8.9.16

Injustiça

Tesouro talvez putrefacto
um achado na orla do cipreste único.

Revistada a arca em decomposição
o achado de um tesouro intacto.

O cipreste doou a sombra-escudo
e o exato grau de humidade
como se as raízes escondidas no tesouro
macerassem em formol.

Hoje
ergue-se lápide ao achamento do tesouro
(e uma nação inteira extasia-se na abastança).
Ninguém evocou as proezas do cipreste.

7.9.16

#66

Deitados nos braços da árvore maior
bebíamos a cor translúcida das palavras
e tínhamos apenas o tempo nas mãos
como penhor.

Ipso facto

Das formulações limpas em sinfonia de pureza
sem entorses ou viés
tal como se enfeitam as manhãs redondas,
proclamação.
Deixando de fora os frutos apodrecidos
as palavras enegrecidas
o couro carpido por mãos pueris
todas as estradas mal atapetadas
as artes que são desarte.
Recolhendo
no regaço das mãos hospitaleiras
os diademas cinzelados a preceito
os lugares sem conhecimento
os factos arrumados num livro de pedras
com os diamantes em ornamento final
e um beijo quente na boca sedenta.
E sabemos
fazer coro com os factos risíveis
para não sermos dados em penhor
aos sacerdotes da infâmia.

6.9.16

Cabalística

Uma adivinha com acerto.
Dois olhos pensativos juntam as baias do mundo.
Três amigos sentados em pura estarolice.
Quatro limões para a sangria dos desejos.
Cinco dedos no chão travejado por ramos fundos.
Seis lanços de escada a separarem do miradouro.
Sete semanas sem respostas.
Oito apóstolos da religião reinventada.
Nove as vezes que fora a Paris.
Dez sapatos e uma dúvida persistente.
Onze pratos e o farto repasto amesendado.
Doze estradas e um cálice a temperar a decisão.
Treze gatos negros
e nem um clarão supersticioso.
Catorze almas juntas no jardim
jogando à mesa de um jogo que passa o tempo.
Quinze noites seguidas de sono incomodado.
Dezasseis beijos sem interrupção.
Dezassete diamantes em trovas subterrâneas.
Dezoito pernas indistintas
em contorções lúbricas.
Dezanove cães à espera dos mantimentos.
Vinte quadros abertos aos olhos ávidos.
Vinte e um segredos que ninguém quer saber.
Vinte e dois sacerdotes redimem uma multidão.
Vinte e três pecadores não querem redenções.
Vinte e quatro políticos
tomados pelo ardil da corrupção.
Vinte e cinco louvores
depostos em cerimónia solene,
anos depois.
Vinte e seis baraços diligentemente apostos
no pescoço das bestas.
Vinte e sete meses antes
de serem vinte e oito os anos cumpridos
em exílio.

5.9.16

#65

Relógios entediados meteram greve:
as agendas, em desesperado espernear
e o mundo (quase) inteiro com medo
que amanhã não chegue a ser amanhã.

Nomes

Digam os nomes com a lonjura de rosas
digam os nomes esconjurados
em noites desassossegadas
digam os nomes do avesso e sem águas-furtadas
digam,
principalmente,
os nomes proscritos
em maus hábitos sanitários depostos
nas mãos de tutores de tudo o resto.

Digam os nomes.

Digam nomes.

Digam.

Mas não parem de os dizer
em continuadas proclamações solenes
que o pronunciamento dos nomes
restitui a coutada da personalidade.
Digam os nomes todos
sem o temor reverencial perante uns nomes
nem a indiferença que adeja
sobre os nomes anónimos.
Deixem os nomes respirar por si
depois de os elevar a um púlpito sem lugar
e neles ditar a consagração dos nomes
dos nomes todos.
Pois se não somos só
nomes vertidos em documentos
somos, ao menos,
a garantia salada na distinção dos nomes.

Dos nomes que nos dão nome.

4.9.16

#64

A letra ocultada pode ser:
entorse à gramática
distração (ir)resolveu
grave pandemia de manipulação.

Fulgurante

E se o arejamento das ideias
tivesse penhor em máscaras necessárias
transbordando da fogueira acesa
para um chão cheio de gelo
onde tudo se adormece?

Podem os mecanismos que desarticulam o ócio
pender para o lado da lua
e logo se encenam as máquinas compostas
em sucessivas doses de empenho:
renova-se, então,
a fé nas pessoas,
nas coisas,
no mundo quase inteiro
(que subsistem contrariedades indomáveis
e descaminhos sem remédio
– há quem insista em chamar-lhes preconceitos).

Jogam-se os dados tirados da água da manhã
à espera dos números certos.
Sem saber o que são os números certos
a não ser quando estouram nas mãos
num festival de cores que se arqueiam
sobre as palavras
e emprestam iridescência ao dia nascente.

A fórmula não está gasta.
Às vezes,
apenas esquecida
como a poeira nos interstícios das persianas,
a poeira que consome parte da luz do dia.
Mas há sempre um piano sortilégio
desembainhado da fantasia
que cobre o dia com as pétalas convincentes
que tudo o resto deixam em hibernação.

