[Crónicas do vírus, DCCLXXXVI]
Legados da peste (102):
do cancelamento
dos estados de espírito.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Marco
a tinta-da-china
o lugar.
Desfaço
com as mãos frias
as ameias.
Devolvo
no esgar mecanicista
o verbo.
Imagino
no sofá de um poema
o sangue último.
Acabo
no anoitecer válido
a especular.
[Crónicas do vírus, DCCLXXXV]
Legados da peste (101):
o rosto cansado
de uma liberdade
condicional.
O relógio das parecenças
só sabe falar com metáforas.
Mal se afunda
num dezembro sorumbático
desfia um rol de provérbios
até a linguagem ficar exangue.
É da cepa dos gongóricos
– esses aspirantes à erudição
farsantes de um conhecimento pronto-a-vestir.
São parecidos
e não sabem ser
mais do que isso.
Suas não são as páginas escorreitas
eles apenas lagares do lugar-comum
verbo repetido
no espelho em que não são eles
a imagem devolvida.
Se fossem filhos de si mesmos
seriam os primeiros parricidas.
[Crónicas do vírus, DCCLXXXIII]
Legados da peste (99):
não se diga
a destempo
que encerrado
está o assunto.
O jornal começava na página quatro.
A tarde esperou que a andorinha se deitasse.
O polícia abusou da bolacha americana.
A tia vetusta subiu a saia um dedo acima do joelho.
O artista internacional sorriu ao porteiro do hotel.
No cemitério não havia portas abertas à noite.
O estroina fazia-se à vida à boleia do elétrico.
Os versos arrumados combinavam uma conspiração.
O rio não adormeceu a convite do luar.
A mulher sozinha perdeu-se no jardim central.
As velas nas casas não eram um idioma.
O rústico habitar remoto dispensava companhia.
O medo de ter medo rimava com a loucura.
Os dados percorriam o suor dos dedos.
Os amantes desamparados fugiam das lágrimas.
O vinho colhido aprendia a saber os dias.
Os candeeiros apagados amaldiçoavam a noite.
Os socalcos dispunham-se na vertigem do entardecer.
A tiara açaimada escondia-se dos aspirantes.
O grande palco indiferente não dispensava as almas.
Em vez de um sensato abocanhar do dia
a demencial escapada nos interstícios da boémia.
A véspera colonizava a emergência do futuro.
As pessoas avisadas não sabiam do futuro.
Colmeias inteiras ensinavam os misteres.
À mesa dos reis sabiam-se pútridos comensais.
Na voragem dos pressentimentos achava-se um escudo.
[Crónicas do vírus, DCCLXXXII]
Legados da peste (98):
viradas do avesso
as bandeiras
falam um idioma árido.
[Crónicas do vírus, DCCLXXXI]
Legados da peste (97):
o espelho da desídia,
viperino,
a tomar conta da clepsidra.
Tira as teimas
de cima do joelho
e atira os despojos
para a rasante do rio.
Se não chegar a incumbência
sopra
(em seco)
umas velas de aniversário
e destina ao oráculo que vier
as impressões digitais antes das cesuras.
Dizem os sábios
que a armadura dispensa o polimento
se na carne estiver embebido
o estandarte desarmado.
E se as teimas forem teias
que se desprendam as sílabas
das arcanas algemas que sopesam as eras.
Esta mortalha
sopra um amarelo iracundo
resolve a litania rastejante
num abraço entre as sílabas cantantes
movimento que sabe não ser perpétuo.
Queria dizer:
eu sou perpétuo;
mas logo a mortalha residente
desocupa as estridentes esperanças
no torno onde se afeiçoam os lúgubres peões.
Os vultos
com parecenças com abutres de atalaia
dirão
que um dia haverá
sem ser o amanhã da véspera.
[Crónicas do vírus, DCCLXXIX]
Legados da peste (95):
ficámos entre mãos
com uma caricatura
do que fomos.
De nota artística:
o roube eloquente
disfarçado de autoria
militava a favor da estultícia.
Os narradores enfeitiçados compunham a sala.
Do lado de lá da lombada
a audiência
num frémito enquanto as palavras não eram
embuçadas.
Não se sabia do entardecer
que (consta) tinha sido convocado
mas continuava empedernidamente contumaz.
(Acontece
às almas dissidentes
que evocam um sentido de misantropia
de cada vez
que uma multidão é a manta que os acolhe.)
De vez em quando
um murmúrio assaltava o estranho silêncio:
reclamava a seu favor
a atenção das divindades de atalaia
em vez das vezes perdidas
nos corredores da impaciência.
