6.6.23

Injustiças indocumentadas (117)

Traz água no bico

(mesmo que esteja uma seca

de bradar aos céus).

#2805

Ponto e vírgula,

antes de mudar o assunto

que ainda não ficou tudo dito

sobre a pendência.

5.6.23

A viabilidade da fala

No estuário da voz

as sílabas cortam o vento

e acertam a nomenclatura

desafiando a orfandade.

Não será nesta voz

que se aninha o protesto:

o silêncio não tem gramática

e ainda que sejam viáveis

os apóstatas da cacofonia

até as palavras sem fundo

se sobrepõem ao silêncio:

o silêncio

é o pressentimento da morte.

Injustiças indocumentadas (116)

Se de bronze são

pífias são as leis.

 

[Continuação de “Injustiças indocumentadas (114)”]

Injustiças indocumentadas (115)

Se há leis de bronze

por que não as há

de prata ou de ouro?

 

[Continuação de “Injustiças indocumentadas (114)”]

Injustiças indocumentadas (114)

Uma lei é melhor

só porque é de bronze?

#2804

A armadura disfarça as fraquezas

ajuda a mentir 

com a dignidade da sua ferrugem.

4.6.23

#2803

A jogo 

sem medo

a muda 

arraia-miúda.

3.6.23

#2802

Escolha uma das seguintes

para a personalidade do momento

 

burlesco

grotesco

picaresco

 

sem justificar a escolha.

2.6.23

Valsa do peregrino

Um peregrino

 

(parecia um peregrino,

ou talvez fosse um mendigo)

 

avança devagar

apoiado na estrada.

Arruma com os pés as flores 

deixadas em bandeja no chão

como se o chão tivesse suplicado

um tapete aromático.

O peregrino

ajeita os andrajos

 

(seria um mendigo?)

 

e murmura

com ar de poucos amigos

o que ninguém consegue retirar

ao silêncio.

O peregrino

participa a solidão:

há quanto tempo

não fala com pessoas?

e esta interrogação

arbitrária como a suposição

só é válida para quem a formula.

Ninguém pode dizer ao certo

o que vai por dentro do peregrino

 

(e também não por dentro do mendigo).

 

A fivela à cintura descaiu

e o peregrino acerta-a:

não quer ficar

com as calças na mão,

o mendigo

 

(ou será o peregrino?).

#2801

Escondidos

como se fôssemos

o nosso próprio eclipse 

– não é vã,

a matéria anónima.

1.6.23

A pele do avesso

Virada a pele do avesso

um desassisado vulcão 

de frente para o precipício

sem rastilhos por atear

sem outras partidas

a servir de cais.

Do avesso

em vez de avulso

a lareira dentro da boca

e a incandescente tocha à espera de erupção

domando o sal que vem com a manhã.

Avesso me encontro

às tágides como trovoadas

inspiradoras que inspiram um avo

antes que sejam fermentadas 

pelo efémero que não entra no dicionário.

Ao vaso centrípeto

onde o sangue se deslaça

e tudo deixa de ser ontem

a pele avessada deixa de ser

em bordões de carne sem prescrição

a teimosia que derrota os mastins sem rédea.

E de volta do avesso

a pele desembaciada golpeia as uvas certeiras

antes que as abóbadas do apocalipse

sejam bilhete postal

antes

que as rodas desimpedidas sejam travejadas

no provável logro dos medos

na fatiada vida servida em fascículos

contra o princípio geral do bocejo

e a alardeada sinfonia 

dos que vão de braços em baixo.

Para saber da pele

é preciso levá-la ao avesso

extingui-la das viciosas coleções dos dias

macerá-la no vinho frágil

que a torna a mais vívida fortificação.

#2800

O vento 

foge depressa daqui

vem-se a saber

que este não é um lugar

favorito.

31.5.23

Alvoroço em gema

O alvoroço armadilha o convés

onde distraídas se congeminam as marés. 

As nuvens que desenham o céu

participam na quimera dos contumazes:

se os dedos chegassem às nuvens

conseguiam tatuá-las. 

No fundo poucos são assim

escondidos no seu labirinto

só eles conhecedores 

das meadas em que se entretecem

sem ambições de desanonimato. 

O alvoroço 

é o hino em que se amparam

ciosos de serem maiores 

do que o espelho que os retrata

na improfícua demência de julgarem

que as suas vidas 

são um teatro com audiência.

#2799

Espelhos fraturados

como se só houvesse 

retratos fragmentados

e não se falasse de inteireza.

Injustiças indocumentadas (113)

Compro gato por lebre

e que belo negócio.

 

[Mandamento do ailurófilo]

30.5.23

Metanol e Camões

Assim como o metanol:

sabia o poeta

(“o fogo que arde sem se ver”)

que havia o metanol 

– se quando o vate assim poemizou

ainda o metanol não tinha passado

no crivo das invenções.

 

Camões

foi muito à frente do seu tempo

(não é costumeira loa):

adivinhou

que o metanol seria inventado.

#2798

Quantas mentiras

foram ontem?

