26.12.19

#1320

Mais ou menos
um atilho na dobra do verbo
a névoa que enfeitiça a paisagem.

25.12.19

#1319

Lançada a mão no abismo
e já ninguém fica à mercê
de suplicar: “quem me acode”?

#1318

A exclamação adversativa
arranca do lugar
os habitualmente impassíveis.

24.12.19

#1317

“Quem me acode?”
ouço a súplica incisiva e pungente
e ninguém mora em redor.

Nudez

Da nudez
retomo o alvor
a indiferença
o mel em rima
testamento pressentido
costura. 

À nudez
devolvo o corpo
sem um dia faltar
e na nudez
não coabitam demónios. 

Nudez em resguardo
a intimidade em segredo
as linhas desenhadas
na urgência do poder
esconderijo
santuário do desejo
o verosímil nome não datado. 

Na nudez
nado
em águas revalidadas
faço a maré
sei-me nado
no avesso de modas
e da infecunda bandarilha
dos escanções do deslumbramento. 

À nudez
o medo se em público
feitoria de pesadelos
e o recato do corpo
fronteira que é viveiro de limites
onde forasteiros não têm pátria. 

Dou à nudez
os poros avivados
os versos lendários
uma guitarra aparatosa
o cais em espera
o vagar do tempo sem pressa
os mares todos recolhidos na mão
o torso arqueado sobre a alcateia
e o lenticular espelho das coisas disformes.

23.12.19

#1316

Não era o vespeiro
o banal berço dos nascituros;
esse estava ajuramentado
para a idade da lucidez.

Malmequer

De resto
arborizei a planície
com o mister de esconder
a impudicícia. 
O resto
dardejei sem penhores
os caudais fartos que batiam à porta

(com exceção 
das liturgias pespegadas
por espalhadores de fés variadas).

Abria janelas
à espera da linhagem do vento
e esperava,
esperava que não fosse albergue dominante
o da noite vultuosa
o imerecido destacamento da fúria,
estes comezinhos sentimentos. 
O resto,
de resto,
amaciei com a saliva
deixando à mercê das sílabas
da métrica articulada na cama dos versos
destituindo o coma dos sentidos. 

#1315

Digo: 
martelo pneumático
a voz percutida mais parecendo 
o efeito mostarda de Dijon.

22.12.19

#1314

A custódia da matilha
(em vez de um mal maior).

#1313

[Compêndio do desmedo]

Pega-monstro.
Paga o monstro.
Pega no monstro.

21.12.19

Valado

A data pela metade
no poço dos mouros
amuralhado na manhã invernal
e o prefácio ensarilhado nos nomes.
Bastava um grito;
um grito pujante
como a trovoada
para fazer do rio um gigante sem freio
e de cada palavra na boca 
os lagares onde se cozinham
os melhores versos.
Do labirinto
veem-se as ameias gastas
e os olhos descansam no parapeito do luar.

#1312

Folheias as páginas do jornal
ficas com os dedos amarelecidos
com o mundo que não gostas de ver.

20.12.19

Abrigo

Não posso pegar
nas dores do mundo. 
Não quero
que contaminem o meu regaço,
não lhes dou tutoria
no venal recobro das almas 
sem paradeiro. 
Não posso
saber dos transvases 
que vociferam verbos irados
e das pálpebras deitadas ao vento.
Retomo a paciência
o tomo secular, 
enciclopédico,
o dicionário que ensina a estima
o olhar selecionado
a palavra que não é destinada 
a um lugar vão.
Não quero
ser constituído algoz de mim mesmo
e prefiro que o avesso da memória
se demore num lugar intemporal
onde as cores se confundam com palavras
e por eito
sejam verbos constantes
miragem dos ocasos sem lugar
a esplêndida estatura por onde se mede
a atalaia do festim que há 
na semântica de um nome.

#1311

O estuário
cobra a portagem
das mansas águas 
o santuário que derrota a angústia.

