1.8.22

#2478

Não é em gramas

que se mede

o ânimo. 

31.7.22

Marsupial

Desta pele

as escamas

sudário que se convoca

diante das provações

dos mastins em variável grau;

a pele

intensa

abecedário de resolução

o poente que promete inaugurações

poema válido

dos nomes que não se escondem

em cicatrizes

nem se tatuam com disfarces.

#2477

Não se desdenhe o arnês

que o credo na boca

não é idioma escrupuloso.

30.7.22

LCD

O ocaso

não é a mora do medo

é a véspera da glória

que se evade dos destroços.

#2476

Postergar o Verão 

é a vacina contra os incêndios.

29.7.22

Alarme

Promessa

homessa

sem vírgula

ou tomas a pílula

na trave do remédio

não vá ser tédio

e jura, mancebo

antes que te tirem o sebo.

 

Depois confessa

desta que é sua meça

a demais remessa

no patíbulo

versículo

jorna farsante

em forma de Dante.

 

No viés em que pereça

o furriel não adormeça

no baldio em que messa 

antes que desapareça.

Calendário a destempo

O dever de março é uma impostura:

a Primavera adia os tentáculos

sobrando um março que soa a janeiro 

 

– e o corpo delira

em sua exsudação estival

sonhando com uma estação 

a preceito.

O devir de julho

é açambarcar o desejo

com um inverno 

como nos bons velhos tempos.

 

(e havia tanto a dizer

sobre os bons velhos tempos,

ou o que a expressão idiomática contém,

mas hoje 

não é dia de empreitadas gongóricas.)

#2475

Recebes o dia

mesmo não sabendo

se dele ficas credor.

28.7.22

#2474

No labirinto 

de uma palavra

o rosto não fingido

de todos que somos atores.

27.7.22

#2473

Não se deixe de fora

o regatear do dia completo

para não ultrajar 

o de si sempre escasso tempo.

26.7.22

Um comboio

O comboio perdido;

promessa

venda sobreposta nas mãos

a palavra fendida

irradiando o luar fingido

nos baldios onde não há nomes. 

 

O comboio furtivo;

ciciar dos mendigos

das almas que peticionam paradeiro

almas que dispensam o arnês

enquanto se movem

arrancando sílabas ao silêncio.

 

O comboio sem apeadeiro;

miragem

compêndio da loucura itinerante

dos vassalos dos lugares sem limites. 

#2472

Corto a eito

no atalho vicejante

sem a espera da demora.

25.7.22

O reino dos agnósticos

As mezinhas

são mazinhas

ainda que sejam obra

de mãezinhas

e ajuramentadas

em missinhas.

#2471

A inauguração do dia

nas camadas que se somam

à espera que da luz desembaciada.

24.7.22

A peseta escarchada

Os descendentes de Cervantes

montam nos decibéis

fazendo parecer um galinheiro

quando concorrem para um ajuntamento. 

A estridência não é musical

como no caso dos herdeiros de Petrarca

mas estes 

não têm o Pata Negra no património

nem as legítimas paellas. 

Nos ajuntamentos

os sucessores de Goya

abrem a boca inteira 

e é como se metessem a mão nas entranhas

para a voz romper a escala medida em decibéis. 

Não são gestualmente espampanantes

como os herdeiros de Balzac

nem têm a linhagem de vinhos seculares

mas para a troca estes oferecem

escusadamente

um chauvinismo arcaico

ficando só três centímetros à frente

dos que vieram depois de Unamuno. 

Saltaricam nas socas condimentadas do flamenco

não se envergonham de serem medievais

na desigual safra da tourada

mas é na vozearia que se desaconselha

no precato de quem previne poluição sonora

que aos sucessores de Miró se poderia suplicar

tomando de empréstimo

a súplica do outrora suserano

“por que não se calam”?

#2470

Este vento

que faz escala

de sorte nenhuma

tão órfão.

23.7.22

Pele exposta

O sangue escorrega nas sombras

sem se separar da vida que não se extingue

amarrada à estrela que se chama

velocidade-luz

e, num sobressalto sem contar,

o tempo estranhamente torna-se vagaroso

como se cada centímetro da sombra

fosse entretecido na pele exposta.

#2469

Não rasguem as vestes

os tão ofendidos arcanjos

que de seus nus sobejarem

ainda menos dignificante

o espetáculo será.

22.7.22

Aluvião

Faz do ventre

o chão fértil

onde se consomem

os sentidos. 

 

Torna ao húmus original

úbere dos desejos sem fastio

e desta seiva faz 

santuário. 

 

Corre contra as maldições

os arcanos oráculos

que irradiam os manuais 

a que se deve

obediência.  

 

Opõe-te

com a veemência dos insubmissos

a favor das desregras,

que são as regras que nos levitam. 

Porque 

se somos um idioma

ele é feito das estrofes

que arrancamos ao suor

as não rimas 

que acertam com o ânimo da rebeldia 

– só a nós devemos o débito

do que fazemos dar em crédito

ao paradeiro do que somos. 

 

Faz do vento 

da minha fala

a geografia em falta. 

 

Do meu sangue

arranca o fermento do futuro. 

 

À minha boca

devolve a carne extasiada

no promontório que irradia 

os dias consecutivos 

de perenidade. 

 

Desenha,

nos poros da minha pele,

o idioma de que somos procuradores

e de todos os poemas em forma de beijo

estiliza, 

com a elegância devida,

aos foros de que somos comandantes.

