5.6.18

#603

Estas palavras líquidas
trespassam a carne
e dobram o braço à mentira.

4.6.18

Cascadeur

Como um cascadeur tresloucado
o ímpeto a transbordar de suor álgido
em sua cegueira determinada
na exibição genuína de demência
antes de levar o sustento para casa. 
A multidão extática 
aplaude as reviravoltas ensandecidas
fica quase sem respiração
no fio da navalha do cascadeur
A multidão
aprisionada num paradoxo
pois sobe-lhe o coração à boca
ao ver o cascadeur beijar o precipício
mesmo sabendo que a função 
está milimetricamente nas suas mãos. 

A multidão
consagra um herói
mesmo sabendo que não é. 

Tanta a condescendência se pôs na função
que só um petiz de quase bueiros
notou:
cascadeur
traz peça de feminina roupa interior
negligentemente espreitando 
desde a fatiota de herói
e ninguém
(a não ser o petiz franzino)
deu conta. 
Logo se descobriu
(em descoberta tardiamente selada
pelo então petiz franzino)
que aos heróis tudo se perdoa
(até os lascivos desvios dos cânones);
ou então
os cascadeurs
conseguem anestesiar as hordas.

#602

No tribunal das intenções
todos são inocentes.

3.6.18

Palavra de honra

Palavra de honra
que honro a palavra
até quando vem com o sal desbotado
até quando chove sobre a chuva
na intemporal arcada sobre o chão,
palavra de honra.

Palavra de honra
que a palavra é de honra
sem a degenerescência do azedo
sem a litania dos absurdos
perfilhando as modas sem arautos
perfumando as linhas com néones,
honra à palavra.

Palavra de honra
que é de honra a palavra
e não minto às mentiras
nem digo verdades às verdades
(nenhum delas precisa da redundância),
palavra à honra.

Palavra de honra
na honra apalavrada
e nos juramentos transidos pela honra
que descreio nelas
(palavras)
e talvez não estejam conjeturadas
em seus pergaminhos
(da honra).

Mas isso sou eu
censor da bolorenta objetividade
capataz das provocações lineares
amotinado contra as grilhetas dos sentidos
em imerso copo de águas barrentas
sem saber o que elas escondem
sem saber que desonrosas 
são as palavras juradas à honra
e que de honra é qualquer palavra que seja
não interessa a sua autoria
não interessa o mensageiro
desde que sejam ditas
na penumbra do silêncio
e por elas
(palavras de honra
e as outras, em antinomia)
o silêncio
em sua densa raiz quadrada
seja palacete.

#601

À consideração:
não faltem apelos
aos desaprovados pelo destino.

2.6.18

#600

Hipóteses sem cadeia
nas ideias sem ancoradouro
e o caos como palco (s)em espera.

Dia da criança em atraso

Dizem:
quando se é criança 
temos pressa;
quando se é adulto
sentimos falta da infância.
Nenhuma das duas anotei 
no caderno das memórias.

1.6.18

Contradição de termos

Timoneiro
em causa própria.
Testa-de-ferro
de idiomas párias.
Mandante
de sonhos amanhecidos.
Intérprete
de mãos contrafeitas.
Tutor
de desejos por franquear.
Autor
de marés sem conta.
Asceta
dos incongruentes devaneios.
General
de areias desemproadas.
Faraó
de cidades absolutas.
Transmontano
de penhores algarvios. 
Profeta
do silêncio.
Ator
em palcos itinerantes.
Jogador
de chapéus em barda.
Lugar-tenente
de árvores matriciais.
Cozinheiro
em jardins arrumados.
Esteta
no ermo das conspirações.
Perito
sem compêndio a tiracolo.

#599

Corpo diplomático:
enverguem as farpelas vistosas
dancem na vaidade da usura
e afocinhem na guerra.

31.5.18

Cidade

Dentro do passaporte
a cidade
o veludo sem tecido
a argamassa do poder sem rosto.
Por dentro da cidade
o passaporte
do olhar sem limites
para colher nas pedras da calçada
um vestígio do ser sedimentado.
A cidade é passaporte
para incontáveis histórias por saber
que de muitas serem contadas
não chegam as páginas inventariadas
em passaportes sem rosto.
Pois às cidades
pertence o rosto 
– seu passaporte.

#598

Esta luz matinal
desmaiando na minha boca
quimera que medra do meu corpo.

30.5.18

A maré está contra

Esta é a árdua condição
de um homem sem podriqueira à ilharga:
vê-lo em vetustos olhares
sujeito aos esgares que dele escarnecem
sujeito à extorsão dos cânones
sujeito a ser pária fora do aquário
enquanto os ladinos profetas da situação
não abjuram as entorses de que são fautores
e tornam-nas medida corrente
o estalão que passa a sê-lo
em vez de leito para a condenação dos pares.

#597

Para o tempo 
é sempre aniversário;
o tempo 
é a coisa mais envelhecida que há.

#596

Arregaço o olhar 
para nele abraçar 
toda esta leva 
de talentos insofismáveis.

