7.4.17

Mandatário

Mandam-se avelãs 
aos escombros do pretérito
sem se intuir o seu adocicar. 
Mandam-se as avelãs
ainda por amadurecer
porque esse é o desejo
(e chega).
Se não fosse o guarda-chuva oriental
o sol tinha vencimento,
mas só acima das nuvens tingidas
com o pulcro.
As cinzas esvoaçam
dizendo que o vento se agigantou.
Quem diria?
O mandatário
não pode nada.

6.4.17

#178

Não queiras garantir o futuro
se o futuro é que te dirá
se é tua garantia.

Amor-âncora

“De que valem todos os atos e pensamentos dos homens no decurso dos séculos face a um único instante de amor?” Friederich Hölderlin

Dizem oráculos escondidos
na sombra da dúvida
que um amor é singular
quando
limpa as lágrimas vertidas
ampara as mãos trémulas
desarvora as bandeiras párias
aquece o sangue deixado em frias águas
e quando
os olhos são o penhor
dos olhos que são seu penhor também
e tudo se transluz
nas ameias da cumplicidade.
E se o singular amor
transfigura a paisagem
derrete a lava dos vulcões
participa nos palcos medonhos
(amaciando os medos, ociosos)
afere as medidas estouvadas
encorpa a loucura benigna,
é por ser singular
e amor
num mesmo tempo
num só tempo
irrepetível, mas perpétuo.
Embebidos os corpos
no sal vistoso apanhado das flores
as montanhas em pano de fundo,
nem as pedras enrugadas do caminho
atemorizam os pés
e os corpos atiram-se num voo fecundo
e fazem seus os domínios avistados
no testamento do amor sem quesitos.
Até que o tempo seja a medida inteira
abraçada pelas mãos juntas
fotografada pelo olhar uníssono
e do tempo sem fim frua
o amor-essência
– com a jactância que guardam os amantes
no mar indomável reduzido
ao suor derramado por seus corpos.
Pois a matemática singular
a que não se ensina nas escolas
e irrompe da porosidade das almas amadas
resgata os amantes
de um trespasse mendaz
das aciduladas páginas a que põem freio.
Do tempo sem fim
na mediação dos amantes
até que da arquitetura dos deuses
sejam seus tutores.

5.4.17

#177

Perentório
do cimo do promontório
no resfolegar emancipatório,
o poeta sóbrio
livre do reformatório.

Fiasco

Sobre o dorso do silêncio
deitado
rosto seráfico,
esfíngico
dedos entrelaçados
um copo à frente,
à espera
e uma robusta teoria
que se entretece
no projeto de pensamento.
O vinho de segunda
apodrece a função
antes mesmo do amadurecimento.
Os olhos
recolhem-se dentro das pálpebras,
embaçados
ou talvez apenas contristados,
como se fosse o ato quimérico
o resgate dos gestos perdidos.
Sobra o silêncio.
Não foi por sua ausência
que faltou húmus à ideia.

4.4.17

Convento dos bárbaros

No convento dos bárbaros
onde o cuspe é manjua
e os chispes passam por pensamento
elevam-se heróis
pelos dedos untuosos de alguns
ainda mais covardes.
A confraria dos bestuntos
corifeus danados que alçam coices
e calçam ferraduras
diz-se pertença de gente pensante.
Eu cá tenho as minhas certezas:
comem no pasto dos arrotos que tecem
e deitam-se na latrina
onde bebem o vinho podre.

3.4.17

#176

Queria ser pletora
coexistir comigo mesmo
mas não saio dos limites de mim
por um tamanho que mete medo.

Desmedida

Um bando de pássaros
desenha o céu
em voo sincronizado.
Sucedâneos das nuvens
na fartura invernal.
Em emboscada à coesão do bando
um pássaro tresmalha-se
e, sem as asas protegidas
pela bússola do bando,
aprende a solidão.
Antes que outro bando o encontre
agita as masmorras do desprendimento
sopra a poeira que se abatera nas asas
e regressa a um lar com as asas ungidas
pelo perfume santuário do cais descoberto.
O pássaro esqueceu-se de contar
como são os degraus inclinados da solidão.
No recolhimento do bando
reaprendeu a ser comum.
Até que alguém sussurrou:
toma atenção
pássaro recluso da ingenuidade,
que o bando vai querer de ti
o sangue e a carne
se preciso for
e para te convencerem
dir-te-ão seres nula entidade
no meio do grupo venerado.
O pássaro
desconfiado
recusou tudo o que se lhe oferecesse
em ardilosa congeminação
que desaprovasse a sua vontade.
Não foi ave solitária
tresmalhada
nem se empenhou
na simbiose forçada do bando.
Uma vez sem exceção
o pássaro fez a síntese dos impossíveis.