 

A porta do porto abriu-se

e nós

simples servidores 

da fala que nos conduz

deixamos que o dia corrente  

seja um oráculo

do que quisermos que ele seja. 

#2468

Ah,

esta competição de metáforas

um desfile 

de mal-amanhados eruditos.

21.7.22

Lição da manhã

O torrencial amanhecer

despeja sobre os sentidos

uma embriaguez inaugural

o álibi perfeito para esconjurar

a letargia. 

O aparato da luz ainda timorata

ateia os ossos

desmente o impreterível torpor. 

Na escassez que se convoca

fundeia-se o fósforo à espera 

de ignição. 

E o sangue encomenda a sua combustão

como se o dia tivesse pressa

como 

se os diademas se desencontrassem 

na solicitude do dia nascente. 

A matéria-prima 

desmente as conjugações efémeras

não sem apostar

na efemeridade de tudo. 

O movimento contínuo 

alimenta o viável entardecer

como se de um Outono se tratasse

a metáfora por inventar

no mosto nunca gasto 

do sortilégio de cada dia inteiro. 

A manhã opulenta

manhã reivindicada

reificada no deleite incomensurável

ornamentada pelas arestas 

que são uma desbenção 

dos pesadelos a insubmissos. 

Apanhamos o primeiro barco

para a rua que alcança o dia guloso

uma gastronomia que fazemos verosímil

no coalho fértil 

das paisagens sem geografia.

#2467

Não é a mostarda

que sobe ao nariz;

é a boca que cresce 

para a mostarda.

20.7.22

Baliza aberta

Como o guarda-redes aterrorizado

à la Bukowski

as pessoas recuam até à omissão 

deixando a inércia como pedra tumular. 

E, todavia,

ninguém intui o penalty contra elas

ou sequer consta

que são o gordo imprestável,

apenas prestável para ir à baliza. 

 

Os olhos lacrimejam medo

transpiram medo

pintam quadros amorfos numa tela de medo. 

 

Os apoderados pelo medo

nada sabem de História

se não tomariam por seu 

o encargo que foi outrora 

dos seus antepassados. 

Talvez sejam apenas modestos,

dispensam a glória embebida na toponímia

em paga do legado

(que não deixam).

 

Do outro lado da mesa,

alguém inscreve a opinião em talha dourada:

et pur si muove

aferindo pelo musgo da tecnologia 

inventada a cada minuto que tem corda. 

 

(Ou pode ser apenas

para contrariar o pessimismo do vate.)

 

Oxalá esteja tudo às avessas

e por deserção do guarda-redes

(ausente da baliza)

os golos, 

de tão fáceis parecerem,

e escandalosamente falhados.  

#2466

As pedras arcaicas que falem

sem as mentiras dos Homens.

 

[Em Lecce, Itália]

19.7.22

#2465

A idade

é um lamento

assanhado a poemas

que suam a vida.

18.7.22

Anticorrosivo

A corrosão irrisória

pequena vírgula de ferrugem

e todo o pensamento decepado

por dentro da artéria centrípeta,

o seu foro estroncado sem vigilância.

 

Os cometas passavam 

à janela dos dedos.

 

Passavam, sem falas angustiadas,

que não havia freguesia para lamentações

 

(ali não havia adoradores dos National

ou dos Cigarettes After Sex).

 

A tinta acabada de passar estava fresca

e ninguém se lembrou de advertir os passeantes:

 

“atenção, tinta fresca”

 

talvez por preverem 

que uns estroinas noturnos

afocinhados num irredentismo lisérgico

treslessem a frase

trocassem o género 

e procurassem sorver a tinta do choco 

(deveras psicadélico). 

 

Não se falasse de silêncio

aos faladores em barda:

distintos desarrumadores de assuntos

saltarilhando de um para o outro

sem pontes a reparar os abismos:

 

nunca tinham sede.

 

Deles não se falava de corrosão:

eram os maratonistas da palavra

povoando-a com uso gongórico,

autênticos arrastadores de temas em elipse,

ou em eclipse

(não se chegava a compreender,

ao certo).

#2464

Das pontas soltas

as asas aninhadas no ocaso

a estrofe avinagrada. 

17.7.22

Afurada, depois do jantar

O dia desmaia

em suas esmeraldas nuvens

amnistiadas pelo acobreado pressentimento

do véu crepuscular.

Deposto ao nosso olhar

o estuário testemunha

no nosso regaço.

Dizemos:

foram os nossos dedos sacrílegos

os arquitetos deste sortilégio.

Os patamares do céu arqueiam-se

nos degraus ciciados pelas palavras.

que são ouro cultivado pelas nossas bocas.

E nos corpos

levamos um pedaço de maresia

que adia o crepúsculo. 

#2463

O desembaraço

devolve ao braço

a vontade sem baraço.

16.7.22

Desilusão estatística

Desilusão estatística:

as estrofes rivalizam com equações

num calendário venal de legibilidade.

É como se 

os números esgrimissem contra as palavras

e o eventual sangue derramado

fosse o húmus escondido sob a pele.

Mas não chega aos preparos

de uma desilusão:

nem palavras e números 

esperam nada reciprocamente

nem pode haver desilusão

se para começo 

nem uma ilusão fruiu.

Até ver

as palavras é que caíram 

na armadilha.