9.5.19

Muralha

Procuras a muralha
à prova de vendaval. 
Sabes o que é
não ser vendável
o ritmo compassado no obelisco
onde se resguardam as relíquias.
Não te apetece
se não a letargia;
não capitulas:
não têm préstimo os epitáfios
se as pedras cimentadas
consumirem o desejo da vida. 
São as impensáveis escadas
que intimidam?
Vacilas. 
Olhas pelos interstícios das nuvens
onde o vazio se esgota
na temporalidade do espaço vago. 
Desejas o impossível 
– antecipas, como hipótese,
ao raiar do dia. 
O diálogo pressupõe 
palavras e um par de pessoas
gramática apessoada
e substância do enredo.
Não sabes 
se os gritos que ecoam
são a aflição personificada
ou o aleatório esbracejar do mundo. 
Não sabes
se a miséria pertence aos abastados
aos gongóricos eruditos
aos campeões de si mesmos
enquanto se exibem 
diante do espelho 
– de um espelho
que não sabem estilhaçado. 
A pureza das condições é um quesito,
desaproveitável,
perfeitamente inútil
(ele há poucas coisas tão perfeitas).
Corrias contra o tempo?
Não:
corres a favor do tempo
porque o tempo traz-te em seu regaço
a mão não tolhida composta a teu favor. 
Admites os contratempos
as linhas entortadas que aceitam estrofes
o linho envelhecido que é teu caudal
a redenção não requerida
a ata desorganizada que dispõe o pensamento
um beijo adocicado da clepsidra futura
o sangue domado entre paredes estreitas. 
Aceitas tudo
a começar nos sobressaltos
(que assim deixam de o ser).
Pois descobres
que és a tua própria muralha.

#1036

Esta varanda
onde colho o mar
nas mãos.

8.5.19

Que sei eu?

Que sei eu
de metáforas impostas
das velas hasteadas numa vírgula do vento
do medo alfandegado em vultos perenes?

Que sei eu
dos colóquios órfãos de ideia
dos voluntários remates do dia
das onomatopeias sem rosto?

Que sei eu
dos nomes sem paradeiro
das armas por terçar por guerreiros sem corpo
da escotilha que espreita o aroma do tempo?

Que sei eu
das flores avulsas em jardins sem mapa
das divindades assinaladas 
da gastronomia estrénua?

Que sei eu
dos cavalos foragidos
dos prisioneiros à margem do verbo
das virtudes escondidas em cortinas baças?

Que sei eu?

#1035

O alfarrabista conserva o tempo
como nenhum retardamento de velhice 
consegue.

#1034

Apanho conchas
na areia da maré-baixa,
pétalas bolçadas pelo mar.

7.5.19

Conjurado

Hoje não há ardinas.
Não há sequer varinas.
Não há sãs narinas.

Hoje não compro jornais.
Não vejo da televisão os canais.
Não há poucos boçais.

Hoje digo poente.
Adio o demente.
Recuso estar doente.

Hoje colho alfazema.
Escrevo o “o” com trema.
Dedilho o açúcar do tema.

Hoje não digo futuro.
Não parafraseio o escuro.
Não viro o avesso do osso duro.

Amanhã esqueço-me do hesterno.
Desenho o parapeito do moderno.
Aqueço as mãos no meu fogo eterno.

#1033

Conheço
o rosto da madrugada
a cura para doença nenhuma.

6.5.19

Paz fingida

O controverso verso
despachado de jato
sem solilóquios nem mesuras:
de diplomacia
não foram embolsadas lições
e os punhos de renda
não passam de metáforas
(assim como acontece a muitos católicos
que se confessam não praticantes). 
O pesa-papéis
traz esquinas aos documentos
e nos salões 
na pose habitualmente aristocrática
os associados só usam lima
para aparar vivas arestas das unhas
(e para enriquecer cocktails
de cuja ciência se encomendam aos peritos).
Termos em que
na antecâmara das embaixadas
as palavras abrem feridas
abundantemente sanguíneas
(fazendo lembrar
as toranjas igualmente sanguíneas
que entram em certos cocktails).
O que tudo compõe
é os diplomatas não prescindirem
dos punhos de renda
enquanto salivam impropérios e detrações
em idiomas não escrutináveis
na tabela das traduções. 
Todos fingem,
a bem da concórdia. 
Foi assim que se inventou
o pão podre,
essa delícia sem pátria.