19.12.19

Wrongdoing

É dos manuais:
a lisura dos estetas
contra a infecunda fala
e dos equívocos em barda
não se consta
que haja penhor por perto.
Se aos lustros pedem conselho
e do cognitivo mear ficam devedores
não se compromete o erro por assinatura
o tear onde se tece 
o avesso do que haveria de ter sido.
Preceito de todos os males,
a precisão do erro
tem medição
só depois de ter sido 
contrasteado como tal 
– como se fosse um ouro do avesso,
ou o avesso do ouro,
o seu porte como simetria do que haveria
na hipótese do des-engano.
Pois que se duvide
e com fundada legitimidade
que haja quem patrocine
e com intencionalidade
o erro metódico, sistémico.

#1310

Esta é a jangada que escolho
o miradouro atempado
na rosácea de vontade. 

18.12.19

Agente à paisana

Era como ir a uma loja de guloseimas
e nós
tomados pela passividade dos desinteressados
indiferentes à mercadoria.

Era como temperar com fogo
a combustão implacável do vulcão
deitando-se sobre as nossas peles
e nós
hipotecados pelo inverno alinhavado
embebidos na fuligem das cinzas
mordendo os corpos em ebulição.

Era como lacrimejar no apogeu da angústia
e nós
consumidos pela melancolia sem razão
fugíssemos do cais impreciso
onde reluziam os néones refulgentes.

Era como beber um vinho encorpado
dando as bocas ao desejo insondável
o desejo como lava subindo pelas paredes
e nós
tementes apenas da convocatória dos prazeres
suseranos das coisas entronizadas.

Era como saber não fingir
E nós
Atores à paisana, 
sem palco
senhores das nossas palavras
fortalezas sem acesso ao fora de nós
cinzelássemos as fronteiras sem limites.

Era como povoar um lugar mudo
e nós
penhores de todos os silêncios
disséssemos as palavras altas
sem recusar os proventos da ternura.

#1309

Sem medo da usura do medo
os olhos cravados no luar do devir.

17.12.19

Um fresco sobrevoando o tempo hodierno

Sei-o bem
é da ordem do mítico
o santuário
onde sereias e dragões
concebem criaturas hediondas
híbridos
em que o pior das partes
é um sincrético califado,
o eixo pútrido de todas as coisas. 
Investem os medos contra os inocentes
e em vagas cimentadas a ira
os lençóis descidos sobre a frágil condição 
os Homens assim despojados
à mercê
dos punhais impiedosos
da descendência de sereias e dragões. 

Vejo este pesadelo em horário diurno
em pleno gozo de faculdades cognitivas
em desfiles hediondos
cúpula do prazer dos plumitivos
enquanto os atores a preceito
se saciam na inofensiva bulimia
dos que são 
crentes
sem saberem como.

#1308

O céu púrpura
de meus olhos centelha
à espera da noite espartana.

16.12.19

À hora certa

De repente
os pássaros calaram-se
e ficou o navio,
galante,
visto desde a proa,
sem se adivinhar o destino 
– sem marinheiros à vista.

As comodidades da vida
são um disfarce
as pessoas sem tirocínio
para as empreitadas encavalitadas 
– um logro que devia ser julgado.

Os pássaros calaram-se
(não sei se já foi dito).
E só se ouvia
o estalido da noite
noite fora
percutindo na tela da memória
como se a memória fosse a mnemónica 
– de um oráculo sem nome.

Diziam, 
as viúvas,
que em tudo há um escárnio lazarento.
Mas isso eram elas,
as pobres viúvas,
que teriam muito a aprender
com os pássaros que emudecem 
– à hora certa.

#1307

Jogo com a sorte 
– e o que é a sorte
se não um pretexto para o azar.

15.12.19

A maré que fazemos com as mãos

Descemos ao chão
juntamos as mãos ao ouro esparso
não queremos adivinhar a colheita à espera
somos, 
antes, 
coreografia avulsa
ordem sublime 
retirada ao penhor do dia. 

