6.7.20

#1649

[Crónicas do vírus, CCXX]

 

Ao Tratado de Windsor

o vírus votou a indiferença.

4.7.20

A casa abandonada

Não é assombração

a casa proeminente

alçada sobre um vão,

sobranceira ao vale. 

Podia, 

ao abandono,

ressoar um palco de fantasmas,

lendas que fruem 

no céu-da-boca das fantasias. 

A casa 

está apenas emparedada

de ausente paradeiro. 

Exibe a glória de antanho

como os impérios idos,

averbados para memória futura.

3.7.20

Casting (erro)

O colossal carrossel

desmente a demarcação

por muito 

que uns putativos eruditos

escrevam 

desmarcação. 

É no parapeito da palavra

que sucumbem

ireneus com manias de intelectuais.

#1648

[Crónicas do vírus, CCXIX]

 

E se o pior

ainda nos mantiver

de atalaia?

2.7.20

#1647

[Crónicas do vírus, CCXVIII]

 

Ficou por confirmar

que somos

seres aprendentes?

30.6.20

#1646

[Crónicas do vírus, CCXVII]

 

Já não é

crime aos costumes

o rosto por escanhoar.

#1645

[Crónicas do vírus, CCXVI]

 

Prematuro

passou a rimar com

precipitação.

27.6.20

#1644

[Crónicas do vírus, CCXV]

 

Virada 

a embriaguez de autoestima

o anátema do patinho feio.

26.6.20

#1643

[Crónicas do vírus, CCXIV]

 

Começou

a corrida contra

os números

(pois não falam

o que deviam falar).

Dorna

Revólveres frios

fogem do fogo castrense

antes que castrados sejam

homéricos parceiros

a carne para canhão judiciosa.

 

Que estátuas merecem amanhã?

 

Não se diga 

que o ontem foi pródigo

em cascatas de medo

onde a chuva se cristaliza;

não se diga

que as juras tiveram eco

salicórnia a condizer

só para enganar maleitas habituadas;

não se diga

antes do adormecer

que sultões sem espada 

perdoaram boémios

e a vastidão do mar se enamorou

do ocre pintado sob a égide do ocaso.

 

Que estátuas perecem 

no punhal dos justiceiros sem nome?

 

Escutem-se os livros da História

antes que seja narrada uma história

que se agiganta num palco sem veios.

#1642

[Crónicas do vírus, CCXIII]

 

O milagre

reduzido 

às fantasias

de sua excelência.

25.6.20

Leme

Dentro do espelho

não há raízes

apenas 

o olhar límpido

desmatado de falas sombrias.

Nado por dentro do mar

colho o sal no sangue álgido

e nem assim 

sou elemento inato;

dantes 

o mar era juramento

e um gato enrolado no sono

mestramente súbdito do areal

onde bisturis metódicos se afunilam

sabe-se lá se à procura de tesouros

ou do ouro escondido nas próprias mãos.

Tiro o estibordo com a lente baça

e as asas desembaraçam-se do vento

em boa hora,

em boa hora.

Não fossem os heróis todos mortos

e a voz perdia o gongórico véu

para se somar à pastoril montanha

que desaparece na litania do horizonte.

Mas não sou viável cruzador

neste mar temperamental

não sou marinheiro 

por medo tido por penhor 

das náuseas matinais.

É em terra

que sinto o cofre

e da tua boca bebo o manancial

a língua que se enrola na minha

e os versos que sobem à crueza da pele

em remoinhos desalinhados.

Espero pela razia dos miseráveis

e não os tenho por materiais convenções:

os miseráveis

que se convocam na jactância

no solipsismo desarranjado

na vítrea fonte onde a água se empareda.

Até posso ser errante

que da minha transumância sou garante

em nome de um nome só

o nome que adoço na boca

quando 

a boca tua na minha tem fusão.

Para depois

antes de todas as vésperas

antes

que as janelas sejam desfronteiras

e todo o vento carregado de adjetivos

esbarre nas nossas couraças

seja eu promontório.

O alto:

para que a maré

pare a tempestade.

#1641

[Crónicas do vírus, CCXII]

 

Nunca

a dúvida metódica

garantiu tantos juros.

24.6.20

#1640

[Crónicas do vírus, CCXI]

 

Há os velhos do restelo

(vem aí a segunda vaga)

e os novos do restelo

(está tudo de feição).

Reino mau

Reino mau

história sem meio

terra de um rio também mau

e de profetas esquecidos no céu da boca.

 

Reino mau

que das boas coisas

andam os ilhéus exaustos

como se por exauridos estarem

se reformassem os vidros da catedral.

 

E reino mau

que meãos são os reis e as rainhas

em sua decadente pose

por cada deca dente rasurado por sucedâneos.

 

É mau 

o reino 

por ser sucedâneo de coisa nenhuma.

 

Não deem vivas 

à república

(antes que seja tempo).

#1639

[Crónicas do vírus, CCX]

 

Pernetas,

ostentamos o acinte

quando os números nos ultrajam.

