1.11.18

Santuário

Não é pela miragem
que enfio o olhar sedento.
Venho ao mar
e saio de mãos lavadas
sei que são seu campanário
e das juras extraem minério refinado.
Não é pela miragem,
não.
As miragens
são como preces baças
estrofes descosidas do caudal
uma miríade de sítios imaginados
inférteis.
Contento-me
com as mãos lavadas
e o mar que repousa no meu olhar.
Quando tiver uma miragem no regaço
e souber 
que de matéria tangível é composta
deixo aviso a preceito.

#785

Cativo a lava vertida
no dorso fervente
e incluo o avesso do cativeiro.

31.10.18

Ecossistema

Estamos à espera
que seja a chuva
o ato dissolvente da verbena,
a chave enferrujada
que desarruma o vertical critério?

Partimos.

Pelo caminho
agilizamos a conversa.
“Não sei do método capaz
sem a ajuda dos compêndios
sem estar sitiado
no remoto pensamento alheio”,
protestas.

“É o leito atapetado por pedras,
a contingência do pensamento.
Não dês importância:
verás em sonhos
a ousadia que não reconheces
ao teu pensar.
Deixar-se-á de colocar
o problema da originalidade”,
respondes
com alguma condescendência.

“Duvido.
Duvido muito.
É a minha via sacrificial.
Gostava de duvidar menos.
Gostava de não duvidar”,
acrescentas,
uma lágrima assomando ao canto do olho.

“Dir-te-ia
ser um erro
se não me convencesse
que não há certezas válidas.
(Talvez,
talvez a única certeza que admito.)
Toma como medida
as linhas em que a pele se entretece.
Enverga o epistolar sargaço
onde se desenovelam as dúvidas,
umas atrás das outras.
Sossega:
as dúvidas são a tua riqueza.
As certezas,
o teu penhor,
hipoteca irremediável”,
contrapões,
enquanto faz perder o olhar
no horizonte baço 
que é a parede por diante.

#784

O céu desigual.
Outra vez
as nuvens desimpedidas.

#783

Abracemos a lua inteira,
que se oferece, 
generosa,
panegírico da vida que é colheita incessante.

30.10.18

Contra comendas

Desenho
só com sílabas não forçadas
a enseada
onde tenho refúgio. 
Esconjuro
o diadema furtado ao vitral
de onde se tinha a luz por nome. 
Continuo imóvel
convencido que o tempo também;
a resenha de tudo
desfaz-se num nada. 
Corteja-se a paciência assinalável
o bodo sem medo das consequências
e, estimável função,
a curadoria de todas as compreensões. 
Não é pretensioso:
os troféus alçados
são uma vírgula a destempo
o modo sem medo do verbo
fantasia em vez de lugar. 
Se fartasse a bonomia
diriam
ser um esteta com direito a medalha
(não fosse apoucar o regime das comendas).

#782

Que não se exprobre o ópio dos outros
se a ninguém é dado atestar
não ter ópio próprio.

29.10.18

Carta de recomendação

Rasguei o desbotado
            convés enferrujado,
                        pesaroso.

Dentro da enseada
            convoquei anjos
                        destemidos.

Sem chuva diletante
            abracei luas
                        fecundas.

Oxalá sereias agitadas
            abrissem alçapões
                        tumulares.

Daria do húmus
            em ferida
                        proverbial.

A sempre possível
            arte presumida,
                        aquartelada.

Desmatado o medo,
            conservo rigor
                        matinal.

Servo a meio
            da profecia
                        irrisória.

Sirvo em latitudes
            desenhando fronteiras
                        implodidas.

Desobedeço ao oligarca
            que bolça
                        despautérios.

A vassoura gasta
            tem serventia
                        futura.

Do amanhã contumaz
            arrefecido oráculo
                        infecundo.

Arrisco os dados
            demencial empreitada,
                        vertigem.

Abrigo a meia-noite
            em agasalho
                        promitente.

Dou de mim
       a moeda
                        ajuramentada.

#781

Oh,
desjuízo não forasteiro
que em meu sangue tens viveiro.

