Recebes o dia
mesmo não sabendo
se dele ficas credor.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
O comboio perdido;
promessa
venda sobreposta nas mãos
a palavra fendida
irradiando o luar fingido
nos baldios onde não há nomes.
O comboio furtivo;
ciciar dos mendigos
das almas que peticionam paradeiro
almas que dispensam o arnês
enquanto se movem
arrancando sílabas ao silêncio.
O comboio sem apeadeiro;
miragem
compêndio da loucura itinerante
dos vassalos dos lugares sem limites.
As mezinhas
são mazinhas
ainda que sejam obra
de mãezinhas
e ajuramentadas
em missinhas.
Os descendentes de Cervantes
montam nos decibéis
fazendo parecer um galinheiro
quando concorrem para um ajuntamento.
A estridência não é musical
como no caso dos herdeiros de Petrarca
mas estes
não têm o Pata Negra no património
nem as legítimas paellas.
Nos ajuntamentos
os sucessores de Goya
abrem a boca inteira
e é como se metessem a mão nas entranhas
para a voz romper a escala medida em decibéis.
Não são gestualmente espampanantes
como os herdeiros de Balzac
nem têm a linhagem de vinhos seculares
mas para a troca estes oferecem
escusadamente
um chauvinismo arcaico
ficando só três centímetros à frente
dos que vieram depois de Unamuno.
Saltaricam nas socas condimentadas do flamenco
não se envergonham de serem medievais
na desigual safra da tourada
mas é na vozearia que se desaconselha
no precato de quem previne poluição sonora
que aos sucessores de Miró se poderia suplicar
tomando de empréstimo
a súplica do outrora suserano
“por que não se calam”?
O sangue escorrega nas sombras
sem se separar da vida que não se extingue
amarrada à estrela que se chama
velocidade-luz
e, num sobressalto sem contar,
o tempo estranhamente torna-se vagaroso
como se cada centímetro da sombra
fosse entretecido na pele exposta.
Não rasguem as vestes
os tão ofendidos arcanjos
que de seus nus sobejarem
ainda menos dignificante
o espetáculo será.
Faz do ventre
o chão fértil
onde se consomem
os sentidos.
Torna ao húmus original
úbere dos desejos sem fastio
e desta seiva faz
santuário.
Corre contra as maldições
os arcanos oráculos
que irradiam os manuais
a que se deve
obediência.
Opõe-te
com a veemência dos insubmissos
a favor das desregras,
que são as regras que nos levitam.
Porque
se somos um idioma
ele é feito das estrofes
que arrancamos ao suor
as não rimas
que acertam com o ânimo da rebeldia
– só a nós devemos o débito
do que fazemos dar em crédito
ao paradeiro do que somos.
Faz do vento
da minha fala
a geografia em falta.
Do meu sangue
arranca o fermento do futuro.
À minha boca
devolve a carne extasiada
no promontório que irradia
os dias consecutivos
de perenidade.
Desenha,
nos poros da minha pele,
o idioma de que somos procuradores
e de todos os poemas em forma de beijo
estiliza,
com a elegância devida,
aos foros de que somos comandantes.
A porta do porto abriu-se
e nós
simples servidores
da fala que nos conduz
deixamos que o dia corrente
seja um oráculo
do que quisermos que ele seja.
O torrencial amanhecer
despeja sobre os sentidos
uma embriaguez inaugural
o álibi perfeito para esconjurar
a letargia.
O aparato da luz ainda timorata
ateia os ossos
desmente o impreterível torpor.
Na escassez que se convoca
fundeia-se o fósforo à espera
de ignição.
E o sangue encomenda a sua combustão
como se o dia tivesse pressa
como
se os diademas se desencontrassem
na solicitude do dia nascente.
A matéria-prima
desmente as conjugações efémeras
não sem apostar
na efemeridade de tudo.
O movimento contínuo
alimenta o viável entardecer
como se de um Outono se tratasse
a metáfora por inventar
no mosto nunca gasto
do sortilégio de cada dia inteiro.
A manhã opulenta
manhã reivindicada
reificada no deleite incomensurável
ornamentada pelas arestas
que são uma desbenção
dos pesadelos a insubmissos.
Apanhamos o primeiro barco
para a rua que alcança o dia guloso
uma gastronomia que fazemos verosímil
no coalho fértil
das paisagens sem geografia.
