30.4.22

The driver’s seat

O prontuário

de manhãs sem nome

sobe nas bocas desassisadas

e compõe 

o terno inventário da coragem. 

Servirá

em generosas talhadas

o medo antecipatório

que das mãos aguadas

retira os verbos invencíveis.

#2380

[Crónicas do vírus, CMLXXVII]

 

Legados da peste (268):

A queda do açaime

é liberdade exercida em dobro:

uns aliviaram-se da opressão

outros mantêm o direito de o usar.

29.4.22

RPM

 

Sault, “Heart”, in https://www.youtube.com/watch?v=-5OzNTZystM

O sonho que cicia

na fronteira do ouvido

harpeja o crepitar da lareira

sem que da angústia contumaz

o dia tenha entendimento.

Os degraus movem-se

verticais

à medida que os dedos caiam

a silhueta da enseada.

Ouço palavras atropeladas

espanholadamente atropeladas

num grasnar singular

e o barco promete-se ao mar alto.

 

E quem não tem as suas enseadas?

 

Pergunto-me

silenciosamente

omitindo o bramido deslimítrofe

arrumando as cortinas que retesam a claridade

se as enseadas não são privados exílios

ocultando a multitudinária fala gongórica.

#2379

[Crónicas do vírus, CMLXXVI]

 

Legados da peste (267):

Tremenda é a empreitada

de que somos

únicos capatazes.

28.4.22

#2378

[Crónicas do vírus, CMLXXV]

 

Legados da peste (266):

Caíram os açaimes,

longa vida

à beleza e à feiura!

O cinturão negro das letras amaldiçoadas

O tratado das coisas

envergonha compêndio

de páginas amarelecidas

embota o rugido das feras

na sincronia das falas sem dicionário.

 

Trago tratado o dilema

e sem bolçar a digestão dos tempos

arremeto as cores contra o silêncio

neste lugar

que está entre mim 

e um outro eu sem paradeiro.

Azulam-se as abóbadas do olhar

em acetinadas colheres que bebem o mar

e no provérbio que dá de viver às almas

arrisco uma vírgula a destempo

arrisco o deleite do provérbio despedaçado.

 

As coisas tratadas

desembaraçam-se em páginas avulsas

páginas ainda luminosas

dando corda ao mutismo dos timoratos

na divergência das oratórias maduras.

#2377

[Crónicas do vírus, CMLXXIV]

 

Legados da peste (265):

Tudo 

não passou

de um pesadelo

que se demorou

numa passerelle encarvoada.

27.4.22

#2376

[Crónicas do vírus, CMLXXIII]

 

Legados da peste (264):

As pessoas

ganharam

(e de vez?)

vergonha na cara.

 

[Sobre os efeitos duradouros do açaime]

 

26.4.22

Um lugar chamado “Sonhos”

Passei por um autocarro 

ia para “Sonhos”.

Não sabia de um lugar

que dá pelo nome de sonhos, 

o que ditará

de seus habitantes

serem sonhadores. 

Sem nenhuma altercação do pensamento

nem figuração de fingidores a preceito. 

Se a alguém

forem visitação assídua

os pesadelos

aconselha-se 

temporada nos sonhos

para os habilitar

em detrimento dos pesadelos tentaculares.

Estou convencido:

os antepassados deram nome de sonhos

a este lugar

para um exílio haver

para os fustigados por pesadelos. 

#2375

[Crónicas do vírus, CMLXXII]

 

Legados da peste (263):

A comédia

torrencialmente precipitada

sobre a angústia.

25.4.22

Vira o voto e fica o mesmo

Peçam 

uma lavagem cerebral

um imorredoiro compêndio de instruções

semáforos diligentemente semeados

em todos os cruzamentos

instruções sobre como ser e atuar

e até como devem proceder

quando as hormonas convidam ao sexo.

 

Peçam 

regulamentos e leis e posturas

e decretos-regulamentares

e uma miríade de regras minuciosas

todas as possibilidades da vida

tatuadas no sortilégio do dedo regulador.

 

Peçam

para haver regentes em vez de pais

(ou regentes substituindo-se aos pais)

obediência religiosa a uma bandeira

educação meticulosa pelos mestres de escola

dando seguimento à bitola das autoridades

e peçam, ainda,

para as autoridades não se esquecerem

da exibição do poder de império

substituindo-se

a páginas tantas

por autoritários

 

(que o povo madraço adora “pulso forte”

como se fosse preciso 

para um qualquer onanismo místico

que cavalga no poder dos regentes).

 

Peçam

para tutelarem eufemismos

que escondam farsas bem disfarçadas

e, ato contínuo,

atirem toda a areia do Saara para os olhos

até que a capacidade de inteleção dos súbditos

fique presa por arames.

 

Nesta altura

não se esqueçam 

de pedir

o boletim de voto

e repitam

de preferência,

todo o antecedente.

#2374

[Crónicas do vírus, CMLXXI]

 

Legados da peste (262):

A pedra sobre o assunto

é à prova

de estilhaços?

