22.4.17

Zona franca

Os óculos
sobre o mundo.
Embaciados.
O estremecimento
no limiar da alvorada.
Sem a lua franca.
As perguntas desfavoráveis
sobre as cores.
Um acordo sem palavras.
Emaranhado.
No cultivo das horas a mais
sem o destempero da pressa.
Um apanhado
da geografia ampla.
Olhos ávidos.
Destilados.

21.4.17

Vazio 

Os nomes sobrepostos,
encavalitados numa escada gasta,
no confisco das almas
desistindo. 
Caminham arqueados
deitados no cansaço torpe
fabricado pelos algozes que obliteraram o sol. 
Olham para o céu
e as nuvens densas são como grades
que separam o lugar de onde estão
da ampla liberdade
embaciada no avesso do sol. 
Os prantos deixam o chão enlameado. 
A longa estrada,
uma reta interminável que esconde o horizonte,
esbarra no vento azedo. 
Os nomes sobrepostos
numa amálgama que desaprova a condição
não sabem o sorriso
e bebem na justaposição dos vinhos apodrecidos,
que já nem sequer embriagam. 
(Até essa esperança foi sanada.)

#187

Culpado da erudição atordoante 
ensinava ignorância amiúde
ocultada na febre da altivez. 

20.4.17

Duelo

O almocreve cismado
desconfia da trovoada;
resiste
desfila a besta de carga
no corso risível a destempo. 
Na esquina temperada,
onde joias não há,
desafiou o espantalho. 
O espantalho tinha vida,
vida própria;
era um espantalho fenómeno. 
(Por uma vez
o almocreve achou possível
o Pinóquio.)
Dali sairia duelo
no fiel do mais bestunto. 
Os dois ambicionavam a coroa. 
Faltava combinar
as armas por terçar. 
O almocreve escolheu 
a pontiaguda pança. 
O espantalho
a roda viva da dieta a eito. 
Assim como assim
só o almocreve precisava de mantimentos. 

#186

Virei página
nas palavras vertidas
em memória futura
e fiquei matéria viva da posteridade. 

19.4.17

#185

Precatam-se as sombras
que descem das nuvens plúmbeas:
não é hecatombe,
nem dilúvio
é a revivescência dos elementos.

Amanhã

O piano dedilhado no rumor manso
e as páginas que voam com a noite furtiva
sem convidar o desespero
sem evocar as malsãs esquinas do tempo
na admiração perene do que houver
por admirar
nem que seja pouco
nem que seja quase tudo.
Sentam-se os dedos no veludo da flor
e o mar plano chega para leito dos sonhos
no avesso do dia soalheiro
e do vento rebelde.
Às dúvidas
manda-se dizer que persistam:
não se encomenda mal atilado
se interrogações permanecerem acesas
sem refutações ensaiadas.
A gente na rua
prova o esteio impecável do planeta
sem contemplação 
com os que encontram nos outros
o diabo em pessoa.

Não tem importância.

Desajeitam-se os cabelos sem penteado
coíbe-se o estremunhar dos olhos
e as múltiplas facetas da alma 
erguem-se no altar
onde,
impantes,
os vivedores compulsivos
se consagram
a si e à vida
no palco imenso onde o público
é imperador.
Os estouvados precursores do desconhecido
ensinam estilos avulsos
esboçam estrofes que atestam memórias
sem soçobrar aos vulcões adormecidos
sem deixar de mestiçar o que não é par.

18.4.17

#184

Falava-se de pecados.
Era pecado pecar.
Recado do sacerdote, desde o púlpito.
O sacerdote gostava de pornografia.
Pecado, era atirar a censura ao sacerdote.

Pontuação

Um . 
podia ser uma ,
a pausa semântica ditou o .
Se houvesse enredo ao meio
e a oração se estendesse
exigir-se-ia um ;
ou talvez um –
se a estética da oração
não ditasse um ().
Na báscula gramatical
haja ao menos o brio
(ou a destreza no uso das regras)
para não pôr as ,, fora do sítio. 

