21.6.19

Bandeira sem haste

Hoje
era dia de vestimenta solene
mas já não sabia
da causa da celebração.
Há por aí uns papalvos
que se deixam ludibriar
e são carne para canhão de efusividades destas
(a que os doutrinadores mandam chamar
identidade,
ou pertença 
– o que, no derradeiro caso,
é tão sintomático como cunhar a expressão
“sujeito passivo” para a simbiose 
entre quem deve impostos
e quem deles é credor).
Uns cobradores de fraque
a reboque de antropológicos desejos
exsudam os alinhavos da “pertença”,
irrecusável linhagem
a quem se ofereça no altar da identidade
assim devolvida aos anais da pertença 
– a equimose que cobre a pele
bulimia não reconhecida
em que se dissolve a autêntica liberdade. 
Uma espécie de morcela
onde foi fumigado o “sentir pátrio”,
ou coisa que o valha,
e à bandeira seja devida honrosa continência
a apalavrada jura do esvaziamento da pessoa,
como é da conveniência dos bastardos
que são os diletos propagandistas 
da “pertença”.

Termos em que
uma teoria subiu à boca
no suco gástrico de semelhante acédia:
os valentes gurus da portugalização
os pressurosos meirinhos da pertença
são casos de imperativo divã psiquiátrico:
levaram quinquénios inteiros
subsumidos na pertença
e de tanto serem escafandros da pertença
já se confundem a si mesmos
como esfinges que sintetizam a pertença,
arremedos de sebastiânicas personagens
(sem o malogro em que se deitou
o eterno prometido).

Termos em que 
lavro publicamente um orgulho:
andei em turísticas funções
pela capital do império
e muitas foram as vezes que me interpelaram 
em estrangeiro idioma,
o que me fez assentar a argamassa
da inidentidade.
E se à identidade estou em falta
ausentam-se as credenciais da pertença,
no enfim lago idílico
onde se expõe toda a pessoa sem grilhetas.

#1088

Quem imagina
os custos
de ser um políptico?

20.6.19

#1087

Inunda-se
de poesia
esta paisagem mental.

Alvorada


(Alvorada rasgando o Tejo, com a ponte como pano de fundo)

Olho o céu
que apresenta nuvens esfarrapadas. 
A madrugada espartilha-se
na tímida luz, ainda baça,
que a desapodera. 
As nuvens esfarrapadas
estão levemente tingidas por um rubor,
ainda emaciado,
o pressentimento da manhã. 
Detenho-me fixamente
neste horizonte que transborda,
levemente,
a quimera que é o reavivar do dia. 
Sempre soube
que a aurora,
mesmo não sendo boreal,
é um singular enriquecimento. 

19.6.19

#1086

Contradição de termos (exemplo):
free shop.

18.6.19

Abóbada

Responde ao sussurro da lua
em páginas seguidas
por versos meticulosos
em gramática invulgar.

Responde ao vagar da maré
sem esquecer a cor da maresia
com os braços em honesta demanda
do amor inconfundível.

Responde ao rumorejar da manhã
em janelas adornadas pelo orvalho
no olhar ainda estremunhado
e desfaz o medo do dia restante.

Responde ao silenciado entardecer
enquanto a noite se liberta
e compõe as estrofes singulares
com o sangue vertido na caligrafia amestrada. 

#1085

Deste vento
o ciciar tangente
cortando raso a pele fria.

17.6.19

Sonho & pensamento

Às vezes, penso:
gostava de ser um jacarandá.
às vezes, sonho:
gostava de ser um jacarandá
no auge da fruição florida.
Gostava.
Penso
que sonhar não é danoso
e sonho
que pensar não é armadilha.
O jacarandá que eu gostava de ser
em soprando os sonhos disfarçados de pensamento
não tem o sonho de se tornar eu.
O jacarandá
embebido em seu profundo sonho matricial
não pensa o mesmo pensamento meu.
Talvez não consiga ser ojacarandá
mas ainda meto as costuras
na hipótese de ser comoo jacarandá
em sua florida fruição.
Ouço os violinos disfarçados de sonho
e os verbos que lhe dão corpo
em pensamentos ecoados na bruma tardia:
o jacarandá despido mostra o inverno
e eu só sonho
em pensamentos erráticos
com o seu primaveril estado.
Anoto a traição do pensamento ao sonho
(ou será o contrário?).
Anoto.
E sei que das minhas mãos
erguem-se pétalas azuladas
que em sonhos inclassificáveis
a mim vieram como dádiva do jacarandá escolhido.
Sei que das minhas mãos
o pensamento reescreve-se em sonhos
(ou será o contrário?)
E a matéria final 
não será o cais
apenas um apeadeiro
a porta da partida para a viagem seguinte.
À frente, 
haverá outro jacarandá à espera de flores;
à espera dos meus sonhos
corporizados pensamento.

