22.7.19

Ensimesmado

Combinados os verbos
só faltava a gravata a matar.
A rua estava à espera
e o espelho não o deixava desmentir:
tanto fulgor,
como podia alguém fazer de conta
que não notava a sua presença?
E, contudo,
foi tanto o exercício de si mesmo
à frente do espelho
poses solenes a perder de vista
ensaios diversos de pose matrioska
ângulos múltiplos sem encontrar defeito
em autocontemplação vagarosa,
que à hora de sair já era tarde.
Ao menos
o espelho reteve toda a grandiloquência.
Só não sabia,
no contorno do sono ardiloso,
que o espelho não fala com pessoas
e as pessoas não querem saber daquele espelho
(cada qual só toma atenção
ao seu privativo espelho).

#1124

Recolhida nesta avalanche
a antítese de qualquer parábola.

#1123

Em nome de quê,
se não no próprio?

21.7.19

Idioma misto

Será por ser chique
ou por colonização cultural
(ou por se ter convencionado
língua franca)
o pechisbeque
de misturar idiomas na mesma frase
em frases sucessivas
num dia inteiro de falas.
Nobilita.
Confere pergaminhos.
É de casta.
É e um linguajar metodicamente simplório
embora disfarçado de arte sofisticada.
Pois um portofolioé carteira
benchmarké modelo
targeté alvo,
outcome é resultado
profit, no idioma caseiro,
não deixa de ser lucro.
É só perguntar a um dicionário.
O que não é lucrativo
é o idioma misto
que oxigena resultados risíveis
e põe estes trendycomo alvos perfeitos
de uma certa chacota irrestivível.
Podem ser modelos so cosy
tão avant garde
tão distintivos no seu speech
que me deixamsmashedem minha pequenez.
Prefiro ter em carteira
a saloiice de falar um idioma à vez.

20.7.19

#1122

A carne servil
na carne servil
berçário de um vendaval.

19.7.19

Ensarilhado

Este é o meu desmodo:
um arquipélago hasteado
na frontaria do ocaso
e um banco de ardósia
onde cimento meu pesar. 

Tirei as teimas
contra o improvável bocejo
dos deuses reduzidos à inexistência. 
Sabia que podiam ser magoados
mas essa não era minha mágoa. 
Cuidei do sentido olhar imaterial
ou, por assim dizer,
a digressão sobre a teórica conceção
onde se antecipa o pretérito.
O arquipélago era o refúgio 
depois
de extensas camadas de terra de ninguém
e as vozes iradas faziam o que podiam
em suas metáforas inacabadas,
seus proverbiais monólogos. 

Não queria saber de nada disto. 

Juntei as mãos
juntei-as
ao constante desvelo pelo mundo
e sem o contratempo que desfigurava a memória
pareceu-me que o espelho
devolvia algo admirável. 
Não era eu, contudo:
continuo sem remédio
esgotado na fogueira
onde se consome o vão estipêndio da memória
inseguro na consumição das inseguranças
que nem amaldiçoadas se alijam 
da fronteira onde deixo de ser eu. 

Se ao menos 
o arquipélago não fosse cercado por água
podia chamar a mim um reino,
um reino que fosse,
miserável, 
mas reino enfeitado 
pelo segredo de que seria tutor. 

Não contei 
com a desmedida da ousadia
e o arquipélago foi tomado
pelo mar enfurecido.

Tal foi o meu desmodo
não incensado nas arcadas do medo.
E às vezes digo,
quase como se fosse um lamento:
antes fosse, 
o medo.

#1121

(Variante do #1120)

De servitudes avulsas
no esquecimento da memória
amesquinha-se a natureza humana.

#1120

De servitudes avulsas
em ofensa à memória
amesquinha-se a natureza humana. 

18.7.19

Baú do futuro

Não prevejo
a fronteira do medo
o cais sobranceiro ao rio frugal.
É no trivial começo
quando nada parece sê-lo
que se agigantam as asas do sonho
e as barcas se dispõem à travessia.
Oxalá o medo fique antolhado,
preso nas malhas em que se tecem 
as fronteiras
para na pele repousada
se decantarem as vozes ciciadas
em forma de verso
as vozes-candeia
trazendo a tiracolo as luas esperadas.
Não prevejo,
nada.
As profecias,
deixo-as para os peritos.

#1119

Na boca quente
um beijo púrpura
um começo.

17.7.19

Navegação

Sabia de um navio fantasma
que dormia nas minhas mãos.

O navio
fugia dos faróis.
Não temia as marés iracundas
as tempestades impulsivas
os piratas que desrecomendavam os mares.

Estava nas minhas mãos
em seu sono protegido.