2.4.17

Máquina de engomar

Na lombada da geografia
danço
mesmo com o desjeito sabido
e vou,
com o vagar preciso,
envelhecendo nas veias visitadas. 
Na rotunda dos saberes
ponho as vírgulas no sítio
penteio os sapatos gastos
aprendendo à custa das lágrimas
no sumo recolhido dos frutos apanhados
das árvores remotas. 
E deito-me
já noite
com o inexprimível esgar 
patrono do sono prometido.
(Dispensando anjos
que têm outras empreitadas
com mais água pela barba.)

1.4.17

#175

Razão atendível 
sem rebuço
no remoço de um remo
atordoante. 

Fundação

Deixar a safira mais valiosa
amarrotar os irremediáveis nós de chumbo,
doravante desatados
e já não nós. 
No emaranhado de palavras duráveis
junto à praça onde as cotovias se aquartelam
na pose altiva de quem ensina
balbuciam-se,
sílaba a sílaba,
as palavras-mestre
os beijos amuralhados
sob o olhar dos sentinelas sem sono 
com as armas terçadas
no tabuleiro das proezas. 
Nas paredes frias
passam as mãos aveludadas
e as paredes enfeitiçam-se
com seu calor. 

31.3.17

#174

O solstício atrasado
mas jura a tempo
e os nenúfares vicejantes
esperando.

Maré

O que conta a espuma do mar?
O que vem na fina camada
que entroniza uma onda?
Que segredos esconde o mar?
Que contos sem autor
estão náufragos na sombra do mar?
Que navios sulcaram estas águas
que me insonorizam os sentidos?
Que severidade traziam seus comandantes?
Quantos foram os sobressaltos das tripulações 
contra os demónios agrilhoados
ao mar tempestuoso?
Quantos os navios destroçados?
Quanto tempo demorou
a domar as ondas irascíveis?
O mar
aprendeu a vestir o fato da ternura?

30.3.17

Jogos sem fronteiras

Olha:
uma folha em branco.
A forma à espera
de tamanho.
Um cuidado em diligência.
Lápis sentado
entre a muleta do pensar.
Um comboio atrasado
à frente da nuvem.
O gato sonolento
ronronando.
A bandeira rasgada
ao vento vadio.
A faca esgaçada
no estertor da ira.
O deserto do rosto
sob o gelo contumaz.
A urze que medra
no desmentido do outono.
O pregão sem rosto
na voz deslaçada.
A página roubada
ao plágio improvável.
A trova mugida
do lóbulo estrelar.
Frutos podres
antes do tempo.
O tempo que foge
na penumbra coagida.
A coação das palavras
sob a égide de uma espingarda.
Espingarda maleita
no avesso do mar.
Mar desnatado
sem fruição.
Discurso obnóxio
de pajens sem vontade.
Um posfácio sem redenção
no aproveitar da roda incansável.

#173

A terra dourada
em préstimos legítimos
e donativo matinal sem recompensa. 

29.3.17

Hoje

De hoje
sobra o sedimento apurado
nas fronteiras do sentimento. 

De hoje
trago ao peito os lugares devolvidos
num promontório esquecido. 

De hoje
atiço ideias sem a poeira do amanhã
enquanto me despojo das ruínas. 

Do hoje
sem ontem a arquear
nem amanhã diletante
prometo destronar 
a candura das velas acesas
dos mastins esfaimados
que se atiram à carne e ao sangue
dos profetas desapossados
em preparos desassisados
dos mandantes sobranceiros
das árvores sem fruto
da ira sem serventia
das campainhas estouvadas. 

Do hoje
sem peias
sem pejo
no lauto jantar
à minha espera. 

#172

Das eras antigas
vestígios
bruma dispersa
um octogonal monumento
e a sede inteira do céu por descobrir

28.3.17

Sem vergonha

No vértice da tarde
onde o chão arruma a bruma
pelo módico esgar de um mendigo
deitam-se ao céu preces sem autor.
As ondas venais
sem areia para beijar
desfazem-se no cais antigo
à espera de um vento soberbo
que as faça aportar no lugar cobiçado.
Na embocadura do rio
As barcaças arremetem contra a corrente
engolindo a espuma das ondas
que vencem o braço de ferro com o vento.
E a noite tremenda
esbracejando o luar alvo
abre as cortinas
para a loucura sem quartel.
Os vendilhões afinal não o são.
Sobram as côdeas esfareladas
do baraço rutilante
que amordaça
todos os pesares sem estima.

