4.4.24

#3112

A fábrica do rancor

onde sangue e azedume

juram ódio perene.

3.4.24

Espelho baço

[Espelho baço,

espelho baço

diz-me 

quem a autoestima

tem em pior cadastro

do que a minha.]

 

Sei que não é poético

fazer um poema que começa por

varizes.

 

Antes que sobre mim se abatam

os anátemas

em minha defesa tenho a dizer

que só tentei ser

poeta.

#3111

Firmo a voz

na enseada matinal.

Arranco do medo

a gramática tutelar.

O choro do pássaro repentino

O choro do pássaro repentino

tantas as pontes sulcadas

entre a migração 

e onde a agulha da bússola

mandou aterrar. 

O choro

não por dor sua

antes o suar da dor dos outros

pressentida nas asas que abertas

recebiam ventos de diferentes paradeiros. 

O choro por procuração

não havendo quem queira desse choro

nem um duodécimo. 

O choro,

generoso 

antes de o pássaro 

querer aninhar na casa da partida.

2.4.24

Injustiças indocumentadas (322)

Um número redondo

é contra 

o seu quadrado.

#3110

Deixa o apogeu

como marca de água

a moldura que se aviva

na pele tatuada.

1.4.24

Gramática noturna

Na noite órfã, 

o sono perdeu o chão

para a rebeldia da insónia.

 

Depois da hora adiada

as paredes alvas desmaiam

e às mãos despoja-se a capitulação.

 

Sem a conjura dos demónios

avanço uma pétala

contra o penhor da noite.

Injustiças indocumentadas (321)

O medo

            existe.

 

Não

            o medo.

 

Existe

            o medo

                        não.

 

O medo

não

            existe.

#3109

Cabelos soltos

o vento que fala,

ou apenas 

uma miragem.

31.3.24

#3108

Muda a hora.

Muda,

uma hora.

A hora

não muda.

30.3.24

#3107

A luz rouca

numa fotografia

desenhada a preto e branco.

29.3.24

Injustiças indocumentadas (320)

Se o diabo

vendesse a alma

era licitação para demorar.

#3106

Às vezes

é preciso inventar

odisseias.

28.3.24

#3105

Nómada no lugar certo

esbracejo não-bandeiras

atiço o idioma recauchutado

beijo o amanhã desafiado.

27.3.24

Atribuições

Dar à corda

toda

imerso na audácia

e das baias do dia

trazer

mel que adoça a pele

e a ousadia

que sinaliza a coragem.

#3104

Deixa o sangue correr

as sílabas no seu tempo certo

o amanhã ser a fotografia capaz

um nome a estrofe prometida.

26.3.24

Ricochete

A sucata ordena o feixe da decadência. 

Não importa,

temos o destino cinzelado

no horizonte no seguimento do nariz. 

As luas sobrepõem-se

falam mais alto que as trevas. 

Todas as mãos são anónimas. 

Não há autoria

nem o embelezamento improfícuo

de personalidades exacerbadas 
no sangue em que correm. 

Diremos amanhã

Para a ata das intenções ditaremos

talvez

impropérios

agastados que estamos. 

Seremos

 

(pode ser dito sem recearmos represálias) 

 

dissidentes. 

Dissidentes

a começar

de nós mesmos. 

Injustiças indocumentadas (319)

Ninguém

morre

de amor(es).

#3103

A escultura 

muito assisada

com ares de exemplo

e nós deste lado

militantes da impureza. 

25.3.24

Injustiças indocumentadas (318)

As graças

não são todas

de graça.

Armadilha

Cabeçalho, cabeçudo

cabeção, cabisbaixo

canhestro, calhorda

sinistro, santeiro

simiesco, sinaleiro

armeiro, arabesco

alfândega, alentejano

bardo, bago

batráquio, balsa

poejo, paróquia

parteira, perfunctório.  

#3102

O norte 

pedia luar

como a noite

descerra o silêncio.

24.3.24

#3101

O embaixador

roeu a corda

mostrando

que para chegar a rato

não é preciso ser rato.

23.3.24

#3100

Os apóstolos do ambiente

calados

estranhamente calados

não acusam a cocaína

que polui as águas do Porto.

22.3.24

A alma vestida a rigor

A alma vestida a rigor

dança só quando chove

abraçada ao vento iracundo

remexendo entre as nuvens gastas

prometendo o anoitecer em forma de verso. 

 

A alma

vestida a rigor

não desmente o estremecimento

quando o rio combina com o luar

e um prateado braço de água escorrega

até à foz

onde se confirmam os pesadelos arrematados. 

 

A alma

vestida

a rigor

no exato testamento

das flores colhidas

dos entes a caminho de queridos

da frugalidade 

que ensina a ver depois do espelho baço

adormecendo com o murmúrio do entardecer

adormecendo

abraçando aos sonhos exilados

na exaltação que se cola à pele desadormecida. 


Porque

a alma 

está

vestida

a rigor.

Injustiças indocumentadas (317)

A literatura

não rima

com ditadura.

#3099

Ajeita-se a podridão precoce

a espuma pútrida na boca do peixe

um certo odor a apocalipse.

21.3.24

Vate (absolvição)

O poema

é as nossas mãos

que se fundem 

na véspera da loucura. 

 

O poema

é o silêncio que colonizou 

estrofes. 

 

O poema 

é a rua inaugurada

no despontar da cidade. 

 

O poema

é a manhã que levita

sobre os sonhos limítrofes. 

 

O poema

é um verso singular

tatuado no coração amplo. 

 

O poema

é o piano que ensinamos

a quatro mãos. 

 

O poema

é a escultura

em que nos tornamos

o marco geodésico adivinhado

o cais terminal sem gramática por baixo

a entardecida jarra onde nadam

as flores robustas. 

 

O poema

é matéria-prima 

constante

um sinal sem trânsito

dieta que não pede regras

o poema armilar

a esbracejar a alma combustível

no parapeito do amanhã. 

 

O poema

não precisa de poeta

só precisa

dos nossos olhares impuros

alfaiates da métrica em desuso

pátria maternal das manhãs ateadas

no incenso sussurrado 

pelas nossas bocas. 

 

O poema

não precisa

de poetas

se nós lhe demos

corpo.

#3098

O poema que fala

através da fala

que se emudece no poema.

20.3.24

Injustiças indocumentadas (316)

Tirou nabos da púcara

e não foi

para cozinhar um caldo.