14.8.16

Sem cortinas

Alcanço o equinócio
enquanto a clepsidra se esvazia
ajudada pelos cantos insondáveis
de vozes sitiadas.
Julgo os temores matéria imprópria:
se são à noite
e à noite voga em mim a indiferença
não fazem diferença os pesares
dos viúvos de alma retorcida
que lavam as lágrimas na desdita dos outros.
As contrafações de antanho
foram levadas pelo caudal do rio.
Agora
o peito abraçado às pedras preciosas
rituais erráticos
varandas equidistantes da alma polida
e os relógios todos metidos no contrapeso
que é o presente que pressente o amanhã.
Desviado das ruas ardilosas
das pessoas que coalham o sol propedêutico
de um leve bater de asas artificioso,
componho um tratamento de ideias
e meto-o em garrafa gasta.
As correntes do mar cuidarão
de lhe encontrar cais a preceito
num equinócio restituído às campânulas
que esbracejam
o troar da íntegra imagem interior.

13.8.16

Poder

Podemos voar
visitar as nuvens acetinadas
tornar grandes os pequenos pedaços de desejo.

Podemos gritar ao vento
desalojar a penumbra que sobra
fazer os azimutes com as mãos ungidas de mel.

Podemos um trono congraçar
debater os lados excelsos das artes
abrir as janelas todas
e tomar nos braços o céu amendoado.

Podemos tudo poder
no poder aninhado em nossos regaços
juntos
em podendo o poder ter cais
na vontade que desalinhamos.

Podemos,
o que for seio da vontade poderosa.

12.8.16

#53

Tatuado o dorso com tinta
arrancada das veias
adejava a incerteza
sobre os imorredoiros efeitos
do desenho mordido em noite de olvido. 

Eldorado

O Eldorado procura-se
entre o restolho do inverno
e as folhas verdejantes do jardim botânico.
Procura-se
e se preciso for
esventrar-se-á o chão com as próprias mãos
até que sangrem se tiver de ser
em consecutivas noites
até de tanto porfiar
os dedos aterrarem no desenho
das almas escondidas.
Oxalá que seja como é prometido,
o Eldorado.
Tomara não ser só um lampejo sem substância
um armário quintessência
com o vazio por dentro
um delito sem remédio
por continuada prevaricação
um rio exangue alvo da aridez do estio.
Talvez o fogo irreparável
traga dentro de uma garrafa à prova de bala
em amarrotado papiro
o segredo na ponta de uma espada.
Oráculo assim
desautoriza o lanço do Eldorado.

11.8.16

#52

Num labirinto cego
a tocha acesa na mão
sem saber nada, nem o paradeiro. 

Estratosfera

Um chapéu cheio de folhas frescas
em colisão frontal com um vestido de fada
na circunscrição amuralhada
das sereias noturnas.
Nas abas do chapéu
a chuva caída em pingos grossos
desautoriza a letargia
sem contar
que se terçam bailados avulsos
onde os corpos se meneiam no calor hirsuto.
Arregaçam-se as virtudes:
sempre exteriores territórios
dando em hipoteca o sal desexistente.
Importam os estábulos circenses
a frontaria dos patriarcas desentronizados
ou a seara abundante
onde investem os corpos livres.
Numa constância do tempo
substância volátil que campeia
em mares de ontem
sem saber que os tutores dos devires
se espreguiçam na esteira mal atada.
E depois do amesendar esperado
nas imediações de um lago celeste
imprimem-se tatuagens em nenúfares.
Os alinhavos descosidos
emprestam ordem ao caos.
E eu
penhor do meu sono tingido a branco
retiro da água
as pérolas que esbracejam.
Eu
modesto arquiteto das palavras,
à falta de um campo só meu
à falta de cultos deificados
à falta de folhas douradas
para verter as palavras sem cais,
faço caiar as paredes com a saliva fervente
e deixo para depois o lóbulo atiçado
que é o entardecer que está por vir.
Retiro-me em pensamentos
como se pedisse de empréstimo uma régua-matriz
e pesasse todos os elementos
ao contacto com as mãos.
Deixo o corpo em magistratura final.
Os copos entretanto vazios
dirão
em livro de termos
se a função derrotou a feroz foz do rio
que faltava vencer.

10.8.16

#51

Muito o que traz a foda na boca
tanto o que pouco uso lhe dá.