17.4.17

#183

Espreita a escotilha
os olhos do avesso
e recolhe nas mãos
os segredos guardados
nas gotículas que se desprendem.

Evolução

Dantes
era uma fotografia
de mim mesmo.
Dantes
era
apenas
fotografia
de mim mesmo.

As voltas do mundo
o tempo em sua madurez mansa
as veias mitigadas
o pensamento aclarado
os contrapesos da alma
o horizonte despido de urdumes
trouxeram-me
da fotografia ao lugar de substância
a gente não apenas fotografia
a gente-gente
pleno em carne e osso.

Agora
entreolho a fotografia de outrora.
Agora
olho de frente
sem peias
sem medo de ter medo
a fotografia de outrora:
afinal
é possível vermo-nos de fora para dentro
na lenta maquinação do tempo furacão.
Do tempo
que transfigurou a fotografia
em pose sanguínea.

16.4.17

A soma das partes

Maior
do que a soma de todas as partes
a metamorfose das paredes
amparadas nas mãos túrgidas
desembolsa da areia as joias do mar.

Maior
do que a soma de todas as partes
as mãos simbiose remexem
entre o restolho do outono
os ramos fortes para amparar
as paredes decadentes.

Maior
do que a soma de todas as partes
o ocaso temperado
o chão de mar desemparedado
as tesouras em perequação
gravatas impecavelmente apessoadas
(sem todavia pescoços)
contratos sem papel nem assinaturas
as árvores frondosas à espera da primavera.

Maior
do que a soma de todas as partes
o poema tangido a quatro mãos.
Em uníssono.

15.4.17

Baliza

Cifrado o azimute na seara
de onde o mel se atirava aos viajantes
sabiam-se os olhos aturados de sombra
sob as asas de uma ave esguia.
E depois
nos degraus vazios
a escada íngreme bebia o convite
e os parentes lidavam com a safra audaz.
Embebidas as lágrimas no cálice fino
sobravam as pétalas escassas
em forma de ouro:
o depósito sagaz
da grandeza estiolada
quando tudo se desunia
dos esteios frágeis.

14.4.17

A idílica luta de classes

No cuidado artesanato dos haveres
trinta peões prostrados
valsam no precipício.
Juntam os dedos em cuidada sinfonia
com prevalência do silêncio,
no desânimo dos apequenados
em resignação religiosa.
           
(Foram educados
      que o oiro rima com silêncio.)

Os suseranos
poltrões em exercício de regalias
comicham sentados
nos diamantes das sinecuras.
As conchas secas
onde nem as aranhas pútridas acamam
são o leito dos mandantes.

      (Os peões já sabem
      que a equidade
 vem no dorso da moda.)

Doidivanas
os dissidentes de tudo
emparedados
entre o conforto da autoridade
e a reverência dos descamisados.
Na doce loucura da dissidência
escolhem os vitupérios a preceito
e esfregam-se no perfume desatravessado.

       (Não se enforcam no desconforto
  da posteridade aprovisionada
  como os peões
  quando açambarcam o poder.)

13.4.17

O beijo

Um beijo
salga a pele dourada
e eu
num enlevo sem meneio
reponho em dobro
nos lábios assim humedecidos.

Se o beijo falasse
teria cores que as palavras não têm.

O beijo
que abraça
os corpos em combustão
fósforo em reviravoltas constantes
no dever inalienável
do beijo sem pudor.

Na alvorada-beijo
pelas costuras do beijo,
o beijo-espada que emulsiona a alma
o beijo pulcro,
até se deslaçarem as fronteiras
do beijo-noite.

#182

Só se a medula vicejar
e no restolho da alma
as floreiras forem perpétuas. 

12.4.17

Diacrónico

A valsa dos chapéus violetas
brandida em banho-maria
à espera da alvorada macilenta
à espera dos dados sem sortilégio
numa rua sem eco possível.