#171

Não me lembro do futuro
no formulário das concessões
deste pedestal inverosímil
de onde me devo,
ausente. 

#170

O medo
arranca por dentro a vontade. 
Nos alçapões sem fundo
está o medo de não ter medo. 

27.3.17

Instituto de Meteorologia

(Em jeito das conversas à falta de assunto, tirando o assunto meteorológico do saco)

Desafio as portas da primavera.
Desafio-as
a serem tutoras da claridade reavivada
das flores gravitacionais
do mar que descansa do desassossego invernal
das pessoas sequiosas de leveza de indumentária
do entardecer que se estende pelo dia fora
das nuvens alisadas no céu aberto
das árvores que voltam às folhagens
dos aromas silenciados no inverno
dos mananciais que se escoam fartos,
fruto do degelo.

Desafio as portas da primavera
a não se esconderem
na carantonha do inverno a destempo.
A não sufragarem os frutos em viço
debaixo da geada mortífera.
A não importarem das lonjuras
ares não convidados,
ares estranhos,
que as gentes protestam
contra a primavera em contrafação,
definhada
adiada.

Talvez
os deuses pudessem encomendar
por sua interposta pessoa
aos caudilhos das anomalias dos elementos
uma trégua.
Só para não ter de ouvir
incessantemente
lamentos de um tempo fora do seu tempo.

#169

Das cansadas arcadas
em aparente demanda, 
imparável muralha em fina matéria 
de vidro-espaço. 

26.3.17

#168

Parada de esqueletos
joias sombrias, gastas
grandeza de outrora
vozes guturais,
a destempo.

Elástico 

As fráguas tatuadas no dorso
coisa sem faceira 
confirmadas no rosto da lua. 

Os sapatos botos
perseguem a candeia que assobia
sempre uns passos à frente. 

A intermitência do fojo
não deixa dúvida:
passeiam-se os braços 
na efusiva celebração
que cada dia exige.

Nem que seja
em contramão dos pesares. 

25.3.17

Desalmado

Sem as cortinas avultadas
sem os freios que instruem engodos,
descarnado.
Sem as águas furtivas
sem as costuras à mostra,
desmatado.
Sem os vultos assacados às intempéries
sem as básculas intermitentes,
desossado.

24.3.17

#167

Viagem simbiose
em vulcões que esbracejam
diáspora de espadaúdos deuses
em sua lívida cartografia. 

Fonte certa

Passado o equinócio
sobravam as flores dançantes
em forma de chão
propositadamente congeminadas
para receber os pés. 
Não havia varandas sobre as nuvens. 
Não havia lamentos ciciados
debaixo de negra indumentária. 
As janelas entreabriam-se,
Timoratas,
mas acolhiam o mostruário que espreitava. 

Sem saber
juntei nas mãos as pedras preciosas
que vieram ao caminho. 
Os poetas não adormecem
diz-se, como se mostrassem heroísmo. 

Do alpendre estival
enquanto a preguiça estiola
e os olhos se perdem no firmamento
trago no peito
a crisálida mais bela que encontrei,
a espuma sublime
que se desprende de uma onda do mar,
a gravata em forma de mapa,
a voz doce que perfaz o encantamento.

Estou à espera
das horas pares
e dos acetinados do céu
para inventar outro equinócio. 

23.3.17

#166

À toa
sem Bacalhoa
bexiga escoa
juízo destoa
braço arpoa.

Miragens

O suor cansado
carrega heróis sem trono.
Que espetacular desperdício
vontade a rodos sem espaço a preceito
num matrimónio de inconveniência
que espalha olhos de gato
em avenidas estultas.
Os rapazes sonolentos
afinal
sabem mais do que os catedráticos.
Não admira.
O dia acordou sentado no céu
e não consta que as nuvens
corram no mesmo sentido do vento.
Às vezes
as trovoadas despejadas em feérico bolçar
aguentam-se no lapso sem memória.
É o que lhes vale.
(E aos rapazes sonolentos
– certos de saberem mais
do que os catedráticos –
que continuam a beber dos bueiros.)