29.5.23

Ética republicana ao pequeno-almoço

Rega-se a mentira

com o mosto da injúria

somam-se 

umas lágrimas vadias

e fingimento q.b. 

Armadilha-se o dia 

com as esporas do medo

enquanto 

as sacerdotisas da hipocrisia

escrituram a feição avessa

e gritam

a seu favor

a verdade que não admite oposição. 

Mete-se o preparado no forno dos arnaldos

e o cronometro vai ao zero

só à espera de maturar

sob os auspícios da confraria inteira

que serve em bandeja o solilóquio dos pares

que se prometem sinecuras recíprocas

e ostentam o estandarte do monopólio 

sem não olvidarem a bandeira que vestem,

embaixadores incontestáveis 

só merecedores de encómios e genuflexões

ou não fossem

em plena vaia ao que dizem representar

juízes em causa própria,

aqueles mesmos que enchem a boca

com a palhuda massa folhada 

da ética republicana. 

#2797

Não se escondem

os rostos desembaraçados:

não precisam de golpes de Estado.

28.5.23

#2796

Em liça

a efervescência da pele

contra a agonia dos bastardos.

27.5.23

#2795

Se o rastilho ferver

e à ebulição me abraçar

os olhos vendados sabem a ler.

Injustiças indocumentadas (112)

Em suma,

o sumo

(sem pontífice).

26.5.23

Vozes-sombra

Não são as vozes que ecoam nas veias

capatazes de sismos cardíacos

de lamas que enobrecem a poluição

de bocas património de mau hálito

de granadas conspirativas 

que adormecem no travesseiro

do sangue desabilitado que esmorece

da cabeça que mergulha no chão decrépito.

As vozes

que ecoam nas veias

são o desdobramento da alma

os sucessivos alambiques que destilam estados

e atiram

para a boca de cena

a fragilidade infatigável

o desejo de ser apenas

o mais anónimo desejo 

entre os párias.

#2794

O arroz malandro

maroto

tão a jeito

de donzelas de prazeres 

omissos.

25.5.23

Ar condicionado

O xisto debruado na boca

ajeita as palavras

parecem:

estrofes;

ou um candeeiro todavia fundido

à espera de vez

no fundo do mar

sem lá ter sido encontrado

por naufrágio.

 

A boca naufraga

trémula

desajeitada

diz umas palavras desastradas

antes que na noite decrete

o silêncio

e os ardinas da luminescência arvorem

o princípio geral do universo

e a sua incontestabilidade.

 

Os rebeldes sobem à cena

tomando conta da noite

prometendo demoras

e algum vinho

jurando oposição às incontestáveis coisas

assim encenadas. 

 

As vozes disfarçadas de colibri

coonestam os penhascos que vomitam água

mesmo no auge do cachão

e em baixo o tremor contínuo

ensurdecedor

embacia as falas que ousam.

 

É melhor assim

(alvitra o visitante)

o silêncio traduz a melhor fala.  

E pensou

o que seria de um corpo em queda livre

sem arnês

à mercê do turbilhão tempestuoso

o que seria do corpo se não fosse despedaçado.

 

Um pouco à frente

mesmo depois da fina bruma 

dissipada num arco-íris

o leito amansa numa lagoa que se alarga

e as margens pedem cais 

para os destroços do cachão.

 

Mumificado

o musgo-testemunha

empresta um lugar acetinado aos visitantes.

 

Entardece.

enquanto o silvo das aves tardias

se mistura com o rumor já distante do cachão.

A boca insiste em palavras metálicas

como se fosse preciso desenjoar 

e um dia aprazível estivesse adulterado

pelo cansaço dos excessos.

 

As vozes tardias

as que foram paridas para desmanchar prazeres

começam a arrastar o oxigénio

para a falésia onde está o sono.

Tiraram a vez

aos demónios que esbracejam a farda

enquanto juram acertar contas com o futuro.

Injustiças indocumentadas (111)

Desmancha os prazeres

antes 

que os prazeres retaliem.

#2793

A tábua de salvação,

puída,

a via verde

para o precipício.

24.5.23

Pavilhão dos despertos

A genealogia da fantasia

morde na orelha do velho marinheiro.

A modista urticariamente conservadora

só arrota se estiver sozinha.

O gato maroto espreita a fêvera a descongelar

à espera de se substituir a uma humana boca.

Os circos nunca estiveram vazios.

Às medas, 

a indigência trata da toponímia do lugar.

Se ao menos lavado estivesse o lagar

não era de uvas que seriam mentidas as pernas

possivelmente

de maratonistas magros correrndo contra o mosto

à medida que os contrabandistas assobiavam

para o lado

e de lado andassem os desmerecidos foliões

arrastando a aderência malsã 

com os dentes de fora.

Combinam-se duelos de estrofes:

um atira 

a angústia perene

que se consome no pavilhão geral dos gelados

e o outro contrapõe

com a maresia que se levanta na biblioteca

sem que os estetas protestem contra a manhã.

A impressão

é que está tudo embriagado 

ou apenas louco

e ninguém sabe

se pior é estar louco ou ser embriagado.

Injustiças indocumentadas (110)

Se a mão é morta

não pode ir bater

a nenhuma porta.