Um sultão marreco
em aproximação ao confessionário
passos vagarosos e olhar desconfiado
à espera do sacerdote combinado
em juízo dos arrependimentos
dos esquecimentos
do que deveriam ser esquecimentos.

A cobertura da catedral
tinge-se dos raios difusos
de um sol partido.
Dizem que as intenções se entronizam
no congeminar do belo
que delas se extrai.

E que mais nada importa
– dizem, também.

11.4.17

#181

Não te lances
estrénuo
ao vértice do farol sentinela
que das lágrimas não trazes
palavras. 

Bricks and mortar

Aos cunhos sem desafio
aos deuses esquecidos
aos mendigos felizes
aos próceres da tirania
aos parâmetros da toleima
aos varões bizantinos
aos cozinheiros sem sal
aos tementes de agnosias
aos lídimos arautos da decência
(ó coisa mais linda!)
aos professores do desamor
aos diligentes cavaleiros da temperança
aos algozes da mentira
aos contrafeitos penhores da idade
aos relógios sem serventia
aos meninos intemporais
aos tiranos sem trono
aos tronos emagrecidos
aos confecionadores de dietas estultas
aos estroinas sem memória
aos zangões sem colmeia
aos padrinhos com espelho aumentado
aos sindicalistas exaltados
aos madraços sem mangas
aos leiteiros do leite azedo:
lavem as mãos gastas
no manancial rico da serra longe.

10.4.17

Incorrigível

No paço das rebeldias
ilustres desconhecidos fizeram tirocínio
uns
por dever de alinhamento 
no lado lunar da monotonia
outros
por caírem numa inadimplente distração.
As paredes ásperas
são um descontínuo no venal convento 
onde uns pernoitaram a eito
e é lugar habitual para os estroinas
sem remédio. 
Nas traves da noite malsã
o paço arregimenta 
prazeres vários
merendas sagradas no púlpito
onde deuses sobejam
segredos que afinal todos sabem
(continuando, por teimosia, a ser segredos)
uma centelha singular
que dissolve trevas à sua passagem
um contínuo de insubmissão que quadra 
com o orgulho curricular. 
Persistem as neblinas que escondem a manhã
em levas de barcos sem rosto
que transfiguram os mares. 
Amanhã
quando houver outroras para assinalar,
e os corpos cansados 
se deixarem ficar na espreguiçadeira do porvir 
dantes ajuramentado, 
a majestosa cobrança virá a pleito:
quantos dos quartos 
emparedados com a rebeldia insana
trouxeram um propósito anelado?
Porventura
apenas um esboço de interrogação
muito certamente destinada a réplica ausente
(e sê-lo-á não por economia de palavras).
Pois os segredos
mesmo quando são um ardil na sua perfeita forma
são sempre segredos. 

9.4.17

#180

Mnemónica:
farinha maisena
argamassa
chefe de obras;
não:
gastronomia.

8.4.17

Bolsa de valores

Fechou a porta por fora
a chave esquecida por dentro.
Não se apalavrou ao medo.
Nos contrafortes dos dilemas
há uma chave escondida
um suplemento de ânimo
uma penumbra não escondida da claridade
o trunfo na improbabilidade do ganho
os horizontes arrematados à névoa,
sem escafandro.
A porta fechada por fora está.
A pose abonatória
joga a seu favor:
no perjúrio da mofina
congemina-se o luar promissor.

7.4.17

#179

A enseada abre os braços
e sob o juramento de deuses bondosos
conduz a embarcação
sem o estorvo das armadilhas. 

Mandatário

Mandam-se avelãs 
aos escombros do pretérito
sem se intuir o seu adocicar. 
Mandam-se as avelãs
ainda por amadurecer
porque esse é o desejo
(e chega).
Se não fosse o guarda-chuva oriental
o sol tinha vencimento,
mas só acima das nuvens tingidas
com o pulcro.
As cinzas esvoaçam
dizendo que o vento se agigantou.
Quem diria?
O mandatário
não pode nada.

6.4.17

#178

Não queiras garantir o futuro
se o futuro é que te dirá
se é tua garantia.