3.9.16

#63

Agora que só há confeitarias
não podia o Césariny
fazer um poema sobre uma pastelaria.  

Espelhos sem chão

Alpinismo em forma de desafio
sem arnês e escotilha
deixando à mostra as arestas pontiagudas
do sobremarino diletante.
As persianas escoltam o medo
restituem um módico de luz
aos medos transidos pelo medo dominante.
Não têm de assobiar à lua
os marujos enferrujados
os timoneiros esquecidos
os poetas sem reincidência
os docemente loucos sem demissão.
Cães vadios
lembram o estertor que se impossibilita
e as mãos invejadas desenham nuvens belas
no ar que se compõe em forma de tela.
Oxalá os desditos e as controvérsias
não fossem engodos pueris.
Oxalá
pudessem as árvores permanecer frondosas
mesmo quando a neve terrível
enregelasse os seus poros
e as candeias de aço não fossem bastantes
para o degelo.
Desestima-se a vaidade periclitante
o desamor enfurecido
os rostos contristados pelo afã dos demónios
a balsa falsamente penhor de refúgio
as estradas sem mapa nem vértices achados
as intempéries retemperadas
as línguas esfaimadas
que almejam bocas efusivas.
Os sinais descodificam-se
por mais que venham disfarçados
em vestes árduas.
O tempo está à espera de ser esvaziado
por atores confusos
que não sabem por que ordem usarão as mãos.
Tirando isso
a fatiota a preceito
para a agitação dos dias usuais
e o entardecer,
como são todos os entardeceres,
procura refúgio nos contrafortes
da noite timorata.
Antes
que sejam sufragados os medos contrafeitos
e a noite,
a noite longa,
seja espargida pela demência de um instante.

2.9.16

#62

“Se lhe puder ser fútil em qualquer coisa...”
A recetividade amassada
como o joelho teimoso
que não queria sais balsâmicos
nem arrozes afetuosos.

Almas encontradas

Ao longe o chamamento
como se fosse de um minarete centrípeto
e as pessoas,
em humilde acatamento,
maquinalmente se dirigissem à oração.
Deitam ao chão o que sobrar
da posse de si mesmas
como peças centrais de um palco delas.
Ajoelham-se respeitosamente:
há divindades para consagrar
um púlpito invisível de onde dimanam
forças concêntricas que dão nutrientes a tudo.
As bainhas interiores
descosem-se com a exposição às divindades.
Voltam a ser cerzidas
é o efeito das propriedades heurísticas
da oração.
Ajoelhadas e de olhos fechados
inspiradas no rumorejar das preces,
dão consigo na imensidão de um céu claro
de um paradeiro sem rosa-dos-ventos
nem agulhas certeiras no âmago de bússolas.
Voltam a casa
como se fossem imperadores em si mesmos.
À espera de um novo chamamento
e das redenções desalfandegadas
pelas necessárias orações.

1.9.16

Nuvens

Às vezes
apetecia mergulhar nas nuvens.
Sobretudo se estivessem plúmbeas.
E dedilhar os seus interstícios,
podia ser que por aí encontrasse solução 
para as demandas constantes.
Não queria tomar pulso ao sol.
Não queria descobrir os segredos das nuvens
(tão exemplarmente indagados
quando os petizes fazem a estreia de voo).
Nos leves folhos das nuvens
entre dois solavancos fabricados pelo vento
fugindo das arestas vivas onde as nuvens
se transfiguram em trovoada,
seria seu passageiro.
E testemunha maior
do estado geral das terras subjacentes.

31.8.16

#61

Vernáculo audível, três mulheres.
Uma mulher faz dos dedos chupadouro.
Depois da torrada.
O vernáculo adorna as orações.
A torrada, em digestão.            
(E o vernáculo, dissolvido na manteiga?)

Alvorada no estirador

Partia a alvorada com as mãos
vertendo no chão tugido
a seiva frutuosa.
Era o prémio pela madrugada estimada,
mas deletéria,
jurando às estrelas expostas em tela escarlate
que não haveria destemores
nem luares embaciados
que voltassem a tirar o freio às lágrimas.
Pois as mãos que ajuramentaram a alvorada
passaram a ser penhores de altivez merecida
dos cantares abnegados e inspiradores
dos céus esbracejados com espadas de bondade.
Para depois da meia-noite,
como se fosse o ártico sol que se não deita
a coroar uma singular aurora boreal,
fonte total do tempo coagido
entre as mãos sagradas.

30.8.16

Mensageiro

“Não espetes o dedo no rosto do mensageiro
que o mensageiro é só um portador.”
Dos sarilhos maiores o portador se exime
na exata medida da responsabilidade
com cabimento no autor material.
Dirão
que o mensageiro é refém da ingenuidade
preso na estrutura mental de quem manipula.
Dirão, outros,
que o mensageiro é cúmplice
em não sendo desprovido de vontade.
Nada disso importa.
Não importa o mensageiro
não importa o autor material da mensagem.
Só releva a mensagem.
E os sarilhos de que ela é barragem
prestes a implodir.