Era fantasma,
o navio.
Não tinha nome
nem se lhe conheciam registos oficiais.
Por ser fantasma
descuidara-se de tripulação.
Vogava no sentido dado pelas minhas mãos.
Não precisava de bússola:
o seu sono,
em minha tutela,
sob a jura da minha janela,
era o sextante suficiente.

Por ser fantasma
não estava a jugular sob a mira da destruição.
Era como o meu sono
uma constelação de idiomas perenes
o complexo enredo
desembraçado das teias milhentas
em que se decompunha.

E o meu sono,
dantes povoado por navios fantasmas,
navegava a preceito
no zimbório de onde está de atalaia,
resguardado de fantasmas.

#1118

Tirou à sorte 
a fronteira do abismo
e fechou os olhos, a medo.

16.7.19

#1117

A mão pressentida
vertida sobre um nenúfar
acende a água redentora.

Generais da estultícia

Cortejo.
De verdades alindadas.
Dá orgulho ver o prazer
os zeladores das verdades.
Insofismáveis,
como é de preceito considerá-las.
(Ou prazer ver o orgulho,
já nem sei.)
Cortejo.
Do verbo arrebatado.
Da bravata fácil
a espada desembainhada
à menor ofensa
(ou coisa que se assemelhe).
Dos jumentos sem onça
não se lamenta a estultícia.
Não pode;
alimenta-se deles,
a estultícia despudorada.
Não fogem do repto.
Inventam-no,
quando não se sentem cercados.
Tresleem
e são pobres hermeneutas
das palavras não deles.
São diligentes
a versar palavras nas bocas outras.
Não satisfeitos
avalizam erráticas leituras
e atiram-nas para cima dos vilipendiados.
Chegavam 
para encher vários quarteis.
Não era mal pensado.
A ilógica castrense
cai-lhes 
que nem fato feito por medida.

#1116

Respiram, 
as coisas,
com a leveza de um avião planando
como se folha de papel fosse.

15.7.19

Quociente

Digo o improvável:
a soberania gasta
o recinto imaculadamente vazio
as árvores inertes
profecias por escrever
o peito marcado pela aurora sem nome
nos confins de tudo
e no limiar do nada.

Digo o improvável:
canto como danço
na voz gutural e no gesto fino
e devolvo à mentira o palco
as tábuas irregulares onde pisam os pés
fábrica abandonada no fastio da tarde
e sem palavras ouvidas
o silêncio vetusto que não se cansa.

Digo o improvável:
arco com o peso da memória
invisto contra a tirania da memória
e debato-me no irreparável desejo
a fatia mais grossa da luz não depurada
e as mãos generosas
nas dádivas que não encontram sujeito.

Digo o provável:
não sei como são as dores
não sei desconhecer a matéria sensível
e da filosofia do modo
entre marchas solenes e opíparas comendas
revisito as cicatrizes oculta
sem pavio para exorcismos
no sempre curto testemunho
do trovejar com saliva contra o efémero.

Digo o provável:
erguidos os cálices
irrelevantes os párias
inconsequentes os perjúrios;
só o cingir do amor
o fausto manjar sem preço nem rótulo.

#1115

Atiro-me à maré
no património de uma frase solta
e de volta trago o dia arrebatado.

14.7.19

#1114

Perdido por mil
é mal menor
do que perdido por dez mil.

Cemitério

“Is there life before death?” (Numa exposição no Museu de Serralves)

Código genético:
o desperdício
das dádivas que vêm às mãos.
O desgaste dos olhos
em vidraças mundanas
venais
que postergam o festim da vida
e aproximam o tempo da morte.
Na encruzilhada do pensamento
uma interrogação desmente a maré:
não é saber da vida depois da morte

(a mais espúria das interrogações,
com negação na sua própria formulação),

mas se houve vida
antes de ela ser negada pela morte.
A hipótese de um palimpsesto de morte
não está de parte:
a vida como farsa
ocultando um sentido antecipatório da morte
e a vida,
mera lantejoula 
onde a morte se passeia.

13.7.19

#1113

Uma excentricidade depois
continuava a mesma pessoa.

12.7.19

Fora do tempo

Não tinha noção do tempo
na contabilidade desassisada dos válidos,
se aos válidos fosse pedida noção.
Preferia outra moção:
faria do tempo
a enseada por onde,
gota a gota,
ao mar seria dada entrada,
sem o apressar nem dilatar
(o tempo).

Uma clepsidra disfarçada de sereia
quis repudiar a hipótese
procurando alternativa no roteiro 
das meãs possibilidades.
Ocultavam,
tais possibilidades,
um tempo que era um enredo em forma de farsa
com um palco sedutor
narrativa solenemente hasteada
o idioma nunca lesado em seu domínio 
muito ouro ungido dos dedos
– tal como o disfarce envergado pela clepsidra.
Mas era um tempo farsante,
um logro de um tempo vazio
sobrepondo-se ao tempo não avarento.
Rejeitei os solilóquios encenados
na bela fazenda arroteada com cores de néon.