Suicídio assistido

Na grande roda
onde se jogam os dados de água
uma arma vetusta e enferrujada
em cima da mesa.
Atónitos
demoram-se na arma inesperada,
eles que nunca meteram à mão
arma qualquer.
Não sabiam o que fazer.
Um deles propôs chamar a polícia
outro insurgiu-se
(reações epidérmicas mal ouvia a palavra)
e o outro descobriu uma bala sem paradeiro.
Emalou a mala no coldre
em preparativos de um jogo demencial
em que os outros aceitaram ser atores.
Sem saberem como atores seriam:
experiência no manuseamento de armas
não estava vertida no curriculum
e todos se ufanavam de pacíficos pergaminhos
e não havia conhecimento que transitassem
pela loucura.
A arma albergava cinco balas
e depressa tiraram a prova dos nove
às probabilidades
(que, em plena véspera da roleta russa,
rimavam com fatalidades).
À vez
com mão tremeluzente e num arfar aflitivo
um seu dedo premiu o gatilho.
Não eram armeiros
nem tinham ar de serem belicosos
nem deles se sabia apascentarem riscos.
O que não se sabia
(ou não era de público conhecimento)
era o vício incorrigível pelo jogo.
A bala sem paradeiro
tirou as vezes aos dados de água.
Desta vez
a aposta não fora em numerário.
Depois de três vezes premido o gatilho
a alvorada soou para todos
no prolongamento da agonia
que nem a roleta russa acabou.

9.8.16

#50

Falha-me a voz
na sombra da estátua cerviz
e reforço o peito com o ar outonal
que se levanta da bruma ao entardecer.

Não estatuto

Seria
estulto desagradecer aos imprevistos.
Seria
amador tirar a besta do armário.
Seria
ensurdecedor o silêncio duradouro.
Seria
demente tropeçar nos próprios pés.
Seria
sobressalto oferecer a janela aberta ao devir.
Seria
criminoso deixar a água desamparada e esvaída.
Seria
caótico cerzir os dedos aos fogos medonhos.
Seria
um estorvo apurar as comezinhas fauces.
Seria
impensável descoser as bainhas sólidas.
Seria
desbarato apreciar os estouvados.
Seria
critério depositar o corpo ao rio lânguido.
Seria
cruel ligar as cores nas paredes brancas.
Seria
proeza se resgatasse a pureza já desenhada.
Seria
volitiva fruição amparar os reflexos da noite.
Seria
frenético desejar com intensidade de um dínamo.
Seria
maré alta se precatasse os calafrios.
Seria
exemplar se houvesse carestia em ser exemplar.
Seria
nó atado se não desaguasse numa foz clara.
Seria
o que fosse não fosse o que sou.
Ou:
seria o que fosse não fosse o que me é dado ser.

8.8.16

Irrenúncia

Não tenho
a medida das coisas
olhos com intermitências sapientes
a água fria em paredões delimitados
a secura precisa para temperar intempéries
nem sal bastante para avivar as feridas
ou lua que sobre para ser regaço sereno.

Não tenho
se não o cais necessário
os braços em aberta demanda,
como se fossem ramos de uma árvore matricial,
o perene eu que é uma metade
a bandeira hasteada no umbral sobranceiro
o abraço afogueado que aplaca os medos
as palavras que aprouverem em sussurro
as estrofes 
que estilhaçam os alinhavos de outrora
e o mar singular
que entra pelos poros da janela.

E tenho
em urgente desembaraço
de lançar ao ermo sementes de musicadas flores
trovas esplêndidas 
que são a maresia de um olhar
mãos veludo em afagos merecidos,
apenas com o limite do que é deslimite,
cadeiras sublimes em faustosas esplanadas
o vinho em celebração de um beijo
uma armadura
em convocatória dos impróprios tempos,
para domar tempos esses,
e o avesso do que não traz garbo
deixando que o esterno seja
sua própria apóstrofe.

7.8.16

Barbas de molho

Não sei
se as bainhas da ironia
se cosem aos freios da boca
– ou aos freios que coso à boca.
Prefiro o mapa dos paraísos
onde nadam doces uvas brancas
tradução exímia de um pulsar desejado
as cores exatas no dimensionamento da tela
sem impurezas
sem areias que pareçam arestas vivas
sem curadores de estados de alma
sem incensadores de fé em demoníacos autos.
As diatomáceas passam na televisão
e o velho absorto dá de comer aos pombos.
E eu não sei que fazer desta ironia
que dorme nos meus braços
em inconfessado desejo de explosão.
Sei
desta ironia poder ser devastadora
ou apenas indiferente
ou um meio termo.
No caldo fervente que é lugar meu
a ironia é uma lava constante
o púlpito efervescente de onde arremato
espadas e cálices e corolas embebidas
fugindo do exílio
do caldo fervente que é lugar meu.
A ironia como a imperativa ameia
que faz paredes-meias com o exílio
que ficou no lugar do retrovisor.