29.5.18

Os marialvas

A grande previsão:
a astuta arrumação 
dos pedonais varões na estulta sala
com vista para a parede,
para a parede da mesma cor negra 
da sua risível facúndia.
Bravos, 
tais marialvas
cultores de sintomática fiesta
onde passeiam sua virtuosa falta de coragem
colecionadores de damas incautas
maus amantes
egoístas sem remissão
seguidores da azul e branca bandeira pátria
garbosos no cliché de antanho
saudosistas do passado
desconfiados do presente
(e em pânico
quando o porvir se desdobra 
em folheto moderno)
ensimesmados e iletrados
perspicazmente misóginos
(em confissão silenciosa
da sua inferioridade genética)
agricultores sem as mãos imundas.
Definição acabada
da inutilidade.

#595

Anda a porfiar
ser paráfrase de si mesmo.
Não é nem metade do que contém.

28.5.18

Toque de Midas

O lento deitar do dia
servido na maresia 
deixa o ar a levitar nas mãos
enquanto se sopesam os degraus 
entre o sopé do miradouro e a casa da partida.
Não será a estrelar figura deitada
a fazer-se meã
no avesso da noite dormida
a vertigem sem medida na boca do precipício.

Sem os violinos
a música ensurdece
e eu congemino as margens 
de onde se alinhava
a antítese da solidão.

Um fósforo acerta a chama em erupção
furacão promitente
entre a mansidão dos vales
refém do olhar insubmisso;
talvez se arranjem desenhos frágeis
e das fráguas indomáveis
um ciciar constante emoldure os versos capazes,
a cadeira onde se deitam poemas incertos.
Um chamamento audível
ecoa nas nuvens velozes:
não traduzo o idioma
ininteligível
mas soam musicais aquelas palavras
sílaba a sílaba
como se houvessem sido convocadas 
em substituição dos violinos.
As luvas perdidas no chão
pressagiam o inverno 
– ou então,
a finitude do inverno
e a imprestabilidade das luvas,
as mãos carecendo de liberdade
para seus poros respirarem.

O cais não se segreda
na passividade do entardecer.
Deita-se ao tempo fraturado
e dele esvoaçam os espíritos caldeados
de marinheiros datados.
O cais
recebe as águas amansadas
prepara-se para a noite que já é véspera.
Os improdutivos medos
perdem inventário:
já não se abespinham os desassossegados
nem se atemorizam os tementes do porvir
nem se encomendam ao desengano
os novos eleáticos do mapa apresentado:
doravante
em sucessivas camadas de fuligem desaprovada
filiam-se os corpos na sua filigrana
e os dedos percorrem cada milímetro
como se de quilómetros cuidassem.
Os corpos
caudais de rios desemudecidos.

Já não há 
medos transversais
penhores atrasados
espartilhos denodados
espadas dilacerantes adejando sobre as cabeças;
só há o rio 
que se acama em seu estuário
rio descendente de mitológicas figuras
rio
descendo na sua sede de mar.

#594

Esqueci-me
de todos os esquecimentos
e fiquei órfão a meio de um nada.

27.5.18

Ardina

Do pé para a mão
na boca da escuridão
sofre a carpideira
por ausência de choradeira.

Ainda perguntaram ao engenheiro
se não caiu no banheiro
ao que o troglodita desmente
com um sorriso benevolente.

O cavalo velho faz seu pasto
no jardim onde não há um casto
e o edil cavalga no pedestal
sem contar com o sujo avental.

Mais tarde, na cortina do nevoeiro
nas pontas de um ardina besteiro
veio um touro enfezado
desferir feridas no seu conto irado.

A donzela arrepiada
não conteve o seu ar de fada
e bebeu num trago a larga cerveja
desmentindo o pergaminho que a beija.

No poço do inferno
o coreógrafo fraturou o esterno
disse o aspirante a mentiroso
na alvorada do discurso asqueroso.

Não era grande o mal que vinha ao mundo
entre tanto homem infecundo
pois eram lentes embaciadas
que contavam histórias desairadas.

Eram três os juízes encartados
e todavia peritos em serem distraídos:
prouvera quem neles confiou
que o bom juízo se desafiou.

#593

Completamente. 
Completa a mente. 
Completa e mente.

26.5.18

#592

Das flores sangra o pólen
que o vento, iníquo, 
reparte no critério do acaso.