28.10.18

Lei do mais forte

O homem veste a máscara.
Toma suas as lamas imundas
no ultraje máximo
de si mesmo. 
O destrate não é ufano. 
A humilhação
é um espelho que se refrata 
no estilhaçado nevoeiro
em que se açoita. 
Os ossos liquefeitos
são do predador
imersa no obnóxio pesar de si mesmo. 
O tabuleiro
onde se movem as peças
(como se, meras, assim fossem),
num plano invertido:
os poderosos
armados com os obuses da força,
abutres das carcaças próprias;
os torturados,
despidos de vida
intérpretes maiores da lição da dignidade. 
Na sobra de uma dúvida
fica por alcançar
se a demência se esconde numa máscara
ou se é demência em estado puro
a maldade acintosa em requintes perfídia. 

(Museu dos Terrores, Berlim)

27.10.18

Sermão

Prolegómeno:
o suor expatriado
pelas rugas cansadas
verter-se sobre o pano flácido
e os cantos das janelas
descerram a paisagem que se desenha,
no ágil conforto do silêncio devolvido.
Não parece que seja critério,
o silêncio.
Amanhecem as tulipas pujantes
os bolsos abarrotando de versos estimados
entre ensaios e ensaios
sucessivos ensaios
que não desgastam o tempo.
A armadura cresce
com o pólen vívido.
Sabiam-se escorados os braços fluentes
eram o estibordo das marés apátridas
e não sabíamos da costura das palavras
não sabíamos
da feitoria que esbracejava as juras aladas.
Todavia
as mãos não desistiam.
Elas liam nos olhos das paredes
o palco escorreito
os druidas acalmando tempestades.
Já não era o prolegómeno.
Avançada a rede
éramos intrusos sem remédio.
Corremos no avesso da noite;
corremos, incansáveis,
no dorso de mitos hasteados
em vultos sem fartura:
domámos os medos enfim com freio
e a beleza atribuída,
em vários penhores resgatados,
cuidou da fortuna dos sonos.
Na sobra das marés
os pés nus aconchegavam
os seixos deixados para trás.
Na dobra das marés
jogavam-se os temerários pescadores
contra a volúpia das ondas em barda.
Logo seria possível a prova dos nove:
se os pescadores viessem ao cais
provada seria a generosidade como dom.
Ao menos para os pescadores
as portas insubmissas das divindades
ficariam povoadas.
Muitos outros há
privados do farol da metafísica.

26.10.18

#780

Puxar o filme atrás,
nem que houvesse marcha-atrás
como nos automóveis madraços.

#779

Desde o cedo volátil
passando pelo medo sensível
um levantamento de sonhos plúmbeos.

25.10.18

Bandeiras esconjuradas

O que falam as bandeiras
conservam em segredo
os mastros.

O resto
não importa.

As esfinges simbólicas
idolatradas deusas com pés de barro
a história grávida de proezas
o idioma messiânico
a gutural presença dos vultos
(como se não tivessem sepultura)
a desconstrução do porvir
justificada pela inércia do passado
as mitologias sem preço
(por não terem valor)
o adiamento das luas prometidas.

Hasteadas em seus mastros
as bandeiras falam
um silêncio tangível.
E nem o vento que as esbraceja
contém idioma que se preze.

#778

A maré ancestral
o sal cristalizado
na fonte etérea.

24.10.18

#777

Compêndio do narcísico:
“tive uma epifania:
vi-me ao espelho.”

O eremita

Arremete o espigão contra o escorpião
o maneta destemido
convolado sobre o dorso estreito da manhã.
O caudal do rio inunda o arroio
já não enxuto como no estio
uma torrente de destroços avulsos
tomando conta da correnteza.
Ao alto do promontório
o eremita
refugiado das dores do mundo
observa na pacatez do apoderado do mundo
a posição de quem o domina
por se ter elevado à cumeada.
Podia ensaiar uns versos alusivos
mas estava sem papel
(e a memória já não é como outrora).
Convence-se
que o miradouro
é a janela-sortilégio que o apodera.
Considera muito o poder.
Convence-se
que os desvalidos
os que sofrem com a inundação
e estão à mercê do caudal sôfrego
são os pajens do mundo.
O eremita sente-se no papel do escorpião.
E não se percebe porquê:
o poder é atributo inconsequente 
para um tresmalho subproduto
alguém que se refugia dos outros
(pois o poder exerce-se
e é sobre os demais).
Desafiado pelo seu alter ego
(a consciência funda)
o eremita foi apanhado na curva libidinosa
no ardil do pensamento pretensioso
no foguetório inverosímil 
do poder que se ostenta.
Não lhe era dado saber
como podia descalçar a bota.
Era mais cauteloso 
não empreender a função:
a enxurrada podia trepar a montanha
e precisava das botas
para acautelar, secos, os pés juntos.