Como o guarda-redes aterrorizado
à la Bukowski
as pessoas recuam até à omissão
deixando a inércia como pedra tumular.
E, todavia,
ninguém intui o penalty contra elas
ou sequer consta
que são o gordo imprestável,
apenas prestável para ir à baliza.
Os olhos lacrimejam medo
transpiram medo
pintam quadros amorfos numa tela de medo.
Os apoderados pelo medo
nada sabem de História
se não tomariam por seu
o encargo que foi outrora
dos seus antepassados.
Talvez sejam apenas modestos,
dispensam a glória embebida na toponímia
em paga do legado
(que não deixam).
Do outro lado da mesa,
alguém inscreve a opinião em talha dourada:
et pur si muove
aferindo pelo musgo da tecnologia
inventada a cada minuto que tem corda.
(Ou pode ser apenas
para contrariar o pessimismo do vate.)
Oxalá esteja tudo às avessas
e por deserção do guarda-redes
(ausente da baliza)
os golos,
de tão fáceis parecerem,
e escandalosamente falhados.
A corrosão irrisória
pequena vírgula de ferrugem
e todo o pensamento decepado
por dentro da artéria centrípeta,
o seu foro estroncado sem vigilância.
Os cometas passavam
à janela dos dedos.
Passavam, sem falas angustiadas,
que não havia freguesia para lamentações
(ali não havia adoradores dos National
ou dos Cigarettes After Sex).
A tinta acabada de passar estava fresca
e ninguém se lembrou de advertir os passeantes:
“atenção, tinta fresca”
talvez por preverem
que uns estroinas noturnos
afocinhados num irredentismo lisérgico
treslessem a frase
trocassem o género
e procurassem sorver a tinta do choco
(deveras psicadélico).
Não se falasse de silêncio
aos faladores em barda:
distintos desarrumadores de assuntos
saltarilhando de um para o outro
sem pontes a reparar os abismos:
nunca tinham sede.
Deles não se falava de corrosão:
eram os maratonistas da palavra
povoando-a com uso gongórico,
autênticos arrastadores de temas em elipse,
ou em eclipse
(não se chegava a compreender,
ao certo).
O dia desmaia
em suas esmeraldas nuvens
amnistiadas pelo acobreado pressentimento
do véu crepuscular.
Deposto ao nosso olhar
o estuário testemunha
no nosso regaço.
Dizemos:
foram os nossos dedos sacrílegos
os arquitetos deste sortilégio.
Os patamares do céu arqueiam-se
nos degraus ciciados pelas palavras.
que são ouro cultivado pelas nossas bocas.
E nos corpos
levamos um pedaço de maresia
que adia o crepúsculo.
Desilusão estatística:
as estrofes rivalizam com equações
num calendário venal de legibilidade.
É como se
os números esgrimissem contra as palavras
e o eventual sangue derramado
fosse o húmus escondido sob a pele.
Mas não chega aos preparos
de uma desilusão:
nem palavras e números
esperam nada reciprocamente
nem pode haver desilusão
se para começo
nem uma ilusão fruiu.
Até ver
as palavras é que caíram
na armadilha.
Manias de aspirante a sommelier:
aprova na boca
as diferentes castas
que carregam o património da vida
como se as vidas demais
fossem aos taninos
explicar a gesta impossível.
Que veja nesta candeia
um pouco do suor tirado ao dia:
não sobrem sequer as cinzas
pois desta combustão que se inebria
sai o corpo sem cicatrizes.
Fabrica-se a hora gentil
terrível preparo dos cães de atalaia
em vez de vertigem no auge da noite.
Se soubessem
de cor
as varandas que aformoseiam o lugar
não se prestavam à poesia ilustrada,
não se destruíam em voos rasantes
sobre a temível,
e, contudo, tentadora,
decadência.
Os cigarros nunca fumados
servem de testemunha:
não se diga que não são credíveis
porque ainda estão intactos.
A solidão
é um osso indigente
um gládio metido à força
no olhar sem caução
o altivo convencimento
dos estetas de si mesmo;
dizem:
uma farsa por dentro
da doutrina do homem gregário
flor sedutora, mas afinal avidamente carnívora
o osso que não fratura
quando a fratura seria condição
da solidão enfim derrotada.
Pois nem o maior dos misantropos
concede
que a solidão seja solução.