Quem sabe do silo
onde fermentam
as intenções?
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Retém o rio com as mãos
espreita entre as veias
o rumor do vulcão.
Adia a noite
o simulacro do medo
entre montanhas retorcidas.
Cobre o rosto com o luar
dita para o areal
as angústias datadas.
Acorda do pesadelo fortuito
deixa-o fermentar na podridão
e agarra-te às páginas sem cinzas.
E diz ao amanhã
em segredo fechado por todas as chaves
que já o tratas por tu.
Melhor será não frequentar ginásios
para largas as costas não ficarem
com todo o peso da culpa
nelas arqueado.
A semântica
tem as costas largas.
Os figurões
dizem que dizem
e depois desdizem
para no terceiro episódio
desdizerem o que tinham desdito
sem que voltem ao estado primitivo
de quem disse o que disse.
E os figurões
alardeiam o enfado
de quem é posto à prova
como se fosse crime
e de lesa-majestade
remexer na podridão
por suas excelências segregada.
Como clausura do assunto
endossam a fatura
à semântica.
Pobre semântica.
Estou admirado:
ainda
nenhum tutor da superioridade moral
se cruzou com
cruzes,
canhoto.
Não sei se ouvem
as vozes que se convocam
para o que houve no futuro.
Por dentro dos bolsos
um terrível nada
feito de um amontoado de pessoas
a mais improvável véspera que se encena
no fingimento dos paradoxos.
Não sei
se de mim houve
bondade;
participo as fragilidades
que de mim deixam um retrato nu:
dessa nudez que é embaraço
procuro cortinas baças,
que não se veja para dentro.
Arranco às notícias
sob tortura (se preciso for)
as mentiras que contam.
Não preciso dessas mentiras
– ainda por cima
não são piedosas.
Não preciso
de um disfarce a cobrir o mundo.
E talvez também seja dispensável
a cortina baça
que esconde a minha nudez.
Reinvenção do dicionário:
um contratempo
vai contra o tempo
tem de ser
a medida do seu adiamento.
Erva daninha roçada pelos pés envidraçados
e areias movediças ultrapassadas ao entardecer
a vizinhança que fala em maiúsculas
e um leilão que merca arrependimentos
até
que sobra um nada só igualável
ao maior dos desertos.
Nisto
um escafandro
e a noção de exílio com nome de flor
que as gravatas às cornucópias
e um bando de calvos que mentem
até com os dentes que deixaram de ter
não tem maresia entre os pesadelos.
Um anão
dança no meio da sala
e ninguém deita o olhar
nos gigantes que também
dançam.
[Às vezes, a metáfora de geopolítica]
Feita a autópsia à lágrima corrompida
os peritos lavraram o auto:
era do sol pesaroso
derrotado
pela chuva fora da estação.
A fogueira crepita,
o único embaraço
ao silêncio.
O vinho voraz
deitado no sangue
a combustão empenha-se
nas palavras.
O frio fundo
foi deposto
e lá fora o luar
serve-se da solidão.
Oxalá tudo fosse
assim sereno
deserto
sem a vozearia infinita
sem os arautos do fingimento
apenas
um punhado de exilados do dia
que, como gatos vadios,
celebram a cidade como ermo lugar.
Dos vira-casacas
não se digam cobras e lagartos
que vestir o casaco do lado do forro
não é grande estética
e conforto.
Se desse mel houvesse escamas
seria como vírgulas a destempo
ou um eclipse a adiar a penumbra.
Se do forte não houvesse fala
seria como um voto sem antídoto
ou um peixe a recusar a água.
Se às cores se arrancasse a pele
seria como uma enseada insociável
ou um idioma sem tradução inventariada.
Se dos braços levitasse o silêncio
seria como baixar âncora longe do cais
ou uma espera interminável no avesso da luz.
Se o remédio fosse calar a voz
seria como aceitar a desliberdade
ou um punhal cravado no pensamento.
Se em estilhaços acabassem as prosápias
seria como aplaudir a armadilha das vésperas
ou a lotação com astronautas de contrafação.
O conciso dia
abriga-se da escuridão campeã
junta o vento razoável
e armadilha os precipícios esperados.
Serão os nomes avulsos
os senhorios das almas desemparedadas
serão eles
a fabricar as convulsões apátridas.
Hoje
só quero ser herege de todas as verdades
repatriado para um lugar zero
onde tudo pode ser contado
desde o início.
As nuvens foram desenhadas por esquilos
e só falta saber o nome do arquiteto.