Imperial

Um peito nu
o meu peito nu
cais
o cais de perto
na praia
praia limítrofe
beijo
um beijo na tua boca
fonte
a fonte onde para a sede
a ternura
ternura-fortaleza
poema
o poema que sela as palavras
palavras
estrofes-quimera
as estrofes acesas com as mãos
altar
o altar das pedras inamovíveis
âncora
a âncora que desenha nossos braços
na dança
dança que me ensinas
à madrugada
madrugada crepuscular
a madrugada crepuscular
que desembacia os medos 
e cristaliza as lágrimas
estátua 
a estátua onde nos imortalizamos
mar
o mar
este imenso mar
beijado pela janela
ou a janela a acreditar
a janela a respirar a maresia
e os poros
os poros suados
o suor que é nossa respiração 
os poros
abertos ao mundo inteiro
o suor vertido no amplexo dos corpos
transidos
docemente lúgubres
os corpos guerreiros
feiticeiros das pétalas hasteadas
a varanda
varanda epistolar
os olhos arremetidos ao vazio
e um todo vem às mãos
no entardecer
o entardecer vínico
o canto
canto luminar
poema expoente
o poema expoente dos deslimites
poeira
a poeira arrumada nas catedrais
e as abóbadas ungindo os dedos
em anéis arqueados
anéis arqueados na vontade nossa
à espera da noite
a noite infante
véspera do sono
o sono que industria os sonhos
sonhos acastelados
na pele fria, noturna
na constante entrega
mar adiante
sem a morte por perto
a vida rosácea tatuada no olhar.

25.5.18

Cinto de segurança

As ameias não chegam
não serão altas que cheguem.
Os bolos secos
podem ter serventia:
armas de arremesso
matéria-prima das hortas férteis
engodo para os glutões 
– ou apenas lixo.
Forçam-se sorrisos
na penumbra onde dançam os cavalos
contra as palavras malditas dos anões;
num estreito vão da casa deserta
um louco segue,
sonâmbulo,
à espera de um espada demoníaca;
pode ser que não aconteça nada:
as ameias não chegam
não serão altas que cheguem
mas desaconselham arremetidas.

#591

Tenho as asas que preciso
e um mapa sem limites
dando corpo ao meu voo.

24.5.18

Olhar inquieto

É este olhar inquieto
acometido por madrugadas baças
que levanta âncora à angústia.
O grito que cala fundo
vertido desde o avesso da garganta
as palavras tomadas pela abundância
uma certa soberba sem bainha
o cósmico destravar dos carris fulminantes
na leitura de um livro sem história
nas suas alvas páginas à espera de autor.
Sabia das paredes viés
no navio encalhado
e ouvia o murmúrio do mar em sossego
à espera que se congeminasse a tempestade
e o navio fosse despedaçado 
à mercê das ondas altivas.
Podia ser produto
da fábrica dos pesadelos:
um rumor sem rosto
a máquina de escrever enferrujada
sobre uma mesa apodrecida
a toalha amarrotada e enodoada
as manhãs parecendo o melancólico ocaso
as espingardas 
deitadas nos arbustos ressequidos
a matéria inverosímil dos estroinas
contra a árvore centrípeta
de onde partem 
as bissetrizes no mapa desembrulhado
a voz doída, cansada.
Visitei o lugar onde há romagens
e não entranhei o mito.
O olhar inquieto 
deita-se sobre paredes mais altas
e traz de volta histórias sem fim.
Oxalá sejam dourados 
os dedos assim contados
e as artes não capitulem aos beócios.

#590

As mais dispensáveis palavras
são as de muitas sílabas
e os advérbios. 
(Provavelmente.)

23.5.18

Os valores

Quais eram os mandamentos
na viabilidade do tempo gasto?
Valores” 
– preceituava-se, à boca grande
contra os imperturbáveis agentes
da desordem.

Ninguém sabia enumerar os valores.

As hostes dividiam-se
entre os que não capitulavam
na demanda dos valores
e os que não tinham remédio
se não contemplar a aridez nas imediações.
Um dileto provocador interpelou:

que interessam as fronteiras dos valores
se em cada um se aninha 
o cimento necessário?

Às duas por três
os deslimites antepostos no baraço do porvir
eram o valor 
todavia não reconhecido como valor,
a fina aguarela selando
em tela frágil e ininteligível
o compêndio dos valores.

(Mesmo que se reduzissem a zero.)

#589

Meto as mãos na terra. 
Espinhos vêm aos dedos
e não sobram cicatrizes para contar.

22.5.18

#588

A maré está alta.
Mais alta é a estatura
que trago no peito.

Workshop

O irrepetível troar do desfiladeiro
sem queixumes
sem deletérios adiamentos
a espada inglória no sexto suor
a sobremesa servida no sextante da lua.
Não conspiro nas margens do rio
transpiro no estirador de onde me vejo
e uno as pontas soltas
no estiolar das fogueiras apalavradas.
Juro os juros viáveis
entre véus que dançam no céu madraço
e mãos sucessivas abatendo-se no sinédrio,
secundário motivo da inércia.
Dizem:
é do correio letrado
a ordem da autoridade;
e eu pergunto:
para que serve a autoridade?

(Esboço, 
em silêncio,
resposta:
para ser desaprovada 
– inglório desmando 
arqueado sobre o pobre dorso 
dos zeladores da autoridade.)

junto com as mãos
a chuva vertida nas folhas rasas
e esmaeço as cores sombreadas
para voltarem em sua vivacidade.
Não o será
à conta de autoridade alguma.
Os acasos
continuam a ser voz tonitruante
embebida nos pilares 
das coisas estruturais.