[Crónicas do vírus, CCXVII]
Já não é
crime aos costumes
o rosto por escanhoar.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, CCXIV]
Começou
a corrida contra
os números
(pois não falam
o que deviam falar).
Revólveres frios
fogem do fogo castrense
antes que castrados sejam
homéricos parceiros
a carne para canhão judiciosa.
Que estátuas merecem amanhã?
Não se diga
que o ontem foi pródigo
em cascatas de medo
onde a chuva se cristaliza;
não se diga
que as juras tiveram eco
salicórnia a condizer
só para enganar maleitas habituadas;
não se diga
antes do adormecer
que sultões sem espada
perdoaram boémios
e a vastidão do mar se enamorou
do ocre pintado sob a égide do ocaso.
Que estátuas perecem
no punhal dos justiceiros sem nome?
Escutem-se os livros da História
antes que seja narrada uma história
que se agiganta num palco sem veios.
Dentro do espelho
não há raízes
apenas
o olhar límpido
desmatado de falas sombrias.
Nado por dentro do mar
colho o sal no sangue álgido
e nem assim
sou elemento inato;
dantes
o mar era juramento
e um gato enrolado no sono
mestramente súbdito do areal
onde bisturis metódicos se afunilam
sabe-se lá se à procura de tesouros
ou do ouro escondido nas próprias mãos.
Tiro o estibordo com a lente baça
e as asas desembaraçam-se do vento
em boa hora,
em boa hora.
Não fossem os heróis todos mortos
e a voz perdia o gongórico véu
para se somar à pastoril montanha
que desaparece na litania do horizonte.
Mas não sou viável cruzador
neste mar temperamental
não sou marinheiro
por medo tido por penhor
das náuseas matinais.
É em terra
que sinto o cofre
e da tua boca bebo o manancial
a língua que se enrola na minha
e os versos que sobem à crueza da pele
em remoinhos desalinhados.
Espero pela razia dos miseráveis
e não os tenho por materiais convenções:
os miseráveis
que se convocam na jactância
no solipsismo desarranjado
na vítrea fonte onde a água se empareda.
Até posso ser errante
que da minha transumância sou garante
em nome de um nome só
o nome que adoço na boca
quando
a boca tua na minha tem fusão.
Para depois
antes de todas as vésperas
antes
que as janelas sejam desfronteiras
e todo o vento carregado de adjetivos
esbarre nas nossas couraças
seja eu promontório.
O alto:
para que a maré
pare a tempestade.
[Crónicas do vírus, CCXI]
Há os velhos do restelo
(vem aí a segunda vaga)
e os novos do restelo
(está tudo de feição).
Reino mau
história sem meio
terra de um rio também mau
e de profetas esquecidos no céu da boca.
Reino mau
que das boas coisas
andam os ilhéus exaustos
como se por exauridos estarem
se reformassem os vidros da catedral.
E reino mau
que meãos são os reis e as rainhas
em sua decadente pose
por cada deca dente rasurado por sucedâneos.
É mau
o reino
por ser sucedâneo de coisa nenhuma.
Não deem vivas
à república
(antes que seja tempo).
Fosse o manjerico
disfarce de foice e martelo
o S. João seria rico
sem precisar de um apelo.
Mas não é S. João
fingimento do Avante
pois categórico não
recebeu do mandante.
E até um pobre dragão
obrigado à faina
falta à celebração.
Ó desditosa taina
adiada para futura estação
à espera da luz que amaina.
O ultraje deletério
o traje ibérico
o úbere império
o unto pindérico.
O asno paroquial
o alvo providencial
o aipo notarial
o asco presidencial.
A lota desarmadilhada
a luta desafiada
a lula desconfiada
a luva destronada.
A máscara nupcial
a mistura ocidental
a maresia occipital
a mortalha temperamental.
O mosto tardio
o mastro arredio
o marco fugidio
o magma sadio.
[Crónicas do vírus, CCVIII]
Não há grande mal:
no tempo dos navegadores
também era preciso
corrigir a rota.
De cada vez que havia penumbra
o mosto do medo tornava-se
a saliva da extinção.
As cortinas eram muros ermos
ao mesmo tempo muralha e algema
insensato pedaço de verbo
nas sílabas vagarosas que arrastavam o dia.
Dizia alguém:
devias sentir o que eu sinto.
Houvesse quem recordasse
ser um logro a demanda
por imperativo do princípio
da intransferibilidade dos sentidos.
Como pode alguém convocar
uma comiseração destas
a não ser na demência da dor
que consome até os ossos?
Pode alguém conter a ideia
que as consumições se perfilham
com almas que se protestem generosas?
Os cânones são implicáveis, contudo:
a solidariedade é exigência
ainda que seja não mais
que um logro para libertar interiores dores
que mergulham
os labirínticos corredores da alma
numa castração
se não souberem peticionar
a piedade com as presas dos infortúnios.
Ao que dizem
a hipocrisia sempre foi o selo dos disfarces,
o teatro supremo
em que todas as boas almas
são alistadas.
A hipocrisia.
A cortina plúmbea que se abate sobre os rostos
uma pousada onde temos o rogo
das exonerações das más carnes
que nos consomem.
Saiba na melhor das fazendas,
a que desaproveita a densidade das interpelações,
que o logro seja meu
é que do fado inscrito no oráculo
esteja o alinhamento com o palco sem limites
onde se confecionam
o princípio geral do fingimento.