Talvez as nuvens escondam nomes
e os estendais onde ganham cor
esqueceram-se
de se avivar com as cores precisas.
O murmúrio ganha peso
dissolvendo o silêncio da madrugada.
Nos cafés
onde as pessoas se despedem do torpor
a louça frange, estridentemente:
é de propósito
que o dia depressa se apressa
e não há melhor cafeína
que o estrondear das chávenas.
Os sinais anestesiam a fala
a derradeira instância da inércia
obrigada à derrota
pela roda-viva que não tarda.
Vai começar a grande farsa.
O céu temperamentalmente outonal
cospe sombras sobre o avesso da noite.
Vozes efémeras casam-se com a distância
esmaecendo a caminho do silêncio.
A cada minuto
há não-sei-quantos praticantes da mentira
não-sei-quantos mentores do passado
não convencidos que o tempo segue para o futuro
não-sei-quantos mortos nas estradas
não-sei-quantos embriões logrados
no sexo interrompido.
As páginas dos livros incendeiam o vento
enquanto esperam
que a noite recupere o seu lugar.
Alguém diz
tenho medo dos sonhos
tenho medo
que pressintam o pesadelo
em que se torna
a vida.
As pessoas querem o seu exílio
por fora do perímetro puído que as expropria.
Querem
um futuro de poesia
em vez do pesadelo contínuo
através das assinaturas de jornais
e noticiários televisivos e seus ademanes
– profetas da malquerença
e oráculos de utopia.
Dezassete de abril
trinta graus centígrados
e ainda mal a tarde
alvorou.
Mau, tempo
que mau tempo.
A hipótese
não se rende
com duas palavras meigas
nem se entrega
nos braços de um sacerdote
sem remorsos
a menos que seja convencida
que é um desacontecimento.
Todas as lápides
não podem tanto
como a gramática da pele
que se tatua de palavras fortes
e dá ao corpo as catedrais possíveis
onde se convoca uma arca de flores
a amostra da Primavera
que encena a sua exuberância.
No resto do tempo
as hipóteses
somam-se à toalha da mesa.
Há o rei disto
o rei daquilo
e o rei daqueloutro
só pode ser
uma monarquia interrompida.
Emparedado pela memória
como se os remos
arrumassem a maré contrária
e tudo no dia
fosse a simetria do esperado.
As flores deitadas nas jarras
ficavam para memória futura:
logo que as pétalas ficassem maduras
e o embaraço
se congeminasse na eira
os relógios dariam voltas atrás
e a inveja do futuro seria a rua deserta
aquele lugar a que ninguém ia
nem que governos ciosos
malbaratassem
subsídios inúteis.
Emparedado pela memória
na intuição dos dias
devorados em rapsódias circundantes
a pele ateada no areal
abraçada ao sol ecuménico.
E um instante que se demora
à espera que o futuro
seja um juramento.
O membro do governo
faz as perguntas
e, com diligência inexcedível,
redige as respostas.
A Filosofia
devia ser cancelada.
[Derivação – ou consequência – do #2747]
Incumbência:
instruir os editores
para mearem as páginas:
numa metade o texto original
na outra as luzes em dádiva ao leitor.
Encurralado
entre o deserto ermo
e a metrópole hermafrodita,
o precipício a estalar na boca
a qualquer momento.
São as bocas
que dizem os nomes.
E os nomes
ensinam as bocas.
As palavras são mediadoras
a ponte entre os nomes e as bocas
que sem as bocas
os nomes ficam sufragados pelo silêncio
e sem os nomes
as bocas não sabem de que terra são.
Do silêncio não se diga
que impede os nomes:
todos os nomes não deixam de ser
se o silêncio for instalação duradoura.
Uns nomes têm palco
e outros não:
não se ofendam os mártires da igualdade,
uns nomes têm palco
falam com as suas bocas
há bocas outras a falar de si;
outros nomes vivem do anonimato
as suas bocas falam
não há quem nomes que ouçam
e mais nenhuma boca recita os seus nomes.
As bocas todas deviam ensinar
aos nomes sem exceção
que a miragem da igualdade
devia ser metida
em museu a preceito.
Alto Douro.
Alto Douro.
[Para ser lida, a segunda estrofe, “Altooo Douro”]
De astronauta disfarçado
meteu as mãos ao barro
esculpiu a sua própria lua
e partiu rumo ao exílio.
Epicentro;
as furnas levitam o magma
das almas sem paradeiro.
As folhas das árvores
derruídas pelo Outono
apreciam o ocaso
o fusível para as cores adulteradas
em movimentos desorganizados
de sindicatos sem certidão.