#1032

As sombras amaciam as mãos
e sei-me regente 
do fio do horizonte.

5.5.19

#1031

Só o bocejo do mar
em pano de fundo
e a trégua a banhar os ossos.

4.5.19

Entorse

Dei do de dado
podia oferecer. 
Desta tautologia
sou refém
mas do resto
de acusações não seja destino. 
Do dado em pose desprendida
ao dado como jogo jogado
ao dado não sopesado:
de tudo o dei
quase não arrependo o dado. 
E este é um dado
que não estou seguro
se o posso dar
como dado.

3.5.19

À vista

Não vejo 
o que as pessoas veem.
A venda avinagrada
que é a vista outra
avaliza a mudez da vista
quando à vista própria
só se desvanece o horizonte vendável.
O vinco do olhar
não se perde em varonis exaltações
vulgares enxurdos que se desaprovam.
Vejo o que a vista avista
e contento-me
com a paisagem avulsa
os vestígios de vertigem
e as sentidas lágrimas devolvidas
ao mar de onde provieram.
Vejo o que os olhos outros
não veem através dos meus.

#1030

Como aquelas obras,
os andaimes nunca desmontados. 
(Work in progress)

2.5.19

#1029

Semente. 
Sem ente. 
Se mente.

Diurese

Cuidadas as feridas
agora as mãos desocupadas
para a genuína ocupação:
cuidar dos tempos normais. 
As barricadas
já são só um pesadelo
arvorando a sua condição a espaços. 
Às cicatrizes
a função de mnemónica
que aproveita aos tempos vindouros
(se a necedade dos homens
não se sobrepuser
num vangloriar estulto
que mais não é do que uma vã glória).
Os dias correm planos
agora. 
Os sorrisos retomaram um lugar
nos rostos quotidianos
o sinal da temperança que se enquista
no ar que parece mais leve. 
As palavras não saem a custo. 
As pessoas querem multiplicar as palavras.
Aprenderam a irrelevância do amanhã,
que pode soçobrar ao menor contratempo. 
Antes as pautas alinhavadas
pelo solfejo da manhã
o sentir do ar frescamente matinal
e a aurora que é sempre uma quimera,
mas só no dia que lhe corresponde;
as manhãs alinhavadas em promessas vindouras
são o juro que a incerteza não pode pagar. 
Se dúvidas persistirem
que a cartografia das cicatrizes,
possível depois de lambidas as feridas,
trate de apurar.

#1028

Os doutores
tão importantes e pimpões
nos sarcófagos de seus fingimentos.

1.5.19

#1027

Costuro o sol
com o sal dos meus olhos.

Urbanos

Sei
que são baratas
as segundas-feiras
– o que é injusto 
para as segundas-feiras.

Os cálices competem
pelas bocas ávidas.
É para isso que eles existem 
– isso e a “cultura urbana”.

Os beijos respeitam as bocas
e dos cálices
como da cultura urbana
bebe-se o néctar improvável.

Insistem os gurus
na “cultura urbana” 
– e ficamos sem saber
se é por ser citadina
ou pela sua urbanidade
(ou por ambos).

O que será dos rurais 
– e das segundas-feiras 
esquecidas pela “cultura urbana”?

#1026

Nem toda a chuva
nem os dilúvios impensáveis
são fermento da fogueira extinta.

30.4.19

#1025

Como podes dizer
que me “conheces de ginjeira”
se não sei
da tua intimidade com a ginjeira?

Heróis sem catedral

Quem são os desaparecidos
os inviáveis heróis sem nome
e afinal sem heroicidade?
Que epopeias não travaram
que proezas não falaram
a que estertores escaparam?
Em que jornais não foram retratados?
Que rostos quadram
com estes nomes incógnitos?
Em que lugares habitam
que grupo sanguíneo trazem nas veias
de que são feitos os lençóis onde se deitam?
Que idioma falam
ou será que são plurais os idiomas
dos heróis sem heroísmo por reconhecer?
Alguém lhes disse,
a estes heróis sem rosto
heróis sem território admitido,
que se heróis fossem
postergavam a sua humanidade
tão frágil como é linhagem da humanidade
(e que essa é a sua maior fortaleza)?