24.4.22

O guarda-redes abstrato

O verbo na trave

não vá o velho improvável

acertar no buraco da agulha

e ao longe perceber

as pestanas das cortinas

que desviam o olhar para os subúrbios.

Nunca se dispensem

as mãos audazes que se metem

na frente dos provérbios sentenciais.

O guarda-redes abstrato

é um seguro de vida,

perene.

#2373

[Crónicas do vírus, CMLXX]

 

Legados da peste (261):

Herdeiros

da servidão

à mercê de uma peste.

23.4.22

Cepa direita

Às vezes

é como se precisasse

de fazer a vindima

o corpo sentido por excesso

e antes que de excessos mais

se encolerize

refém dos meus próprios degraus

habilito o silo com as sobras de mim

para memória futura. 

Outras vezes

sento-me no miradouro colateral

e dou de mim à vontade 

sem pejo

os fragmentos

os visíveis e os ocultos

no aleatório desconspirar que arremete

basilar

nos socalcos do futuro.

#2372

[Crónicas do vírus, CMLXIX]

 

Legados da peste (260):

As altas paredes da ameia

enfim logradas. 

22.4.22

Válvula de segurança

Não fosse o zero

as arestas quadradas

seriam gelo sobre as feridas

 

o milhão inteiro de profecias

sem dívida por legado

 

sem vestígios das lágrimas 

abandonadas. 

#2371

[Crónicas do vírus, CMLXVIII]

 

Legados da peste (259):

A liberdade

não ficou

esquecida. 

21.4.22

UNESCO para uso pessoal

Por esconder

o que de mais feio se contém

no humano corpo,

ao sapato

devia ser aposta a comenda

de património da humanidade. 

#2370

[Crónicas do vírus, CMLXVII]

 

Legados da peste (258):

Já pouco tempo falta

para reaprendermos 

os rostos.

20.4.22

Almamómetro

O caminho do silêncio

arroteia marés hasteadas em breve

no descolorido cenário habitado por vultos. 

Na gramática do silêncio

contam todas as sílabas

para o apuro dos déspotas. 

Descombinam-se os álibis

na congeminação perfeita dos fingimentos

sem cesuras ou outros pespontos

à espera dos promitentes do verbo hausto

à espera

dos mantimentos especulados 

nas janelas que tecem suas próprias paisagens. 

No caminho do silêncio

nem o arvoredo cicia

e não é pelo vento que se ausentou. 

Do silêncio a caminho

o poema que exulta

em frações diferidas do vocabulário loquaz

a mirífica palavra 

regida pelas ameias da alma.

#2369

[Crónicas do vírus, CMLXVI]

 

Legados da peste (257):

Prudência

como eufemismo

de teimosia 

– ou de perpetuação de poder.

19.4.22

Ph algo

Sólidas 

as cofragens

que se enchem 

na urdidura dos dedos. 

As arestas 

são aprumadas

que de ângulos mortos se estiolam

angústias sem lugar. 

Os rostos 

amontoam-se

num mapa sem nomes

sem mosto que seja mecenas 

de um inventário de sombras. 

As mãos 

agarram as sílabas

enquanto a manhã se agiganta

no otimista oblívio dos apoderados. 

Sem ser 

por remédio

a maré assustada foge 

e do mar alto ateia o dia que sobra.

#2368

[Crónicas do vírus, CMLXV]

 

Legados da peste (256):

Um espelho baço

tutela a penumbra,

a herança indesejada.

18.4.22

Tabuleiro dos boémios

Qual é 

a silhueta

da glória

se nos degraus do sono

habita uma pirotecnia magra

a estulta máscara de si

um rogo de piedade

a recusa gratuita

candeias vãs

e um rosnar.

 

Qual é

a geografia

do medo

se nos corrimões da água

se denuncia o algoz emaciado

a claraboia sem contornos

um magistrado sem toga

o tirocínio puído

poetas de giz

e um bolçar.

#2367

[Crónicas do vírus, CMLXIV]

 

Legados da peste (255):

Sobra a hipótese

de postergamento da peste

pelos seus tutores

sob pena de perderem o palco.

#2366

[Crónicas do vírus, CMLXIII]

 

Legados da peste (254):

As fragas 

nada pastoris

que arqueiam o dorso.

17.4.22

A cirurgia do medo

Os mastins

sozinhos

colonizam a cidade.

Deles é

a derradeira palavra

sentenciadores sem dó.

Talvez por serem temidos

muitos aspiram sê-lo.

O poder

sempre constituiu

a maior 

(e pior) 

embriaguez de todas.

#2365

[Crónicas do vírus, CMLXII]

 

Legados da peste (253):

Cortinas de fumo

insistentemente

vestem os palcos.

16.4.22

#2364

[Crónicas do vírus, CMLXI]

 

Legados da peste (252):

Esplanadas

sem cadeiras vazias

no remoçar da Primavera

ateando as vidas de antes.