Diz-se
outra vez
sem saber se é por recusa
ou como hospedeiro da rotina
sem sequer intimidar
os diseurs.
Abandona-se o lugar
deixado vago aos bancos ausentes
os bancos que podiam ser de bancos
se ainda houvesse jardins.
A matéria viva
toma conta do sol
fermenta a carne incindível
demorada no crepúsculo efémero.
Os cardumes pressentem-se
o mar é a sua morada
e não há pesqueiros no perímetro
nem um matança no fio do horizonte.
O ultraje
é afim do arrependimento
não se pode cativar a hipocrisia nos outros
sem cair na indigência
de não se reconhecer hipócrita.
O sal tempera as cicatrizes
põe as feridas à prova.
Não é provação à medida
ou à desmedida encomendada:
o sal
é a alma mater das cicatrizes
o incentivo
para tantos serem mineiros.
De todas
a pele de pêssego
cobra os impostos diferidos
e sabe-se
é a exemplar seda que cobre os corpos.
Na véspera
o medo era apenas
uma intendência.
Fingia-se não saber
a linguagem do medo
fingiam-se
exílios em grutas sem mapa
em vez de almocreves desossados
irrompendo contra as palavras párias.
Era assíduo ouvir
por vezes
como se dizer
por vezes
fosse a promessa que faltava
para colorir os dias vindouros.
Se houvesse
um matadouro dos lugares-comuns
não seriam de sangue
os seus vestígios.
Mas não haveria operários,
ou uma autofagia dilacerante
cortaria tudo a eito
em pequenos estilhaços
de nós sobrando um ermo infecundo;
o precipício habilitado
para as vias de extinção.
Formulário coloquial:
aceitam-se a concurso
todas as fragilidades
as inventariadas
e as que esperam
em reserva;
num concurso de males
vence o que for de menor
estatura.
Oxalá sejam astutas
as mãos que mineram
os pesares.
Não são as constelações
que nos dão de comer
nem se diga o mesmo
das inválidas especulações
que não passam de especulações.
É por um rio sinuoso
que se mete o caminho afora:
não nos intimidamos
com o caudal que apressado segue
como se a foz fugisse
açambarcada pelo rio maior
açambarcada pelo ontem que não se repete.
Os desfiladeiros
fazem lembrar os sobressaltos
a matéria que dá congruência a tudo
– a totalidade só se preenche
ao ser levitada pela incongruência.
Não é a intimidação que nos trava.
O rio demora-se
e o dó que o dia tem apressa-se
em extinção.
Não queremos
que a noite seja.
Não queremos
que sejam as sombras a tornar-se gramática
e que as árvores sejam meros vultos
atiradas contra as margens que se estreitam
à medida do medo que se alimenta
nas veias transparentes.
Ou então
procuramos exílio na noite
o necessário e temporário exílio
para não sermos vítimas da noite
que se não vê.
Escrevemos na lembrança do sono:
a manhã
há de trazer a foz do rio
mais cedo do que tarde.
Prosseguimos no sonho:
as folhas molhadas caem sobre a pele
derruídas pelo vento que dança com a noite.
A pele diz o sossego que o sono convoca
na indiferença pelo ciciar do vento
arrumando o medo para uma nesga da memória.
Continuamos a sonhar:
os modos contrafeitos nos usos sociais
os fingimentos que aplanam as montanhas
o cárcere interior que adultera a vontade
a miragem que enfeita o entardecer
o torpor que não rima com indolência
a noite consecutiva
apenas uma das muitas vésperas
que se costuram no amontoado do tempo.
E já não sabemos
distinguir o sono do sonho e do resto
como se a ordem da consciência
tivesse sido raptada pela fragilidade.
Irrompemos
com os primeiros sinais de claridade.
O rio ausentou-se.
A floresta foi deposta.
O dia nasceu sem o castigo das nuvens.
O vento calou-se
cansado da boémia da noite.
E nós
continuamos a demanda
uma foz qualquer
que seja o começo de outra partida.
Nunca tive um oceano na boca.
Nunca tive os olhos tatuados.
Nunca tive mágoas por idioma.
Nunca tive aparatos nem comendas.
Nunca tive o desassombro do orgulho.
Nunca tive migrações cevadas no dorso.
Nunca tive sortilégios em pautas adornadas.
Nunca tive preces nem quimeras.
Nunca tive o arnês por gramática.
Nunca tive a montanha russa nas veias.
Nunca tive a alquimia dos farsantes.