Uma sondagem
ao império da mansuetude,
eloquente,
aviva
o princípio geral do respeito,
Essa forca perene
o sândalo da casta
mitra dos figurões
a genuflexão imperativa.
Marx estava equivocado.
Não era a luta de classes
era
o princípio geral do respeito
(e a menoridade interior
pressuposta).
Espalhadas pelo chão
pétalas que são rugas
a tradução da bela decadência.
Como há quem deteste
o outono?
O chão atapetado
não mente aos comensais da estética:
um leve odor a perfume floral
sente-se em contágio
e as abelhas sabem-no
sapientes na demanda de doçura
povoando o bosque.
Como há quem tenha medo
das abelhas?
O céu virado do avesso
coabita no verso venal:
sabemos das ruas viáveis,
emparedado o vociferar
das ruínas campestres.
Sinais e sinais perseguem o dia
em vez das presas habituais
com a indulgência de uma trégua:
não se inventariam culpas
nem consolos tartamudeados
em fábulas surreais.
Não havia estrada pela frente:
os tempos esquálidos esvaíam-se
consumiam o oxigénio emprestado
e de dentro das casas
subíamos aos terraços
à espera do crepúsculo.
Não sejam dadas as mãos
ao tiranete destino:
antes uma música em penhor
o coreografar desajeitado do corpo
a poesia que não se quer treslida
e todos os lugares admitidos
à estância dos marmoreados reféns.
Ouve-se na música:
todos cometemos erros.
Antes fosse espartana mitologia
açambarcando a fragilidade dos Homens.
No sossego antigo,
paradeiro sabido de um apeadeiro,
estimo o inestimável
na sombra esquecida de um jacarandá.
Untem-se-me os viscerais aromas
as pétalas já recessas
que decaem do jacarandá
o vestibular acesso
que prova a extinção
da primavera às mãos do verão
insaciável.
Nestas noites que se demoram
arranjo uma parede caiada
para ser depositária do mel incontido
que irrompe do meândrico labirinto interior
e sinto-me artesão na varanda do sonho.
Não se pagam
as juras que ninguém ouviu.
Cristalizam as dúvidas
à porta das interrogações
e medra a poeira que se deita
sobre a melancolia.
Derrote-se a melancolia
a vírgula fora do sítio
trespasse na moldura do artesão
à espera de saber
o nome do futuro.
Dou de mim
esta trova arlequim
sem ser de Bensafrim
ou usar roupa carmim
nem dar ares de mastim.
De mim faço vate
embora a cor seja mate
e no cais a estrofe embate
sem ramagens por desmate
nem arestas como arte.
Doido em mim trago esboço
da palavra em remoço
mediania deitada ao poço
sem vírgulas nem caroço
nem lenços ao pescoço.
Diamante de mim se oferece
na vez que se não esquece
a cada palavra que amanhece
sem a crisálida que se entretece
nem o gongórico que aborrece.
Druida não será minha linhagem
labiríntica personagem
emaranhada na ausente camaradagem
sem ossatura para ser pajem
nem ser dado à arbitragem.
[Crónicas do vírus, CC]
Já para a alma gémea
(de sua excelência mor)
oásis continuamos
pese embora o desmentido
da capital do império.
[Crónicas do vírus, CXCIX]
Sua excelência
acordou para a vida
(depois da efabulação com milagres)
e anunciou com pompa
uma crise que vai morder
sem piedade.
[Crónicas do vírus, CXCVIII]
Em tempos de pasto
de conspirativas teorias
calhou-me em vez
a invenção de uma:
a conspiração a favor
de hábitos de higiene.
Não se joguem as intenções
no coldre da roleta russa:
se o sortilégio for furtivo,
em hibernação,
não se queira atirar ao desfado
a combinação das probabilidades.
Queria-se a ousadia dos loucos
dos impensáveis estetas do acaso
em erupções de boémia sem boémios,
a varinha sem condão
uma rede tresmalhada de anciãos
à procura de um prado em repouso.
À medida da velhice
em validade fora de prazo
à espera
à espera que seja
o fim da espera
– que seja exata a bala no coldre
e que a roleta
tussa.
[Crónicas do vírus, CXCV]
Ecoava dos oráculos
um “novo normal”;
os assimétricos pratos da balança
em que a justiça se pesa
exibem um parto gorado.
[Crónicas do vírus, CXCIV]
Testamento
para memória futura:
os vindouros que não esquecem
das fronteiras revividas.
O corsário
não se mede
pelo tamanho da pala
que lhe embacia o olho vago.
O corsário
tão pouco se aprende
pela vacatura do olho:
a pala como embuste
pode embaciar
um olho pleno.
O corsário
tanto é corsário
com um olho vago
ou com os dois plenos.
Os cinco minutos de luar
fogem da penumbra
em seu palco alvar.
Dir-se-ia:
esta
é a primeira estância
aquela que recolhe
as preferências dos corpos estivais
e as sombras desmaiam
no intenso, garrido mostruário do sol.
Por isso
há cinco minutos em cada dia
e uma clepsidra urdida
nas árvores que se abrem
floridas
ao espanto dos literatos.
Há cinco minutos
esperava pelo seu acontecido.
Na companhia do luar
em seu epílogo.
Não sabia
que África podia ser
em Lisboa.
Às onze da noite
o calor estático
engana
o equinócio das horas.
Não sabia
que as palavras
podiam escorrer,
suadas.