3.5.16

Devolução

Deitei ao mar o peito aberto
onde o sal mais crestava
e julguei ser o dono das nuvens.

Abri as palavras encerradas
aquelas que dantes foram guardadas
em cofres de bronze sem chave.

Deitei-as à boca
e logo um frémito tomou conta das veias
enquanto o entardecer era diferido.

Foi quando as estrelas acenderam o céu
e eu fiquei a saber de cor
a miríade de beijos-nutriente.

Pedi aos tutores das estrelas
que as palavras dantes ecoadas
me fossem devolvidas.

Queria tê-las a dar cor aos lábios
queria enfeitar a boca com as palavras
já então reaprendidas.

Depois da alvorada,
foi-me prometido em voz solene,
depois da alvorada seria seu mestre.

Pela noite fora
tresmalharam os véus desprendidos
ao vento de leste que trazia o calor.

Pela noite fora
enquanto o sono decaía na insónia
e as estrelas não me deixaram ermo.

Na alvorada luminosa
esperei que os tutores das estrelas
depositassem as palavras aparelhadas.

Esperei e esperei
e a promessa apareceu com a maresia
depondo as palavras no meu colo.

Agora sou marinheiro saciado
detendo os olhos (dantes marejados)
no parapeito das palavras miríficas.

Agora sou o cofre forte das palavras
e sequei o peito fechado
no santuário dos mais belos céus.

Noite treslida

À vista da lua
na varanda do alvoroço
os gatos com cio
roubam as chaves da noite.
Que se faz dia,
a julgar pela ebulição
em que os gatos se deitam.

2.5.16

Teoria dos jogos

Assentava na suposição da bondade.
Numa teoria geral da boa vontade.
De manhã, ao acordar
embebia-se em doces unguentos de boa fé.
Julgava dos outros
que se mediam por idêntico estalão.
O tempo legou cura bastarda
tantas vezes a bondade esbofeteada
por inescrupulosos intervenientes
em que esbarrava
(imerso em ingenuidade).
Fez prova de vida:
aprendeu as regras do desjogo
e esqueceu pergaminhos.
Em vésperas da senhora negra
prometida para receber seu féretro
tanta era a destreza nas regras do desjogo
que os rivais por causa dele se mortificavam
em atos de notória inveja.
Na hora dos finados
mandou dizer que não havia ninguém
na prestação de contas.
Não admira
as águas tumultuosas e lamacentas
da paisagem em que todos eles medravam.

30.4.16

Elemento líquido

Tira-teimas:
no esboço da alvorada
com a ajuda da centelha retirada ao celeiro
o camponês prepara a jornada.
Sobre a bruma matinal
desfaz-se dos olhos estremunhados
em contrafação com a claridade timorata.
Depois
vêm à tona
memórias acidentais
lágrimas reprimidas
(que a rijeza de um homem do campo
é pergaminho que trava as lágrimas)
colheitas abundantes
solos férteis
e colos férteis,
da altura em que povoava bailes das aldeias
e arrastava a asa 
com a destreza de um galanteador.
A reforma do luar,
em forma de escolta da noite,
empresta luminosidade ao sono perdido:
maldita a insónia
que dá fermento às evocações
ao tremendismo das palavras 
diluídas na brisa que varre os campos
ao acobreado das searas 
que convida a poemas elucubrados
às mulheres de outrora
às proezas nunca reveladas.
O camponês prepara a jornada.
Diz
de si para si mesmo
que as trevas da memória 
são uma cortina densa que se abate
sobre as suas mãos encardidas e rijas.
As trevas da memória:
apenas a desconversa 
do olhar deslúcido que esbarra
nos contrafortes da desmemória.
Da desmemória
que devia ser a pauta comandante.

29.4.16

Copo de cerveja

O copo de cerveja
fundeia nos pensamentos.
Rejubila
no tempo gasto sem serventia.

Ao lado
duas velhas que fingem pergaminhos
comentam a atualidade cor-de-rosa.
Deixei de as ouvir
anestesiado pelo sol
que a primavera (que se fez) tardia
outorga.

A espuma da cerveja fica rarefeita
e os meus dedos embebem-se
no frio do copo alto.
Deixei de saber
se as horas de ócio eram apenas ócio
(com o reprovável fingimento a adejar)
ou se o ócio é a caução de uma certa
pureza.

Mas isso era ao início.
Pois não adianta apressar a pressa
que o tempo tem o mesmo compasso.
Não adianta forjar empreitadas
jurar resoluções solenes
atirar planos para cima do estirador
medir o tempo em falta
com o medo de o tempo se esgotar
pois depressa esgota antes de tempo.