#1084

Esta é a trincheira
agora,
no eloquente teatro
das coisas não perpétuas.

16.6.19

Vida

“Recusar o ruído do mundo”, 
in “O Sopro”, de Tiago Rodrigues, 
Teatro Nacional de S. João

Se em dúvida persistir:
a trovoada é da vida
a as trevas ficam à guarda da morte.

No silêncio
(como se fosse conventual)
ferventa o húmus em que amanhece
a vida
destroçando a cortina espessa que esconde
a morte.

O mundo inteiro
não precisa de ser aval
da vida sem freios;
o seu ruído é dano
e o silêncio sua antítese
recolhimento em forma de fortificação.

15.6.19

Seleção natural

(No 40.º aniversário de “Unknown Pleasures”, de Joy Division)

“There is no room for the weak.”

Quem determina a fraqueza:
os que são atirados 
para o pântano da fraqueza,
ou os que,
do altar de onde se dizem fortes,
se incumbem de dele excluir os fracos?
Não é seleção natural
(ou ficaria provado
que por ausência de justiça
deus não conhece lugar).
Hipótese a considerar:
que o alfabeto que serve de grelha
adulterado esteja
e os que fracos se admitem
são os que mais fortes se constituem.

#1083

O arranha-céus,
mas longe disso.

14.6.19

Profecia

Diziam
que as ruas estavam atapetadas
pela bonomia indiscutível
e os pressupostos enraizados
estilhaçaram-se num rumor demorado. 

Diziam
que as manhãs eram o ubere fértil
onde a pele falava com as divindades
e os verbos estéticos eram devolvidos
em paga. 

Não diziam
a aprazada maledicência
a tirania do fingimento
as máscaras em vez de rostos
a militância dos mastins que ferram o osso
exaurindo a carne potencial. 

Diziam
em vez disso
que se podia esperar pelo amanhã
sem medo de ter medo
no xadrez não gasto da vontade
a favor da maré 
que sussurrava na sombra da maresia. 

Diziam
categoricamente
as estrofes arrancadas das flores
à medida que o anoitecer limpava o dia
e o sol tomava seu descanso
nas costas do horizonte. 

Diziam
em apalavradas cortinas corridas
que não temos herança
a não ser os títulos da alma
o impecável escanhoar do dia
a matéria incomensurável
dedilhada em guitarras ancestrais
no ímpar ornamentar das páginas admitidas. 

Diziam
sem medo do medo
que seria uma litania não esconjurar os vultos
assisá-los no leito barroco
contra as manobras dos volúveis
em apeadeiros remotos. 

Diziam
o que se podia dizer
e até o que se julgava
ter ficado por dizer
na demencial embriaguez das palavras;
o teatro mais alto
onde até as mãos pequenas tocam o céu.

#1082

Metáfora para uma vida:
a multidão em sentido contrário
como maré caudalosa.

13.6.19

Lei de bronze

Tirando os tapetes
o chão em sua nudez
e os olhos desembaraçados de peias. 
Todas as ameias são um refúgio
e um refúgio acontece
quando se tem algo a esconder
ou quando grita ao ouvido
a necessidade de um esconderijo
contra os malefícios do exterior. 
Por isso,
as máscaras. 
Os fingimentos repetidos. 
A dissimulação,
um eufemismo adestrado pelos mitómanos. 
E quem os pode julgar
se a maresia insinua um universo homogéneo?
Não chega a ser contrabando;
no limite, 
um teatro imenso
desdobrado em palcos numerosos
e a função de ator transgredida
no papel que todos assumem. 
A bruma incendeia a lucidez
nos algoritmos espaçados que untam,
com matemática autoridade,
o fingimento que deixou de ser. 
Não se compõe o campo alisado
com sílabas destacadas no logro imperial;
os homens são o seu próprio covil
e não se importam,
não estão a cobro da anestesia
que não passa de pretexto para caucionar
o tão organizado caos
o imenso baile dos fingimentos. 
As ameias
são simples couraças
em que todos se protegem
das mentiras dos outros
e das que contam a si próprios.

#1081

Para ser “alto quadro”
que altura é a mínima?

#1080

Dedicado a quem lamenta
ter perdido o paradeiro do tempo:
não se pode perder
o que se não tem na mão.

12.6.19

Estroinas

Estas tremuras
no logótipo das mesuras
não rebaixam as tonturas.
Soubesse das agruras
dos valentes feitos miúras
em pleito com suas cesuras
e quem se importava com as coisas puras?
Talvez só as cavalgaduras
que desconfiam das coisas maduras
e só apreciam tempuras
em suas precoces cozeduras.
Agarram-se às faturas
sem tempo para as manhãs impuras
e deles não é o altar das ternuras.
E fogem das palavras duras
por medo de serem tomados pelas curas.

#1079

Dizer “dou de barato”
é uma entorse à teoria do valor
(o que é dado não tem preço).