Nunca tive algemas em vez de perímetro.
Nunca tive a lua em partitura hermenêutica.
Nunca tive a generosidade dos déspotas.
Nunca tive o açor no ponto de mira.
Nunca tive fortificações encenadas.
Nunca tive arsenais de estultícia
(ou a estultícia de arsenais).
Nunca tive a baía perene.
Nunca tive de embainhar o futuro.
Nunca tive a cortesia dos diplomatas.
Nunca tive a heresia da hipocrisia.
Nunca tive de meter ferro e fogo no silêncio.
Nunca tive o empréstimo de um epifania.
Nunca tive de arrendar hipérboles.
Nunca tive de amesendar em urbes infames.
Nunca tive de costurar as feridas incensadas.
Nunca tive de mentir às mentiras.
Nunca tive de servir extáticos anciãos.
Nunca tive de atropelar a angústia.
Nunca tive de errar num labirinto.
Nunca tive amoras nas manhãs húmidas.
Nunca tive o passaporte do ocaso.
Nunca tive a chave de navios insubmissos.
Nunca tive a esmeralda sufragada em poesia.
Nunca tive disfarces do disfarce concêntrico.
Nunca tive medo da liberdade.
Nunca tive o penhor das almas sitiadas.
Nunca tive certezas sobre as dúvidas.
Nunca tive dúvidas a não ser sobre as dúvidas.
Nunca tive interrogações órfãs.
Tirando
tudo isso
que nunca tive
sou tudo
por dentro
do que tive.
À pátria que a pariu
a pútrida pátria
que se parte
no presidiário partido.
À pátria putrefacta
penhor do pequeno possível
pináculo da proverbial purga
onde se procrastina o porvir
para ser povoado por um punhado.
À pátria perdida no piolho pior
pústula e pérfida,
possuída por pelintras não probos,
proclamo
por patrocínio em parte incerta
a apátrida pulsação que me percorre
em parte
por seres parte da perversa porta
que se opõe à paciência
em parte
por seres pusilânime
na posse que prometes
e não é tua parte.
Segregava
a Primavera ostensiva
no desabotoar das flores
feito o inventário do Inverno
sepultadas as chaves da hibernação.
Antes confundir
concelho com conselho
do que LCD com LSD.
(Ou vice-versa,
que agora a dúvida
falou mais alto.)
Dou à boca as palavras cãs
onde sobem os socalcos
até serem o mais alto trono
no promontório geodésico
onde tudo se oferece
no estuário do olhar.
Deixo outras palavras
não mudáveis
serem a cintura da tarde.
Ao mundo que não ouve
não digo que anda ao deus-dará,
digo o nada que ele que ele dispensa.
Se a matéria ampla for presságio
deixo as mãos no caudal do rio voraz
e nas pregas da idade apregoo as lições,
as estátuas perenes cingidas
no relógio sem nome.
E se na véspera forem todos mastins
escondo-me no espólio sem paradeiro
e deixo aos nomes
a veia anónima que os consome
e os deixa utilmente anónimos.
Todo o sangue vazado
é mil oceanos coléricos
e os ossos
as cordilheiras submersas
as lápides que silenciam
tantos segredos.
“Estou-me nas tintas”,
disse,
sem (a)notar
os vapores tóxicos a que se expõe
quem está imerso em tintas.
O mar
parecia o verniz do dia
como se fosse possível
emoldurá-lo.
A maré
cercava as rochas
um cerco de sal e linhagem
imperturbável.
O rio
queria saber do sal do mar
enxertando-o de imodéstia
e soberba.
A lua
era testemunha à distância
ainda mergulhada no seu sono
diurno.
A Primavera
já mais do que um esboço
deixava em legado as suas páginas
aveludadas.
Eis a alquimia da Primavera
os pássaros doidejando
como se fossem bardos
em coreografias coloridas.
Dédalo das más intenções;
que se metam as palavras
em marcha-atrás
e as más sejam boas intenções:
os espírito afidalgam-se
as solenidades são honradas
em vez de serem consumidas
pela banalidade da rotina.
Uma litania atravessa os claustros
onde se evoca a grandiosidade
do futuro.
Testas-de-ferro diplomados
querem açaimes
querem
silêncios que evaporem as falas:
conspiram contra as vozes bastardas
vozes que estilhacem o bem adquirido
e a motivada mentira que atravessa
os dias.
Em vez de uma bandeira
uma coroa
auréola as cabeças sem tenência.
Há generais a mais
e solenidades a menos
e os festins
em devida preparação
não são de assinalar com ausência.