mãos domadoras
dos mares que conduzem a embarcação.
Do mar alto
contam-se lendas avulsas e muitas:
diz-se
que quanto mais as rugas são ornato das mãos,
mais os mares se inclinam
aos vetustos marinheiros que os somam
sem saberem.
Os mares só gostam de levar ao seu magma
vidas se forem ainda tenras.
[Crónicas do vírus, DCLXXXVIII]
Legados da peste (10):
as impossibilidades
convivem numa fronteira sem limite.
O desmentido implícito
cimenta a mentira
contra o jugo dos hinos
que a desmentem
no leito da narrativa oficial
que deixa em banho-maria
os cínicos que o não sabem ser.
São estes os mantimentos
que advertem contra fantasmas
que apenas são fantasmas.
As palavras são uma tibieza
quando fingem as mentiras que são.
As ruas estilhaçam o sol tardio.
Amparadas na desesperança
as pessoas avançam contra o dia soturno.
Não esperam por nada.
Caladas
esgotam o chão parado
onde esperam pelo autocarro
antes que seja dia de trabalho
(antes
que seja a vez
de a rotina ter voz).
Se fosse pela noite marítima
crepuscular
impávida se iluminada pelo farol da barra
as mentiras escondiam-se de si mesmas.
Antes fosse um lugar preso ao mar
sem as amarras da terra.
Antes fossem as horas
o ponto cardeal vertiginoso
a faca madura que raspa todas as cicatrizes
deixando o mapa sem arestas.
Noturna-se a fala
no vértice diametral do medo.
As horas não são uma vertigem:
vagarosas
parecem arrastar o passado
colonizando todo o tempo
que as mãos conhecem.
[Crónicas do vírus, DCLXXXIII]
Legados da peste (7):
as bolas de cristal
a perquirir
sobre a morfologia da peste.
Saí em fiança
discípulo de parte incerta
que de minha culpa não considerei
o paradeiro.
Se fosse a forca o pedestal correto
– diz-se, em dedução pouco convincente –
o sino da obediência seria um lugar de paz
e a desordem apenas um avatar
para futura memória.
Mas em fiança
alcatifei uma recusa metódica
e do alçapão das proibições fui exilado,
antes que,
derrotado pela vergonha do que seria,
não fosse se não
desarmado capataz por inércia.
Por isso não foi exorbitante
o preço da fiança;
o exercício da liberdade
não tolera a letargia
e o consentimento tácito é a tuneladora
que enterra
e de vez
a maré caudalosa de onde se extraem
os direitos de quem se considera um ser,
um ser de corpo e alma inteiros,
que não capitulam na arena
dos ardilosos regentes.
[Crónicas do vírus, DCLXXXII]
Legados da peste (6):
o abismo maior
entre acríticos obedientes
e lunáticos cercados por conspirações.
A celebridade confessou
com jactância e comoção:
“eu gosto que os outros gostem de mim”.
Eu cá prefiro
que os outros
não saibam do meu paradeiro.