23.6.20

S. João aprisionado

Fosse o manjerico

disfarce de foice e martelo

o S. João seria rico

sem precisar de um apelo.

 

Mas não é S. João

fingimento do Avante

pois categórico não

recebeu do mandante.

 

E até um pobre dragão

obrigado à faina

falta à celebração.

 

Ó desditosa taina

adiada para futura estação

à espera da luz que amaina.

#1638

[Crónicas do vírus, CCIX]

 

A precipitação

toca aos súbditos

e toca aos suseranos.

22.6.20

Exclusão de partes

O ultraje deletério

o traje ibérico

o úbere império

o unto pindérico. 

O asno paroquial

o alvo providencial

o aipo notarial

o asco presidencial. 

A lota desarmadilhada

a luta desafiada

a lula desconfiada

a luva destronada. 

A máscara nupcial

a mistura ocidental

a maresia occipital

a mortalha temperamental. 

O mosto tardio

o mastro arredio

o marco fugidio

o magma sadio.

#1637

[Crónicas do vírus, CCVIII]

 

Não há grande mal:

no tempo dos navegadores

também era preciso

corrigir a rota.

21.6.20

Meta-entendimento

De cada vez que havia penumbra

o mosto do medo tornava-se

a saliva da extinção. 

As cortinas eram muros ermos

ao mesmo tempo muralha e algema

insensato pedaço de verbo

nas sílabas vagarosas que arrastavam o dia. 

Dizia alguém:

devias sentir o que eu sinto. 

Houvesse quem recordasse

ser um logro a demanda

por imperativo do princípio 

da intransferibilidade dos sentidos. 

Como pode alguém convocar

uma comiseração destas

a não ser na demência da dor 

que consome até os ossos?

Pode alguém conter a ideia

que as consumições se perfilham

com almas que se protestem generosas?

Os cânones são implicáveis, contudo:

a solidariedade é exigência

ainda que seja não mais

que um logro para libertar interiores dores

que mergulham 

os labirínticos corredores da alma

numa castração 

se não souberem peticionar

a piedade com as presas dos infortúnios. 

Ao que dizem

a hipocrisia sempre foi o selo dos disfarces,

o teatro supremo 

em que todas as boas almas

são alistadas. 

A hipocrisia. 

A cortina plúmbea que se abate sobre os rostos

uma pousada onde temos o rogo

das exonerações das más carnes 

que nos consomem. 

Saiba na melhor das fazendas,

a que desaproveita a densidade das interpelações,

que o logro seja meu

é que do fado inscrito no oráculo

esteja o alinhamento com o palco sem limites

onde se confecionam 

o princípio geral do fingimento.

#1636

[Crónicas do vírus, CCVII]

 

Às vezes

a marcha-atrás

é fraqueza.

Outras vezes,

vício.

#1635

[Crónicas do vírus, CCVI]

 

Acerca da cerca

por cerco 

por certo.

20.6.20

O respeito e etecetera e tal

Uma sondagem

ao império da mansuetude,

eloquente,

aviva 

o princípio geral do respeito,

Essa forca perene

o sândalo da casta

mitra dos figurões

a genuflexão imperativa.

Marx estava equivocado.

Não era a luta de classes

era 

o princípio geral do respeito

(e a menoridade interior 

pressuposta).

#1634

[Crónicas do vírus, CCV]

 

Um ponto

a favor das máscaras:

não há estados de espírito

à superfície.

19.6.20

Sobre a decadência

Espalhadas pelo chão

pétalas que são rugas

a tradução da bela decadência.

 

Como há quem deteste

o outono?

 

O chão atapetado

não mente aos comensais da estética:

um leve odor a perfume floral

sente-se em contágio

e as abelhas sabem-no

sapientes na demanda de doçura

povoando o bosque.

 

Como há quem tenha medo

das abelhas?

#1633

[Crónicas do vírus, CCIV]

 

O antigamente

nunca foi

tão perto.

18.6.20

Areia fina

O céu virado do avesso

coabita no verso venal:

 

sabemos das ruas viáveis,

emparedado o vociferar 

das ruínas campestres.

Sinais e sinais perseguem o dia

em vez das presas habituais

com a indulgência de uma trégua:

 

não se inventariam culpas

nem consolos tartamudeados

em fábulas surreais.

Não havia estrada pela frente:

 

os tempos esquálidos esvaíam-se

consumiam o oxigénio emprestado

e de dentro das casas

subíamos aos terraços

à espera do crepúsculo.

Não sejam dadas as mãos

ao tiranete destino:

 

antes uma música em penhor

o coreografar desajeitado do corpo

a poesia que não se quer treslida

e todos os lugares admitidos

à estância dos marmoreados reféns.

Ouve-se na música:

 

todos cometemos erros.

 

Antes fosse espartana mitologia

açambarcando a fragilidade dos Homens. 

#1632

[Crónicas do vírus, CCIII]

 

Chegou a vez

do estado de negação.

#1631

[Crónicas do vírus, CCII]

 

Uma máscara,

um colete à prova

de bala.