15.2.18

#473

Este é o magma de que sou feito
medula fecunda
o cais de onde sou inamovível.

14.2.18

#472

Um fósforo emaciado
acende chama timorata:
a noite encontra seu eclipse.

Interrogatório (?)

E se fosse esta a arena
onde as cartas se jogam
na mudez do orvalho matinal?

E se as ondas abertas
não se fundissem na véspera do areal
invadindo (alegoricamente) as janelas?

E se frondosas sereias
lograssem as distantes montanhas
recolhendo dos arbustos frutos silvestres?

E se a lua comprida
se mascarasse de aurora boreal
e as espadas diuturnas aguardassem veludo?

E se as crianças emancipadas
não fossem obedientes
nem aos seus próprios vultos?

E se as letras de um alfabeto diferente
fossem desenhos impressionistas
por dentro da tela rasgada que fere os olhos?

E se a noite emudecesse
e só sobrassem páginas brancas
à espera de escrita?

A sagração do amor

O amor
fábrica de cumplicidade
fervendo na erupção dos sentidos
um amor
sino centrípeto na casa
combustão em degelo noturno.
O amor
às nossas mãos
na entrega ímpar
em empolgantes coreografias
com a lua por testemunha
na varanda sobranceira ao palco do mundo.
O amor sereno
o amor insubmisso
o amor matricial
deixando às estrofes seu hino
deixando ao desejo sua estirpe
deixando à uníssona voz seu lacre.
O amor fértil
o amor sem algemas
o amor semente
multiplicando por mil
a colheita que vem às mãos
na sagração do dia.

13.2.18

Sonhos tiranos

Não deixo os sonhos falar.
Não os deixo ter rédea.
Não quero a pilhagem sem aviso.
Não quero um palco cheio de espinhos.
Não quero a jugular da vida apertada
por mordomos sem rosto.
Sonhos sem gramática
apenas sonhos alçapão
precipícios vorazes
polvos famintos
em tentáculos desdobrando-se no corpo transido.
Não quero estes sonhos
os sonhos suados
no coração latejando em silenciosa ira.
Os sonhos indomáveis
não convidados
e que amesendam no leito frio
na desprotegida nuca imersa no sono
sua vítima sem direito de resposta.
Os sonhos cavernosos
em vozes repetidas num murmúrio intransigente.
Sonhos tiranos.
Pois os sonhos não se negoceiam
não admitem uma vírgula à esquerda
ou um parágrafo a destempo
ou um verbo em forma modificado.
Sonhos
punhais sem licença
pedindo a carne
pedindo ajuda a um cálice oxidado
onde se vertem lágrimas
na equação do sobressalto.
Refém dos sonhos
às vezes com medo do sono
por medo dos sonhos pelo sono levitados.

#471

O dique
cais seguro
onde as águas irreprimíveis
amansam.

12.2.18

Margem de erro

Por pequena margem de erro
sentado na margem do rio indomável
escuto as águas caudalosas
destroçando as pedras amontoadas.
Por pequena que seja
a margem de erro,
erro –
e não se discute 
se o erro é credor de indulgência
ou se tem de contar no cálculo das insciências.

Será a margem de erro
cláusula elástica
ou caução para o desrigor?

A partitura baça não ajuda
e até um tiranete boçal
não arriscava ripostar
ficando deserta a demanda.
Use-se o acaso;
a métrica conveniente;
um critério avulso, por assim dizer;
que o desrigor quadre com desregras.

Até que a margem de erro
deixe de habitar
os pesadelos dos estatísticos.  

#470

Torres pedras, torres velhas
cópia de cópias
matrioska de originais.

11.2.18

Tradução

Tradução:
a impressão não se estriba
na memória adestrada.
As facas dançam no limbo
sem atores por limite
sem segundos sentidos
ou parábolas imprecisas;
dançam
e ninguém lhes desenha os movimentos.
Tradução:
talvez sejam sinais sem fumo
nuvens ausentes de chuva
um saxofone molhado e,
portanto,
emudecido
um poema de silêncios.
O descontrato selado em papel de água
contraria os medos trespassados
os alpes contidos nos bolsos do querer
uma peça do jogo abandonada à ilharga.
Tradução:
tradução sem tresler;
macias sejam as palavras escolhidas
nas horas que se ensinam
em decálogos silvestres.

#469

Máscara
a culpa sem freio
fingimento sem palco.

10.2.18

#468

Não cederás à armadilha
do discurso gongórico.
Não serás
como os farsantes que o bolçam.