29.8.16

#60

Tristezas não pagam dúvidas.
Dúvidas coalescem em insónias.
Insónias amadurecem tristezas.
O ciclo interrompido:
noites águas santas de sonos tágides.

Ponte-sobressalto

A ponte fina, estreita
moldada no musgo dos dias ergástulos
cimenta o que os pés têm por esteio.
Tremeluz com o peso do corpo,
arqueada sobre as laterais
em vertiginoso movimento pendular.
O corpo titubeia.
Não sabe se as fundações são confiáveis
não sabe a fundura do precipício
– não sabe se há rede
que ampare o voo contumaz.

À falta de asas
o corpo timorato faz coro com o medo.
Não teve tirocínio da intrepidez
nem se afamou pela loucura ufana.

Antes do ocaso
em perfeita penumbra dos sentidos
o corpo transido adormece
nos contrafortes da ponte rebelde.
À espera de uma ave de grande porte,
generosa,
que o leve no dorso.

(Só não estima para onde o levará
a ave de duvidosa generosidade.)

28.8.16

Boxeur sem luvas

O boxeur arremete pela multidão
os punhos cerrados como imagem interior
da ira mal calculada.
No seu caminho errante
sem se desligar do esgar iracundo
o boxeur jura ódio às pessoas;
é como se de repente
se achasse de outra espécie
e nos da espécie de que se demitira
retratasse ideal saco de boxe.
O boxeur sem sono recusava descanso
por mais que interiores vozes sussurrassem
o imperativo descanso
para amansar as mágoas.
Mas o boxeur
teimoso
achou numa lua adornada por penumbra
a certeza da violência.
Saiu-lhe má lotaria logo a seguir:
um discípulo do Dalai Lama
sentado ao lado no metro para casa.
Os murros prometidos
foram engolidos na sanha em que se lavou.

27.8.16

#59

Domesticado o medo da decadência
compus um hino mirífico
e adormeci no caudal das cinzas contumazes. 

Astrolábio

O rumorejo que se desfaz
na embocadura do ouvido.
Deixando corpos transidos
um tremor de terra por dentro
na justa medida do sol que entardece.
Os ossos cansados
e ao mesmo tempo
penhores de um dia maior
estendidos pelo chão à procura do sal deposto.
Ciciam-se cantos leves à sombra das árvores
sobre os pés restabelecidos.
No mapa que se diz
das entranhas desenhado em elípticas metáforas
confundem-se os braços atravessados
num amplexo percutido.
As folhas rasteiras trazem um odor ocre
e as narinas intuem o festim.
O pano carmim
cobre os corpos envergonhados
estende-se na diagonal dos cantos da sala
o pano carmim
à espera que o palco se entronize
e os corpos dancem a coreografia
desenhada com dedos de ouro.
Os despojos emprestam
um canteiro de flores à sala.
Na maré alta dos tambores doados,
mesmo quando as estrelas destravam o olhar
e o suor que enfraqueceu os corpos
se transfigura no néctar esperado,
obra-prima das mãos mestras arquitetas
da ideal banda sonora.
O resto
deixa significado na fronteira da sala.

26.8.16

#58

O sarcasmo desceu à boca
no desfile sem filtro:
um ajuste de contas com os sobressaltos
a despeito de não terem sido convidados.

Prova dos nove

Preso nas estrofes da noite
já a lua fina envergonhada espreita
faço as contas num papel amarrotado.

Os números atravessados
parecem um estendal antes da brancura
antes de o sol neles se deitar
(tantas as cinzas que os cobrem).

As contas travam o caminho
entaramelam-se com a centelha iridescente
e dois dedos de conversa ao telefone.

Prouvera que cheia fosse a lua
para dela subtrair uma fatia gorda
e depois
entre as gotas vermelhas da chuva
e o acobreado das flores campestres
o chão se tornasse plano
para os números se deitarem em remoço.

Mas as estrofes da noite
desenganam as ilusões:
o chão irregular continua irregular.

O papel amarrotado
pano sofrível para os cálculos necessários
vai,
insucedâneo,
para o destino que foi sua origem.

Amarrotado
insalubre
sem as contas feitas,
apenas um amontoado de números
sem cabalística prova se não
um amontoado.

25.8.16

Roda

A roda viva
roda dentada
roda corrida
mantimento dos súbditos
em roda paralela
com o oxigénio infinito
roda dura
no paço onde se terçaram batalhas
roda estremunhada
penhor do sono à espera
roda virada
fugindo do fosso incapaz
roda deitada
no grito compungido dos celerados
roda gigante
cosmos das fantasias por cumprir.
À roda das rodas
enquanto a roda maior se faz lotaria
e as pontes saciam distâncias emparedadas,
roda a roda
onde todas as rodas rodam.