3.1.20

#1330

Sinto o assédio 
da minha biografia.

2.1.20

Requiem pela memória

Não sei
de memória
do paradeiro da memória
pois da memória 
tenho a imagem de um poço fundo
sem cortinas para a memória
e de memória
julgo saber
que perdi o rasto da memória.
E desconfio
se a memória não me atraiçoa
que se da memória tivesse um lampejo
ele seria um disforme quadro
sem vistas para a memória.

#1329

[Bocage]

Visado.
Vi o sado.
Vi o Sado
Avisado.

1.1.20

#1328

Coro em coro
na vigília contra a indigência.
Coro com o coro
no sabre da decadência.

Inauguração

Não profetizo o escárnio
nem amacio as lágrimas de desdém:

torpes entorses da alma
ficam por conta 
dos que de si se representam
em tamanho lugar soez.

Eu prefiro
a serenidade das sequoias
que ficam por conta da perenidade
e conferem a beleza de um lugar.

31.12.19

Aviso de receção

Ao bater a porta
sem remorsos pelo transato
a asa do fio condutor
e o transmissor ocupado pelo devir.

Ao bater a porta
o verbo da nuca sem remissão
a paleta preenchida com as cores 
assinadas no teatro sem tirania.

Ao bater a porta:
o sextante aberto
com a crisálida toda aberta
um vaidoso pavão que desfila
no parapeito do tempo.

#1327

A ovelha negra
é a que empresta cor
ao rebanho.

30.12.19

#1326

[Efeito de Fohen]

Sem o remorso não havia a consciência. 

Força extinta

O espelho no rio
as flores todas avivadas
abertas no acolhimento do sol
balbuciam cantos literais
na sombra das pontes retalhadas.
O rio
não se coíbe
avança contra as marés escrupulosas
como se dançasse entre os rochedos
serpenteando a coreografia avulsa
mas triunfando
para gáudio dos arbustos menoscabados.
Talvez seja um simples bocejar
ou o corvo esquecido entre o nevoeiro
ou uma senhora idosa em contemplação
na varanda do seu esquecimento:

talvez seja
outra tanta coisa
afivelando seu penhor
e a corrente forte do rio, 
imune a qualquer sufrágio,
dita a sua lei intemporal.
Até que um menino
imberbe como o são os meninos
vaticina o rio puído 
mal se consume sua dissolução 
no mar sem tamanho.

#1325

Não é preciso ser vulcanólogo
para saber de erupções.

29.12.19

#1324


[Poder de contradição]

O vento a despentear
o mar ainda bravio.

#1323

Indeferimento da saudade,
se não consigo lembrar 
da posteridade.

28.12.19

#1322

[Faro]

Recruto o sal
pegamos nas mãos
e colhemos as laranjas selvagens.

27.12.19

Mostarda de Dijon

Mostarda de Dijon
lembro
a mostarda de Dijon
o talão mais parecido
com a invasiva alocução 
de não aceitáveis substâncias
(julgo).
Lembro
o que as lembranças querem
insubmissas
tutoras de sua própria vontade,
uma indomável vontade,
como indomável é a rebeldia
da mostarda de Dijon. 

#1321

O belo
efémero
pertinente
em oblívio.

26.12.19

Já é hoje

Hoje 
soube pela minha sobrinha infante
que já era hoje
quando deu pela aurora.

Perguntei-lhe,
na despedida,
quantos hoje faltam
para ser o próximo hoje 
em que nós vamos rever. 

Sentado na esplanada
com muito pouco para fazer
soube-me ocupado
pela descoberta da minha sobrinha. 
O hoje redescobre-se
quando sabemos que já é hoje. 
Estultícia
é deitar um hoje a perder
só por estarmos convencidos
que temos muitos hoje de crédito. 
Desgraçadamente,
e num laivo de excessivo otimismo
(ou de demência irracional),
nem contamos
que o hoje que é hoje
possa ser o último em crédito.