11.6.19

Mosto

No leve rumor
da transparência
entre rostos seráficos
e bengalas perdidas na floresta:
não é ao acaso
a empreitada estimada;
o diafragma retesa-se
a respiração adia-se
falta algum oxigénio
e o raciocínio embotado pinta o cenário 
– ninguém sabe do seu paradeiro
e a geografia perdeu estima. 
Julgo que se trata
de uma amálgama desatenta
e a transparência 
é aspiração vertida para fora,
só para fora,
no beijo álgido 
que não deixa um estremecimento. 

Perguntem aos estorninhos
o que diz a sua lavra. 
Perguntem 
aos sacrificados
no óbice de suas falas.
Perguntem aos modernos gladiadores
que alimentam a energia que parece perene. 

Os nomes irmãos falam em uníssono
mesmo quando discordam.
Falam. 
O que parece traduzir-se em boa nova. 
Rompe-se a letargia. 
Reagem os obstetras de colóquios impensáveis. 
Os anátemas 
soçobram à violência do tempo
e é quando se descobre
a frivolidade da transparência. 

Eu sempre tive por desconfiáveis
os que se oferecem ao panteão das virtudes
ao trono suportado em “valores”, 
numa competição sem mecenas
apenas uma exibição de pós-aburguesamento
sem intervalo na crónica dos (bons) costumes. 
Eu sempre tive 
por nada confiáveis
os que em si mesmos conhecem
os lugarejos onde apascentam
a transparência.
Eu sempre tive por desconfiável
que tanto lustro seja aditivado
a um pergaminho que se deseja solar.

#1078

Acerto a fala
pelo meridiano rasurado
e a pauta alinha-se no ceptro esperado.

10.6.19

#1077

No ulmeiro fora do mapa
desdisse das mágoas
seus remédios.

Dança

Arranquei o sal aveludado
do teu corpo exposto.
Em troca
sublimei os faraós encantados
e o verbete do desejo saciado.
Aos nossos pés
depôs-se a noite testemunha.
Depois
a mão tocou num pedaço teu
e os relógios fecharam os olhos
no verbo intemporal
que dissemos em uníssono.

9.6.19

#1076

Cabo do mar.
Onde cabe o meu infinito.

8.6.19

#1075

Devolvida a fronteira
sobrava a exiguidade
da solidão.

7.6.19

Insígnia

Descombino o oráculo
onde muitos se aninham
(para seu resguardo,
assim julgam).

Na contingência do parágrafo
a aspereza do verbo cru
saliva uma certa fúria escondida
(imaginam os ferozes estetas
em seu incomparável donaire).

Se as ameias fossem perfeitas
e as rosas perenemente perfumadas
os cintos lógicos da desmemória
não seriam o punhal sobre a jugular
e até as comezinhas coisas 
seriam o valor do ouro
(anunciam os ingénuos
de mãos atadas nas cortinas do pretérito).

Fazem-se as luas tingidas
pelas lágrimas sem rima
e as vozes sem nome correm sem medo
contra as paredes altas,
inacessíveis
(no pranto contumaz
da viuvez de quem não foi consorte).

À altura do miradouro
juntam-se as falas sem sentido
os sentidos proibidos
as proibições sem lei
e a lei de bronze que está esquecida
no forno ressequido
(e o homem magoado
indaga o horizonte sem freios).

Os escombros,
por estranho que seja,
não são velhos
e os capazes alinhavam as estrofes avulsas
de onde sai o mar em seu irredentismo
(contra a metáfora
do boémio totalidade).

O chão quente
seca a chuva inóspita
e as plantas não chegam a saciar-se. 
Os rótulos não sabem das garrafas
e as pálpebras retêm as vírgulas a destempo,
curadoras da gramática exemplar. 

#1074

(Allen Halloween, Parque da Cidade)

“Daqui não levo nada.”
A sinopse da minha relação
com a igreja.

6.6.19

Degrau

Sobre o mar
o verbo alado
consome o tempo. 

Digo:
o mar é meu
por saber ser meu
o olhar que nele se detém. 

Do mar intransigente
recolho a paciência
na impura condição assinada. 

Digo:
o mar sou eu
pelo menos hoje
que tal se congemina a vontade. 

E se ao mar deitar
o suor envernizado
resultam as garrafas órfãs
que encontram epílogo no areal. 
Do mar ciciam
as garrafas não vazias
testemunhas da constelação de palavras
e de uma miríade de sentimentos. 

E do mar
e ao mar
os revolvidos poréns
as seráficas visões
os destroços reavivados
os rostos inanimados
a esfíngica silhueta do mundo
com o arco-íris multiplicado
a um expoente sem conta
como verbete da rica 
diversidade.

#1073

Considerar a obra-prima
é discriminar as tias.
(Heresia!
clama-se na Quinta da Marinha.)

#1072

Os ecos são o mandato
do verso transfigurado.