Dizes:
beija o céu
traz o céu 
para a embocadura da tua boca
deixa o céu sentir a cartografia da tua boca
a geografia do desejo
singular.
Amanhece no meu oráculo
e diz-me
de preferência em palavras suadas
que quimeras me reservas
no mais impuro santuário
que cingimos 
com os corpos trémulos. 

Digo:
que dizemos as palavras proféticas
os vasos esbanjando fertilidade
e sabemos ser tão fina
a fronteira entre o chão e o céu
e por isso 
não capitulamos
não transigimos 
na levitação das árvores frondosas
o traço grosso 
com que desenhas no meu corpo
o teu nome próprio
e o que de minha safra 
deixo
em moldura perene
o veio forte onde nos agarramos
como corrimão de platina
ou do material mais pétreo que houver
em nossos limítrofes ligares. 

Concebemos um palco ímpar
as tábuas arrancadas às cicatrizes dos lugares
com um lampejo do sol tardio
e agarramos a luz porém modesta,
chega-nos esse módico,
que do demais somos lídimos fautores
a imperturbável ciência da cumplicidade
os corpos necessariamente chegados
o deslocamento do resto
até que sejamos nós
a dobrar de tudo o resto. 

E dizemos:
damos os rostos à chuva copiosa
sentimo-la entranhar-se nos poros abertos
cuidamos 
de alisar os lugares da nossa gramática
cuidamos
de aplacar a ira do mar
com os versos retumbantes que falamos.
Desaprendemos 
o que for de desaprender
só com a ânsia de aprender 
como se um zero fosse o reinício. 
Na discreta comunhão do tempo
em páginas e páginas esgrimidas a quatro mãos
o lisérgico saber que nos acomoda
em montanhas e montanhas que desfilam
desafiantes
no cais de onde retiramos 
o olhar insondável. 

A vida não vai depressa
ela é que tem de esperar por nós
soberanos dela,
artesãos desenfreados das suas fronteiras
cada vez mais lassas,
cada vez mais incindíveis
no mapa desamparado sob nossos corpos
e nós
imperturbáveis
imaginamos o tudo que quisermos por imaginado
autores da nossa autoria
desenhando 
o desenho que encerra a rosa-dos-ventos
e no silêncio da noite
sussurramos os nossos nomes
como se fosse necessário
eles serem
a jura recíproca.

#1306

Obnóxios 
os que em usura se fanfarreiam:
“não há pai para mim”!

(Se para cada alma
um pai é pressuposto).

#1305

Pedra angular.
Mecenato
do ângulo morto.

14.12.19

#1304

A cicatriz
selada
no bojo do oblívio.

13.12.19

Previsão

Desta quarentena
a solidão sem mestre
no poço esventrado em seu fundo
rascunho da maresia esquecida
úbere inteiro 
sem as algemas pueris. 

Deste a quarentena 
aos seus algozes
em retribuição
do âmago de uma generosidade sem estima
entre os modos diplomáticos dos covardes
e a boçalidade hipnotizada 
do corpo diplomático. 

Desde a quarentena
um levantamento avulso
as mãos viradas do avesso
réplica da escotilha retesada
por meãos intérpretes da crueza. 

De fora da quarentena
a máscara estilhaçada
e a espuma que se alvitra
no sopé de um corpo empenhado.

#1303

Resistir.
Reexistir.

#1302

O verbo deslaçado
contra a adulteração do fojo.
Uma aresta por dizer.

12.12.19

Manifesto contra as apoteoses

Apoteose:
apetece ser o ocaso
pois só no ocaso
se abrem as apoteoses,
o braço do rio
onde se depositam
as proezas.
Mas perguntas:
não podem ter lugar
apoteoses
a meio do caminho,
ou até no começo da demanda?
Somos dependentes
de apoteoses
esvaziamos o tempo
fora das apoteoses,
do tempo delido
numa penumbra intemporal.
E a sede de apoteoses
é a sede da angústia,
o seu lugar centrípeto,
por mais apoteoses 
que não são anotadas.
Tanta a sede de apoteoses
que se apagam
na opacidade de que são feitas.
Sobra a palavra
ininteligível,
como o travo da apoteose.