Fui a tempo
de não me achar
fora do tempo.

Fiquei com a impressão
de saber da medida certa do tempo.

#1112

No magma sem rota
o sedimento
contra o perjúrio do tempo.

11.7.19

#1111

Queria ser o dia altímetro
para do meu corpo
cordilheiras inteiras irromperem,
vulcânicas.

Extravio

Esta é a pior estrada possível.
A recauchutagem desqualificada
penhor dos piores instintos
a sublimação de todos os males
o correio que não se espera.

Esta é a pior estrada possível.
O degredo metaforizado.
O inalcançável vulcão que respira o enxofre 
– e se alimenta de enxofre – 
no biliar enxovalho das palavras
que descem a sub-idioma
a decadência que se não esconde
sem lugar para esconderijo.

Um extravio,
Esta que é a pior estrada possível.
e, contudo,
é a estrada com mais trânsito
a estrada que apetece parafrasear
saciando as vírgulas e os parágrafos
a pontuação inteira em seu melífluo pesar
por anacoretas fingidos de aristocratas.

A estrada.
A pior possível.
Um desfiladeiro sem opção
no ermo lugar a que se aconchega
nas varandas escancaradas ao luar
onde não sobem lobos esfaimados
nem criminosos do pior jaez:
só os persistentes viandantes usam a estrada 
– a pior estrada possível – 
em estados lastimosos
nauseabundos
o pensamento sem paradeiro
húbrisdesapalavrado nas esteiras sem sol
em movimentos sísmicos
convulsivos
e choros de lágrimas fluentes
que são afluentes de rios caudalosos.

Esta é a pior estrada possível.
A pior possível.

A barreira sobreposta ao olhar
algema que aprisiona as mãos intimidadas
verbo proibido no cancioneiro das falsas fadas
uma espada sem comiseração
crispada sobre o dorso condoído
a punção perene das angústias sem finalidade.

A pior estrada possível.
A inevitável estrada.
Comum.

#1110

O medo
é uma dinastia
à prova de república.

10.7.19

#1109

Devolvo
ao mar cansado
a lágrima doce da bonomia.

Cortina de espelhos

Esconjuro 
as rodas encravadas
na engrenagem que congemino.

Um sussurro
desvenda as cortinas vetustas
no solitário bocejo da noite.

Antevejo
nas escadas íngremes
o absoluto encantamento do verbo.

Revejo
as páginas idas
no mirífico campo do silêncio.

Entardeço
no irreprimível movimento do tempo
sem capitular aos demónios invisíveis.

Arroteio
uma montanha milenar
no refúgio que se intui exigível.

Escondo
a matéria pútrida
dos olhos vivos que são juízes.

Perdoo
ao tempo contumaz
as cicatrizes legadas à pele.

Preparo
o chão gasto
para os pés nunca cansados.

Não corrijo
os contratempos de que fui tutor
por do arrependimento não ter saber.

Não escondo
as mágoas enquistadas
sob o esquecimento armado.

Não resisto
ao ocaso sibilino
a página-entrelinha que dita o segredo.

Não me oponho
ao verdugo da fala
se por ele se desmatar a fala mundana.

Não digo não
se o não for o cais sereno
onde repousa o rosto exangue.

#1108

(Cefaleia)

Um eco persistente
o mais audaz dos punhais
coloniza as veias pungentes.

9.7.19

A manhã e a maré

Deixei que a manhã 
tomasse conta da maresia
em sucessivas camadas de nuvens 
– diademas graciosos sem epílogo.
E nas contas da manhã
entre equações sem paradeiro
e vozes sem nome
dela tomei as rédeas
e somei-me
à aventura do mapa por desenhar.
Talvez fosse a manhã
a arquiteta do mapa por congeminar;
ou talvez a manhã
estivesse à espera de instruções
de um fogo por atear
na maré nascente que se parecia purificar
nas arcadas da paisagem
ela, 
por sua vez, 
debruçada 
sobre o leito seco do mar.
Deixei que a manhã fosse aviso
a cautela por vezes remediada
e resgatei do peito
os versos que ficam sempre por acabar.
Dei-os de volta à manhã
que se fundiu com a maré
e juntos partiram,
as suas silhuetas sumidas 
no ténue fio do horizonte,
sem mapa que os desenhasse
sem nada
a não ser o sangue siamês
que passou a ser uníssono. 

#1107

Depois da ponte
atrás de mim,
as ruínas que me precederam.