Parteira

Ó árvore justa
que fitas o céu
béu béu, béu béu
dita o que a melancolia custa.

Ó arquiteto erudito
que olhas a terra
berra, berra
a injustiça desde o teu púlpito.

E tu, simples mortal
afocinha no chão
ão ão, ão ão
admite teu valor venal.

9.2.18

#467

Do mais poético
em tempos derradeiros
uma rapariga, em enlevo, apregoar
“I love my life”.

A vitória

Não são falsos passos
nem sombras emaciadas
ou ventos sulfurosos:
se há dádiva por recolher
ela medra em mim
na recusa dos contratempos
na antítese da rocambolesca encenação
que apenas adia o dia. 

Emagreçam as sombras
outrora vestígios em demanda de exorcização.
Desvitimizem-se
os diligentes engenheiros dos prantos
cubram-se de ouro farto
os olhos incansáveis
as luas caiadas de pureza
os bolsos tingidos com a plenitude singular. 

Tomara o pretérito
ter sido leito de tamanho desassombro. 
E as costas preparadas
em montada sem espera
dissolvendo os lamentos tortuosos
como se fosse 
uma magnólia abrindo-se à luz clara
e as mãos 
subissem ao sol em generoso devaneio. 

Já não sei o que são sombras. 
Regozijo.

O desaviso das tempestades
cuida dos limites,
tecnicamente despromovidos a chão fértil
onde as flores sorriem até à noite. 
As cavernas estão arcaicas
já não esteios malsãos
já não
revés excruciante. 

A colher artesanal
tirou a espuma inútil
do moinho do tempo. 

Às sombras
encomendou-se jazigo. 
O museu da memória
não transige com o esquecimento
e fingir é um ultraje contumaz. 

#466

Nota de rodapé:
o divino fermento
da distração amoedada.

8.2.18

Descolorido

O que me podem dizer
esfíngicos olhares
gatos matreiros
lágrimas desnatadas
as palavras metodicamente sublinhadas
no tabuleiro descolorido?

O que me podem dizer
atrocidades sem rosto
as pedras lisas de tão gastas
o cobre escondido
as velhinhas que tremeluzem sua tristeza
nos xailes descoloridos?

O que me podem dizer
os bascos insubmissos
as marés sem freio
a carne bravia, tisnada, afoita
os copos altos cheios do vinho
retirado de vinhas descoloridas?

O que me podem dizer?

O que me podem dizer
que eu não julgue saber
por dentro de um oráculo frívolo
contra os mestres sapientes
contra os pesares desarmadilhados
na obnóxia condição humana?

Servem-se
as gotas todas da chuva
que não se recusa
um nada do tamanho do tudo.

#465

Vejo na tua boca
uma sede que espiga
e ao desejo não emparedo limites.

7.2.18

Relativismo

Este tossicar repetido
dilemas que fermentam
na epístola da inverdade.

Os insinceros fazem jogo dúplice:
o que podemos aferir
quando narram intrujices?
Os novelos do raciocínio
esbarram nas nuvens frigoríficas
fortalezas onde se oculta o entendimento.
Desafio para os apóstatas do fingimento,
todavia, entediante jogo:
pelo meio do tempo
ou nos seus interstícios
nunca é dado saber
se se sabe o que sabe
ou se o que é dado como conhecimento
é um logro incomensurável.

As margens do lago espelhado
(onde as montanhas com acobreada vegetação
se refratam nas águas paradas)
podiam legar um subsídio para o enigma;
desenganem-se até os cultores do lago:
a montante
a represa ameaça desmoronar
e as águas mansas
depressa serão depostas.
Em sua vez
o caudal desgovernado
em soma com os destroços
em aleatória errância.

#464

Estava capaz de um cometimento
um golpe de asa,
“ou assim”,
uma palavra interditada
para arrumar o atónito incongruente.

6.2.18

#463

Medrou a tempestade
nas irrefreáveis veias
e o verbo em sua haste,
abraseado.

Sobremesa

Uma voz sem nome
na floresta fria
murmúrio incessante.
A solidão composta
no inviável sacrifício
entre árvores altas.
O rio sussurra segredos
escondido no fundo vale
torna-se bússola restante.
Do labirinto gutural
o sangue enregelado
e o medo por companhia.
As bandeiras ausentes
desaprovam os vasos vazios
e a música cicia-se no remoto.
Se há limites por desafio
fronteiras hasteadas
convoco a clepsidra árabe.
Muito ao longe
cantorias num minarete
páginas abertas com avidez.
No muro sombrio
um frágil véu levita sobre o chão
e eu aprendo com os arbustos.
Não choro
por secas as lágrimas
nem por sua serventia.
Outrora houve embaraços
sobressaltos em noites contínuas
vontade de capitular.
Outrora é pretérito
e as vozes audíveis
não são miragem.