Os luares emaciados não desistiam.
Pediam vozes fundas
que trouxessem no dorso das sílabas
os parapeitos coloridos de verbos famintos.
Às regras enquistadas
sobrepunha-se a angústia escondida
no avesso da língua turgida.
As bocas esperavam
para serem os úberes das vozes que irrompiam
contra a mudez.
(Os roubos invisíveis
tomavam conta das almas sentidas
enquanto a geografia se tornava um verso
e os animais não fugiam do retrato.)
Soubessem das chaves do desmedo
e todos subiriam a palco.
As janelas continuam do avesso
cumprindo-se juras sem fiel depositário
à espera que seja noite
e do crepúsculo se levantem as falas inteiras.
Os bravos meãos silenciados
não arredavam pé:
deles seria o sapato sem paradeiro
ou apenas se cumpriam
como os labores que não perdem pela demora
– e o palco continuava em deserção.
Não importava nada.
Os olhos eram todos campestres
tributários de uma singularidade desarmante
e neles se compunham as estrofes
que pediam sonhos em vez de ouro.
[Crónicas do vírus, DCCLXXVIII]
Legados da peste (94):
a miragem
tão demandada
é o antídoto cabal.
[Crónicas do vírus, DCCLXXVII]
Legados da peste (93):
nunca deixamos
de estar a tempo
de alinhavar a marcha-atrás.
O som das árvores
ecoa na planície
o ostensivo ranger de dentes
que pede meças ao silêncio.
Os oráculos, hiperativos,
dedicam-se à prestidigitação do passado
movendo-lhe as costuras
até serem a sombra pálida
do espelho que protesta contra o pretérito.
Os dedos imprevidentes atiram-se ao futuro.
Pecam por defeito:
se as medidas estivessem calibradas
o futuro seria apenas
uma remota lembrança.
[Crónicas do vírus, DCCLXXVI]
Legados da peste (92):
a precipitação,
talvez,
do legado
fará dizer que foi apressado
o legado.
O pano puído
posterga o peditório da fama.
Pendido sobre o pedestal gasto
povoa os fundilhos que se perenizam.
Puído em paráfrases ímpares
o pano pavoneava-se sem porção.
Os corpos pirotécnicos
perdiam-se no pastiche fúnebre
sem perfilharem o seu passado.
O pano puído era a metáfora
do país possível.
[Crónicas do vírus, DCCLXXIV]
Legados da peste (90):
guerrilheiros desafeiçoados
de armas destrunfadas
e, portanto, não terçadas.
[Crónicas do vírus, DCCLXXIII]
Legados da peste (89):
não legado,
apenas interstício,
o morticínio da peste disfarçado
de hibernação.
A boca
traz o palco
em sobressalto.
Calada
morde os lábios
à espera de destronar
o silêncio.
Dela se teme
um abalo telúrico
a ossatura estilhaçada
no rumor da palavra canina.
O sal não está à venda.
Apalavra-se o entardecer
no fio delgado
da memória.
Dessas palavras nunca vãs
há de o silêncio
perder trunfo.
[Crónicas do vírus, DCCLXXII]
Legados da peste (88):
as bandeiras
crismadas pela ferrugem
entronizam
os mastros decadentemente machos.
[Crónicas do vírus, DCCLXXI]
Legados da peste (87):
o disfarce
institucionalizado
(nos açaimes que perduram).
Num abraço de mar
as andorinhas
desenham palavras cintilantes
amesendadas com lírios gastos.
Ao longe
um navio afasta-se;
leva da cidade
a sua pose arrumada
(bem vai precisar dela
que uma tempestade se anuncia
para o alto-mar).
Por cá
ficam os de sempre
na indiferença de sempre.
[Crónicas do vírus, DCCLXX]
Legados da peste (86):
deserdados do passado
à espera
da indulgência do futuro.
Subo ao modo hibernação
não vá ser devorado
pelas forças implacáveis
que afeiam o mundo.
Se houver apeadeiro recomendável
provo o mosto a que for convidado.
Em caso que seja diferente
terço o não
para não ser arrematado fora do prazo.
E se às mentiras forem ditas mentiras
sobre destemporadas a eito
nas masmorras da impureza
que sobre a frugalidade da palavra singular
antes que seja dado vivo
a mastins disfarçados de arcanjos.
[Crónicas do vírus, DCCLXIX]
Legados da peste (85):
enciumados
por não sermos o alvo
jogamos à roleta russa.