#776

De um salto só
do precipício, o avesso,
até ao cais arreigado.

23.10.18

Antítese

Lição número um.
Esquecida.
Talvez não haja
lição número dois.
Que três sejam os esteios
onde as sereias desmatam
as marés.
Regresso à véspera,
ao zero antes do um.
Desnato as sombras altivas
chego ao planalto 
onde medram as interrogações
o conforto das interrogações
sem o mórbido sopesar das certezas. 
Se houvesse lições
certezas haveria
a perfurar o teto obstinado
onde convivem os cátedras. 
Não havia lugar
a lições
como não havia lugar
a certezas 
– a poluição transcendental
o poroso infortúnio
dos sedentos de conhecimento. 
Não sejam encomendadas lições
ou o logro da coerência
será ardil sem fuga.

#775

Desde o epicentro
sou o magma
combustível em ebulição.
(Redundância, ou levitação?)

22.10.18

Hino

Traz 
o suor nas lágrimas
nas lágrimas retidas
sem serventia.
Pois no peito murado
sobressaem as grilhetas avençadas
os murros sem estômago
as trevas sem sombra
no opúsculo da fartura,
o miradouro.
Traz
um pregão do avesso
no avesso das palavras retenidas
no que seria 
a heresia de um guru do marketing,
o pagão.
Traz-te
quimera de ti mesmo
profuso aluvião em leito suave
propositada função aritmética
na mímica lacustre encimando os dedos
e na véspera de um dia qualquer
justaposição de todas as coisa contrárias.
Traz ao caudal
o fortuito
o banal
o beijo untado a mel
as unhas que desenham nas costas
o lucro da alma sem peias.

#774

O reboliço superlativo
o realejo sumarento
o restolho supranumerário.

21.10.18

#773

O medo de não existir
cavalga nos freios
da desmemória.

Sonoplastia

Alguma coisa não acontece
e o perdão mastigado
perdura no dia,
que perece,
efémero.

Diz 
o verbo compressor,
sem medo da matilha diuturna.
Diz
sem a coragem epistolar
a rasura no vocabulário
a ponte abraçada ao eflúvio.

Há de ser altura de ser
depois de desencomendado 
o retrógrado respirar.

A fotografia sobrante
é tudo.

20.10.18

#772

Provocação.
Por vocação.

19.10.18

Sabático

Forasteiro imperfeito
perdido no labirinto da identidade;
pois da identidade
desconhece o paradeiro
e inquieta-se por se sentir perdido
no lugar sem segredos. 
Não espera aninhar o conforto
nem se confina às ruas atapetadas
com as flores que sempre respirou. 
Não se importa com a orfandade. 
Prontamente
levanta as velas
e arroteia os mares necessários
e a linha de terra que o sossega 
– a distante, 
quase indivisível,
fímbria do horizonte
tão longínqua
que parece fundir-se com o mar. 
Não se considera fugitivo. 
Às vezes
o lugar dominante
parece uma estrebaria
infrequentável
um enorme estábulo
onde convivem as bestas desembainhadas.
Algumas madrugadas depois
o chamamento da terra desancorada
ecoa fundo,
irrecusável. 
A sabática maresia
aplaca os maus humores.

#771

É o caos.
Mas funciona.
(Existencialismo fora da caixa)

#770

A sombra
sob a língua,
as palavras castradas.

18.10.18

#769

Diz-me a madrugada,
em metáfora assisada,
antes seja artesão do dia colhido.

Autêntico

Mais que um sítio
um corpo catedral
um beijo frutado
o pânico sitiado pela volúpia 
– o adiamento dos adiamentos.
Arrumam-se as gavetas.
O tirocínio exaurido
(entre as paredes tingidas
e os olhos cansados)
no involúvel segredo sem janelas
nas folhas onde se depõe o ouro,
o ouro que somos 
– e já não somos tirocínio.
Tomo entre mãos
o caudal voraz
sei-me capitão sem comenda
poeta sem instrução
comendador sem capitania
instruído no dorso de um poema 
– imperador dos impérios sem limites,
dos impérios que não têm mapa,
desenhando as vírgulas em seu lugar
anotando memórias para lugar futuro
perseverando.
Não sei o que está nas gavetas.
Tenho a agenda completa
com a maresia que me extasia
a suave simetria do mar
desenhada no alabastro do céu
o teu rosto que me conforta
o teu peito em espera
o sentido cais em que somos prazer.