#462

Se por cada rosa, um espinho
antes cardos
que logro não são.

5.2.18

Choque frontal

Da tocha acesa
uma ponta de sol humilde
contra ascetas furibundos
e seus mastins apoderados.
Subindo a ladeira íngreme
na cadência arranjada contra o desencorajamento
vociferam as ramagens inclinadas pelo vento
e os ossos doem no pedregoso caminho
agredidos pelo vento indomável. 
Nem assim capitulo.
Terei a mania que sou probo,
mas é só uma farsa
um ato volitivo de esvaziada camada. 
Não chegam os castelos todos
no tortuoso, banal sofisma de sacrifícios,
como se os sacrifícios fossem caução. 
Não será má ideia
desatribuir importância
até às coisas tidas por imperiais. 
E jogar-me no imenso mar lúdico
que espera
sem contar com os improváveis esgares
de beneplácitos não averiguados. 
Que não se espere nada.
Que não se espere por nada.

4.2.18

Ano zero

Ano zero.
Disfarço-me de vulto.
Porque os vultos não contam
e zero é o vazio a condizer.
A espera pelo ano depois do zero
é a mordaça que sacia o vulto.
Não se sabe
se zero é véspera do um
ou apenas
um labirinto sem porta de saída.
Entretanto
pode ser que acorde
e o pesadelo se dissolva na água matinal.

3.2.18

#461

Na sua lascívia
ela transfigurava-se,
arroz malandro.

2.2.18

Nuvem

Abraça-se o manto denso na cumeeira
e alvitra-se a proeza
que braços tão altos se elevam
sem medo de alcantilado promontório
sem tergiversar na vertigem. 
Como se estivesse alado
e, todavia, as asas disfarçadas na ambição,
faz de alpinista
não se atemoriza com os degraus embaciados
nem com o musgo embebido nas rochas. 
O manto galopa a serrania
ao início invisível
ganha espessura com o que traz agarrado às mãos
e o manancial que veio adejando
desde o vale onde se fez nascituro.
Deita-se na encumeada
refrescando os sentidos 
na cor baça que a empareda. 
O sol,
naquela encumeada deixado murcho,
nada pode com suas bravas forças
contra a investida da nuvem tresmalhada. 
Assim se ensine às criancinhas:
pequenos corpos
transfiguram-se grandes espíritos. 
Assim impere a vontade.

#460

A terra dura
fealdade sem vergonha
e suas gentes que com as mãos duras
escavaram lugares nesta terra.

1.2.18

O piano resplandecente

Por dentro deste motim
o sangue efervescente
desembaraçadas as facas afiadas
calados os sons guturais em verbo de ira.

De dentro deste motim
bolço ao mundo a ossatura matricial
e dos bolsos arranco as palavras gentis
contra os ferozes mastins da dissidia.

Ao fim deste motim
os jardins alindados onde a neve repousa
e os esquilos furtivos abrem nozes.

Amanheço à imagem das mãos
inteiras e açoradas
movediças
com a sede do mundo inteiro
no cruzamento dos ventos sem rumo
inventando dicionários, cores e frutos
e deixando à janela
na consagração da manhã demiúrgica
a seiva fecunda do febril estado nómada.

#459

Desce do ubere
em torrencial tiragem
a ciclópica empreitada dos deleites. 

31.1.18

Fresco noturno

Morde-me esta intuição
prisão dilacerante
uma terrina estilhaçada como palco
e os pés feridos nos despojos lançados.
Arranjo coragem para o longo estio
e nem a sombra contumaz
chega a ser sombra
desmentindo os argonautas pueris
e o mar precoce.
No vetusto banco do jardim
calcinado pela ferrugem do tempo
sentamo-nos lado a lado.
Olhamos
olhamos em redor
e para as copas das árvores
à espera de perderem a vergonha da nudez.
Somos a alvenaria constante
os azulejos cintados numa constelação de cores
a palavra-viva contra a matéria-morte
a palavra que dispensa contratos
o contrato de cimento armado na pele ávida.
Nas mãos amplamente abertas
guardamos em segredo o estirador,
nosso salvo-conduto.
Somos:
sem a desmedida função
de não sermos o que não queremos.
A noite invadiu tudo
mas ainda vamos a tempo
da sessão da meia-noite.