Decidi
arrancar o relógio de dentro do peito
para o peito se abrir num clarão de liberdade
e os temperos dantes asfixiados
a tutores de tudo serem empossados.

O copo de cerveja pode esperar
se preciso for.

28.4.16

Pauta dos sentimentos

A pauta dos sentimentos
quantos batimentos comporta?
Se alguém houvesse tal saber
seria imperador incontestável
dos reinos todos.
(A menos que rebeldes sem remédio
protestassem tamanha condição.)
Era como se fosse possível
desenredar os interstícios das páginas
e descobrir a densa teia de sentidos
perdidos e por decifrar.
Mas a pauta dos sentimentos
é enigmática
um poço sem fundo
onde oráculo nenhum consegue inquirir.
Resignemo-nos.
A sentir os sentimentos
apenas.
A senti-los
quando os lemos à flor da pele
diante da lareira que os aquecem
por intermédio de mãos alheias
ou de manuais intempestivos.
Na biblioteca do tempo
a pauta dos sentimentos
arqueia-se ao cerzi-los,
puros e impuros.

27.4.16

Pedras da calçada

Dizia o taxista
– recolha o troco com cuidado
que são muitas moedas.
Dizia o moço de recados
– não sei, não sei, não sei,
só as ordens que me deram.
Dizia a menina solteira,
em expiação do desamor
– ai, quem me dera, quem me dera
soldado de chumbo que a mim se entregasse.
Dizia o toureiro à civil
– apre, vosselência pisou-me os calos.
Dizia o cangalheiro em fato de banho
– estranho a ausência de farpela entrevada.
Dizia o bombeiro nas finanças
– não me enerve
que ponho este sítio em estado de sítio.
Dizia o catedrático ao estarola
à entrada do restaurante
– não tenha o topete 
de se meter à minha frente.
Dizia o artista de rap para o papel
– rimas sem rumo
são como
maças sem sumo.
Dizia o carteiro à porteira
– e a senhora do quarto direito
continua o adultério?
Dizia o operário da siderurgia ao banqueiro,
depois de um acidente de trânsito
– querias que assumisse a culpa
se bateste por trás?
Dizia o pai natal à já não criancinha
em seu colo à espera de fotografia
– marota, marota,
já não tens idade para isto!
Dizia a senhora coquete ao empregado do café
garçon, sirva-me um gin tónico
mas seja generoso
que depois o recompenso.
Dizia o filho à mãe
– desengana-te,
não vou às aulas de ballet
nem como a sopa ao jantar.
Dizia o patusco ao interpelar o ministro
a meio da inauguração
– senhor ministro, senhor ministro
pode vossa excelência interceder
por um emprego no ministério 
para o meu sobrinho?
Dizia o mendigo à passagem de uma beldade
– desta esmola é que nunca hei de ter
(e a beldade ficou sem saber as entrelinhas).
Dizia o motorista da carris, resignado
– o trânsito na cidade está um inferno.
Dizia o filósofo, sem aquele ar pensativo
que se pespega aos da classe
– não sei para onde hei de olhar
que tudo se turva
ao ser beijado pelos olhos meus.

26.4.16

#24

Eu sabia
que na escola dos saberes
haveriam de contar mais
os saberes da estirpe do não saber.

Declaração de interesses

Ora
se na desarrumação geral
encontrasse uma ideia
– e uma ideia bastava –
bebia três cálices do melhor vinho
daquele de que se diz ser néctar
e berrava
como os hunos em dia de celebração.
E depois
no meio das coisas por encontrar
se houvesse um lápis de cor que emprestasse
nobreza ao céu sem cor
diria
que as impossibilidades só o são
na medida de um desquerer.
Mas
se na lentidão dos dias
– como um compasso em câmara lenta –
uma espiral sobrevoasse os poemas
e neles depusesse um canto
ia a correr
beber na fonte salgada
o frémito das cidades apetecíveis.
E então
tudo já ordenado
nos seus devidos lugares
– sem admoestações aos impuros das arrumações –
contemplaria as joias esmeradas
nas mãos de artesãos sábios.
Para depois
dormir
no consórcio de um sono digno.

25.4.16

Desaniversário

Folgam os parafusos
no fuso desacertado do oriente
enquanto as águas azuis se põem
a preceito.
De fonte segura
um seguro de vida desengavetado
de um coldre roto
apascenta as searas suavemente levedadas
num fermento de água.
Velas feéricas acamam no bolo
mas não há nada a celebrar.
Os festejos são a destempo
quando entoam medos
(que deviam estar)
banidos.