#1024

Trincheira
talvez seja palavra excessiva;
às vezes impõe-se uma praça forte.

29.4.19

Hora de ponta

Hora de ponta.
Tecnologia de ponta.
Faca de ponta e mola.
Faca e alguidar.
A matança da hora.

Hora H.
Hora certa.
Acerta a hora.
Ora, agora.
A hora da matança.

O sinédrio dos pontuais.
Relógio sem arestas.
Limalhas do tempo.
Arritmia cardíaca.
O precipício da morte.

Na ponta da hora.
O cabo da tecnologia.
O legado da evolução.
A paz sem dor.
O alpendre da vida duradoura.

#1023

(Variação do #1022)

A quem não interessa ser pária
se não a quem quer ser
mentiroso de si mesmo?

#1022

A quem interessa ser pária
se não a quem não quer ser
mentiroso de si mesmo?

28.4.19

Comércio justo

Troco
um bispo com diarreia
por uma mialgia de nevoeiro.

Troco
dionisíacos baluartes da vacuidade
por um garfo torcido. 

Troco
ascetas de ideias apessoadas
por um vulgar normativista de ideologias. 

Troco
as rodas comunicacionais
pelo parafuso sedentário. 

Troco
a facúndia dos inteligentes
pelo silêncio dos modestos. 

Troco
a espada ensanguentada de vitória
pelo repouso nas montanhas desimpedidas. 

Troco
o sacrifício por causas
pela honestidade interior. 

Troco
uma página quimérica
por uma cordilheira de livros. 

Troco
o ouro ajuramentado por falcões inescrupulosos
por um rio indomável. 

Troco
terras havidas em artes bélicas
por um beijo da mulher amada. 

Troco
as mãos dadas às grilhetas do conforto
pelas mãos insubmissas no fermento da vontade. 

Troco
os olhos adestrados
pelos vulcões ainda adormecidos. 

Troco
sinecuras e genuflexões e outras gratificações
pelo chão doce do anonimato. 

Troco
o mar inteiro
por uma janela que sobre ele de atalaia. 

Troco
a certeza com marca de água
pela interrogação alistada. 

Troco
o despontar das almas outras
por um mapa a régua e esquadro. 

Troco
a promessa da eternidade
pelo hoje entoado na luz bruxuleante. 

Troco
exércitos sedados pelo triunfo
por um lugar desconfortável no teatro. 

Troco
a algibeira ostensiva
pela lógica mesmo que não tenha lógica. 

E troco
impérios em trovas coloquiais
por um pequeno vestígio da pele amada.

#1021

Os dias contados,
património
desde a casa da partida.

27.4.19

#1020

Na peugada do lobo
encontrei um sapato
perdido de medo.

26.4.19

Passerelle

Não sei de vésperas
nem de azedas nêsperas
e muito menos de esperas.

Do cunho musical
confere o suor umbilical
desenhado em paredes sem cal.

O azimute não passa de ardil
estafetas que se perdem no covil
na rejeição de palavras mil.

De noite ouve-se das aves o ciciar
em fala mais alta do que navios a porfiar
com a mão na madrugada a assobiar.

Do colóquio não sobeja grande lição
que a prosápia é não invejável consumição
no latejar que não espera perdição.

Da noite acena-se a despedida
e oxalá não seja a última partida
que na página dedilhada esmorece uma vida.

Consome-se a altivez diuturna
sem mais cicatriz taciturna
que não tem préstimo a urna.

Antes o peito ensanguentado
o relógio não contratado
o artesanal menear assustado.

A dança pertence à rua
pois a iridescência provém da lua
e alma nenhuma é como a tua.

Enfim dita o sossego tardio
que não importa ser vadio
se tudo se arquiteta em palco sadio. 

#1019

(dEUS, Hard Club)

Como passaram vinte anos
na clepsidra venal
onde somos presas ou caçadores?