6.8.16

#49

Erro bastante
erro eloquente
num áspero lençol diuturno
sem sol nunca:
erro, erro terapia. 

Dois pés esquerdos

Diziam dele
ter frio pé na contingência da dessorte.
Esbranquiçado buço e destoar
apessoado pergaminho
onde suas mãos ungiam
logo espelhos se estilhaçavam
nas dobras forçadas de um rio justo.
Já desistira:
deixara-se de preces
e nem os chapéus promitentes,
os que ajuramentavam fortuna
(alguma fortuna),
eram alfândega onde cabos radiosos
se encomendavam.
Já sabia:
dele não se podia figurar
um frio pé,
mas dois esquerdos pés.

5.8.16

Com as costas da mão

Uma panaceia para os curadores da irrealidade.
Um tabuleiro de jogo
em forma de caravela dos Andes
enquanto bebem azevinho
de uma chávena em forma de amora.
Talvez se lhes dessem verbos de troco
à medida que o sol se descamisa
e a língua verbena se desfaz em adjetivos fartos,
a eles venha o crédito de uma romaria pueril
com sapatos de corda atómica
e uma melíflua granada de mão
mesmo a troar sobre o despensamento.
Estiolam-se os amparos nos cotovelos
dentro de um bule madraço
onde a água não ferve
e os joelhos beijam
os traseiros músculos das pernas.
Afadigam-se em pré-adolescente algazarra
os eminentes vultos da fábrica
onde a lúdica abjeção se lobriga.
Se pudessem
tiravam uma talhada da lua
e serviam-se,
acompanhada de licor de avestruzes.

4.8.16

#48

Não me faças perguntas difíceis
que as viro do avesso
e no chão sem chão,
onde não tenho esteio,
foge-me da mão a espada sem travão.

Números primos

Pedregosas as montanhas
a que mãos transidas se lançam
num dia sem sol nem noite.
Sem artes outras se não as mãos
às vezes trémulas
outras inteiras
outras sequiosas de um planalto inteiro
com o fito de repousarem nos pastos planos.
Dizia ser uma ametista cerzida
em águas leves
o produto da multiplicação das mãos ávidas
com a matéria sobrante.
O verde reluzente dos campos
oferecia a distância necessária
à distância do som das ondas do mar
(tão longínquo)
de onde se evoca a maresia dos búzios
estilhaçados contra as rochas erodidas.
E talvez não fossem de tal arte as coisas
em deitando a pulsão lunar
(em sucessivas convulsões)
aos paredões húmidos a voz dolente,
em desinspirado arremedo.
Encontrei uma maquineta sem uso
fóssil de ferrugem
que porventura
seria o desfecho das horas sem remédio.
A força braçal toda metida
nas engrenagens da máquina gasta
e um navio ascendendo os montes inclinados
enquanto dois corvos
terçavam simpatia com um coelho
à medida das botas rombas
que subiam ao sol impróprio
por demencial teimosia.
Achei-me do lado contrário da encruzilhada:
os diademas desordenados
e os cantos alvares de sacerdotes sem rosto
hasteavam bandeiras vincadas
à espera de um entardecer sem pressa.

3.8.16

#47

Não sei
nem o que as certezas ensinam;
o biombo
que esconde biombos diametrais
desdobra as sombras infantes
sabendo nada e o seu espelho.

2.8.16

Palavras contumazes

Não me deixaram prender as palavras
no mais alto clamor da manhã.
E nem uma candeia acesa
irrompendo entre o nevoeiro capaz
soube ser cais sereno das palavras silenciadas.
Queria ter mão nas palavras
dar-lhes mel forte
cores morígeras
um canto sem impurezas
usá-las para caiar as paredes sujas
e ciciar ao ouvido estrofes de amor.
As palavras mareavam, sem freio,
no céu noturno
num campo de estrelas,
rebeldes.
Queria apanhá-las entre os dedos
sentir o seu apelo telúrico
reinventá-las sem sentirem ultraje.
A manhã embaciada oferecia-se
palco majestoso.
Só que os olhos cansados pelo luto do sono
os sentidos em vertigem desassossegada
os espinhos esbranquiçando o corpo intimidado
a sensação de estar num avesso sem saída
– tudo conspirou para as palavras
serem contumazes em minhas mãos.

1.8.16

#46

Metáfora enfarpelada
no sobrolho entortado
não é método ciente
a não ser 
nos estouvados precipícios 
onde o musgo não medra.