22.4.16

#23

Como um cascadeur:
a morder o perigo
com dentes pétreos
dando lustro à coragem.

Emolumentos da adolescência

As balaustradas de zinco
enchem-se de gotas de chuva;
despidas da macieza que nunca fora sua.
Os garotos imberbes não dormem
se não de dia:
diz-lhes a irreverência
para se não ampararem em balaustradas
não vá o diabo ser tendeiro.
De noite
acampam a demência da idade
numa praça mal iluminada:
transgridem
bebem álcool a rodos
fumam cigarros, uns atrás dos outros,
conversam com as frivolidades próprias da idade
tropeçam em impropérios
e na venalidade de tudo.
Aqui e ali
distúrbios
vozearia descompensada
tiros de pólvora seca
 – da mesma pólvora que se não pega
nas balaustradas molhadas pela chuva.
Pueris
(apesar de o espelho devolver
adultos extemporâneos)
não sabem por onde anda o norte
nem querem saber dos diapasões
ou de simetrias estrugidas em páginas elegantes
ou das coisas que destravem a moleza.
O dia depois se verá
quando a impaciência do tempo
não se precipitar e o tempo for esquivo.
Então
sem tempo para arrependimento
(por conhecimento com a palavra não terem travado)
sobra o tempo vazio por dentro.
Imperadores de tudo,
como os gatos que se nobilitam nos telhados
fitando do promontório os suseranos,
exigem os emolumentos devidos pela rebeldia
(ou para domesticar a rebeldia).
Os emolumentos da praxe,
que da irreverência sobejam intenções vis
sem do papel terem ascendência.
Impertinentes
por serem mar onde não cabe o sal
espera-os o degredo da planura dos tempos depois
a estranha calmaria
uma monotonia empedernida
de onde não têm extração.

21.4.16

Código de segurança

Apertava os atilhos dos sapatos
arqueado sobre o chão de basalto
enquanto duas cotovias se enamoravam
e de longe os trovões vinham aos ouvidos
e a relva escapava das primas daninhas
e um motorista de táxi buzinou, iracundo
e um clarão do sol espreitou
entre duas nuvens pesadas.
Apertava os atilhos dos sapatos
não fossem as entrelinhas da calçada,
na irregularidade do basalto,
trazer-me à queda.

20.4.16

Esteio

Resgatado o fio de prumo
aos escombros da cidade,
tomámos a manhã nas mãos.
Metemos as cores desembaciadas
enfeitada a manhã
com as palavras vasculares
e os doces gestos no rosto.

Desautorizámos
as pedras pontiagudas
os lastros pesados
as guias de conduta vetustas
os rumores entoados por almas invisíveis
as preces vazias ditas no adro
os dados mostrando números quadrados.

Em sua vez
demos alfândega
ao vermelho carregado com suor
às flores campestres selando formosura
aos bolsos cheios de uma água de estio
aos braços que não se cansam de amplexos
aos beijos não enjeitados de lábios carnudos
ao mar vadio que temos entre as mãos.

O fio de prumo,
já fiel tutor da simetria dos sentidos,
desalinhou os vieses pela proa
precatando o temor sensato
entre duas mãos cheias de impudor.
Tirámos à sorte o esteio aprumado:
soubemos de um fado singular
povoado por olhos marejados
de tão telúricos pés arrojados
num santuário com pérgulas de ouro.

#22

A indecisão
tropeça no armário
onde a poeira lê primeiro.

19.4.16

Juras em falso

Enquanto jurava aos céus
devolver com juros as tiaras furtadas
cruzou os dedos.
Cerziu as juras
as solenes e as outras
(as juras todas)
até cansadas as promessas ficarem.
E depois
Ficou à espera que o vindouro
fizesse cais
à espera que as juras
tivessem palco.
À espera.
Não ocorreu ponderar
que os limites das juras
não pertencem às fronteiras do tempo.
Jurou
depois
que faria novos alinhavos às juras
mal as anteriores perecessem
nos malnascidos desmentidos.
Não aprendeu nada.
Podia
ao menos
jurar que nunca mais jurava.
Não podia:
a desmemória quadrava com as andanças
sem cuidar de lamber cicatrizes
de feridas de que nunca dera conta
à exata medida da mitomania
(de si mesmo).
A cada juramento
uma estocada por dentro
até às entranhas
remoendo as rugas do rosto
olhando-se ao espelho sem ver um intrujão
liquidando as lágrimas
que pudessem ser vertidas.
Acusavam-no de:
falta de decoro;
juras militantes
de alguém a fugir da sua pessoa.
E ele prosseguia pelo tempo fora
indiferente
como se fosse surdo aos vitupérios.
Continuava a jurar.
e a saber
por dentro das entranhas
que cada juramento
era a jura do seu oposto.