#1320

Mais ou menos
um atilho na dobra do verbo
a névoa que enfeitiça a paisagem.

25.12.19

#1319

Lançada a mão no abismo
e já ninguém fica à mercê
de suplicar: “quem me acode”?

#1318

A exclamação adversativa
arranca do lugar
os habitualmente impassíveis.

24.12.19

#1317

“Quem me acode?”
ouço a súplica incisiva e pungente
e ninguém mora em redor.

Nudez

Da nudez
retomo o alvor
a indiferença
o mel em rima
testamento pressentido
costura. 

À nudez
devolvo o corpo
sem um dia faltar
e na nudez
não coabitam demónios. 

Nudez em resguardo
a intimidade em segredo
as linhas desenhadas
na urgência do poder
esconderijo
santuário do desejo
o verosímil nome não datado. 

Na nudez
nado
em águas revalidadas
faço a maré
sei-me nado
no avesso de modas
e da infecunda bandarilha
dos escanções do deslumbramento. 

À nudez
o medo se em público
feitoria de pesadelos
e o recato do corpo
fronteira que é viveiro de limites
onde forasteiros não têm pátria. 

Dou à nudez
os poros avivados
os versos lendários
uma guitarra aparatosa
o cais em espera
o vagar do tempo sem pressa
os mares todos recolhidos na mão
o torso arqueado sobre a alcateia
e o lenticular espelho das coisas disformes.

23.12.19

#1316

Não era o vespeiro
o banal berço dos nascituros;
esse estava ajuramentado
para a idade da lucidez.

Malmequer

De resto
arborizei a planície
com o mister de esconder
a impudicícia. 
O resto
dardejei sem penhores
os caudais fartos que batiam à porta

(com exceção 
das liturgias pespegadas
por espalhadores de fés variadas).

Abria janelas
à espera da linhagem do vento
e esperava,
esperava que não fosse albergue dominante
o da noite vultuosa
o imerecido destacamento da fúria,
estes comezinhos sentimentos. 
O resto,
de resto,
amaciei com a saliva
deixando à mercê das sílabas
da métrica articulada na cama dos versos
destituindo o coma dos sentidos. 

#1315

Digo: 
martelo pneumático
a voz percutida mais parecendo 
o efeito mostarda de Dijon.

22.12.19

#1314

A custódia da matilha
(em vez de um mal maior).

#1313

[Compêndio do desmedo]

Pega-monstro.
Paga o monstro.
Pega no monstro.

21.12.19

Valado

A data pela metade
no poço dos mouros
amuralhado na manhã invernal
e o prefácio ensarilhado nos nomes.
Bastava um grito;
um grito pujante
como a trovoada
para fazer do rio um gigante sem freio
e de cada palavra na boca 
os lagares onde se cozinham
os melhores versos.
Do labirinto
veem-se as ameias gastas
e os olhos descansam no parapeito do luar.

#1312

Folheias as páginas do jornal
ficas com os dedos amarelecidos
com o mundo que não gostas de ver.

20.12.19

Abrigo

Não posso pegar
nas dores do mundo. 
Não quero
que contaminem o meu regaço,
não lhes dou tutoria
no venal recobro das almas 
sem paradeiro. 
Não posso
saber dos transvases 
que vociferam verbos irados
e das pálpebras deitadas ao vento.
Retomo a paciência
o tomo secular, 
enciclopédico,
o dicionário que ensina a estima
o olhar selecionado
a palavra que não é destinada 
a um lugar vão.
Não quero
ser constituído algoz de mim mesmo
e prefiro que o avesso da memória
se demore num lugar intemporal
onde as cores se confundam com palavras
e por eito
sejam verbos constantes
miragem dos ocasos sem lugar
a esplêndida estatura por onde se mede
a atalaia do festim que há 
na semântica de um nome.

#1311

O estuário
cobra a portagem
das mansas águas 
o santuário que derrota a angústia.