18.4.16

Interjeição

Tomo por junto:
um elixir da redenção
um bisturi cortante
três novelos de lã macia
e uns óculos com dotes de prestidigitação.

Consigo antecipar,
como se um oráculo
viesse às mãos minhas:
ilusões marejadas num palco irregular
protegidas por vitualhas densas
contra investidas de zangões destemperados.
Sem a eternidade desejar
a não ser a que for caução
da mansa acumulação cósmica,
os calendários arquivados
nas promessas de porvir.

Pois é resolução infundada
ir para o estirador do tempo
desenhar as cicatrizes do destempo.

17.4.16

Sobre a planura da mesa onde se estendem os mapas

Três são as patas do gato no chão,
o malabarista.
O canto do tenor ouve-se em surdina
e as palmas guardam-se para a véspera.
Dantes
quando tudo era límpido
as mulheres não assobiavam
e ninguém coabitava em regaço atávico.
Os gatos miam alto
reféns de seu cio
ao passo que os comboios
gorjeiam em cima dos carris
os murmúrios de que não há penhor.
Dantes
só tínhamos morangos sedosos
livros
com páginas amarelecidas e letras grosseiras
sapatos exasperantes
e a lividez do inverno intransigente.
Os tapetes cardados à entrada das casas
cuidavam dos forasteiros
no desvelo de hóspedes impantes.
As pás dos hélices
já traziam cura para o sal
e bênção suprema do bispo da ordenança
(por interposta pessoa: dom divino).
Dantes
os ministros da servidão
escondiam-se no seu pudor
sem cartas trunfadas para jogar.
As rosáceas extravagantes
prendiam-se à lapela dos cavalheiros
mm linguagem cifrada do deboche.
Pois dantes
o deboche era proibido
e só se fazia sob a proteção das trevas.
Não havia penumbra sobre as cores
não havia grandes aceleradores do tempo
nem um mapa que ampliasse o granulado do olhar
ou uma lâmpada duradoura em intenso incensar.
Dantes era dantes
e agora é sinal que saltamos as barreiras do tempo
sem mortificação da nostalgia.
Dantes
não importa.
Os dentes cerrados elaboram um clamor
pela corrente hercúlea onde se abraça
o tempo das mãos
onde os amantes se entrelaçam no sexo forte
sem peias
onde as palavras amáveis são as que forem queridas
os rios exibem um espelho de água sem gestos
e as pinhas caídas ao chão
guardam os diamantes que desabrocham
no amplexo dos sentimentos puros.
Do dantes não sobram imagens.
Não há museus.
Os dentes entronizados diamantes
mordem o tempo que importa
emprestam-lhe a espessura precisa
e um murmúrio poético soergue-se
derrotando as baias da imperícia.
Agora
não se fala dantes.
Agora
é império
do agora.

16.4.16

#21

Flores desleixadas
numa jarra envelhecida
e o sol luminoso, lá fora.

15.4.16

Solidão ânimo

Paredes fingidas
aderem à pele suada.
O suor escorreito
dança nos braços trespassados
pela força.
Há uma evocação persistente
aos dias de mel
ao sargaço em restolho no areal
aos pequenos seixos negros
despojados pelo mar.
O velho passeia a solidão
enquanto o mar se faz à vida.
Dir-se-ia
indiferente, o mar;
mas o mar
talvez generoso
propõe-se adotar o velho
livrá-lo da solidão que o dilacera.
Sem saber porquê
o velho sua
por dentro do suor das mãos.
As paredes que o conduzem
não deixam de o prevenir.
As paredes
transpirando suor pelo velho
sussurram os preceitos da solidão.
Convencem o velho
que a solidão é sua aliada.
E que o mar que se insinua
oferecendo-se leito florido
é um poço sem fundo
anjo disfarçado.
O velho
continuou a passear a solidão.
Até que um dia
a solidão o deixou sem amparo.

14.4.16

Meta

O inventário arrefece ao frio
repousa nos ombros arqueados
da memória.
No epicentro
sombras dúcteis como travões
evocam a soberania espartilhada.
Não há nada que faça comover
nem as lágrimas furtivas
do pequeno cão órfão
nem os prantos imorredoiros das viúvas.
Digam o que disserem
os eu pavoneados
deixarei as coisas todas
postecipadas.

13.4.16

#20

A tesoura no pano
como carne rasgada
por punhal fundo.
E o sangue à mostra.