[Crónicas do vírus, DCCCXCIII]
Legados da peste (204):
A corrosão
deixada em destroços
a tempo de ser invalidada.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, DCCCXCIII]
Legados da peste (204):
A corrosão
deixada em destroços
a tempo de ser invalidada.
Somos
a fatura
do medo.
Somos
– em terrífica dilação –
astronautas
do desdesejo.
Párias,
amiúde,
na imunda contrafação
o leite pútrido
que nos fermenta
em sistemática negação.
Somos
pátrias gastas
funestos zeladores de nada
coldres gastos
ardendo na lava sem gasto
alpinistas a fundo
procuradores do desmedo
traduzido
em tresloucado verbo.
É do medo
que levamos
esta fatura
em futura expedição
nos compêndios legados
na armadilhada faca
que desfeita o porvir.
Falamos
o idioma do medo
e no medo
consumidos
arrefecemos o sangue
deixamos de ser
promessas vindouras,
murchados.
[Crónicas do vírus, DCCCXCII]
Legados da peste (203):
No acerto de contas
com o tempo de chumbo
quanto de nós
é matéria já diferente?
[Crónicas do vírus, DCCCXCI]
Legados da peste (202):
Reconciliação
com a parcela forçada
ao fingimento.
Procuro
na tua pele
agasalho.
Entendo
as cores do mundo
pelo teu olhar.
Sacio
a sede
no teu suor vertido.
Amparo
a angústia
no teu manancial.
Revejo
o porvir
nos versos
da tua fala.
Armo-me
da alegria
que esparges.
Encerro
num mar sitiado
demónios contumazes.
Cresce
em bandeiras sem algemas
a gramática
do prazer.
Amanheço
no desembaciado lugar
que ofereces
em deslimite.
Traduzo
na boca sem peias
a paga merecida.
Tomo
no teu corpo
a ideia de mim.
Concebo
o atlas
na página de rosto
da tua pele.
Desenho
o idioma particular
que entrelaça.
Procuro
num relógio a ouro
o tesouro de teu nome.
E sei
que o ocaso
não se furta nas mãos.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXXVII]
Legados da peste (198):
O reconhecimento facial
a caminho de ser restabelecido
como idioma oficial.
A tempo do destempo
os nomes costuram as suas profecias
no hesterno troar que encontra manancial.
Se dizem
que amanhecem as palavras
é porque a fala não se sitia
na mudez dolorosa
e através delas o corpo refaz-se
na aritmética dos melhores imperadores.
Não é a escuridão impante
que disfarça os medos.
O corpo não foge das convulsões:
acerta contas
de frente
corajoso
antes que o anoitecer faça do dia terminal
um outro esquecimento.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXXVI]
Legados da peste (197):
Eis a autofagia humana
a refulgir:
mal despachada a guerra da peste
e já há outra beligerância a bater à porta.
Não conto impérios
no remanso das mãos impuras
nem são meus os magistérios
que definham nos mais altos curas.
Se as mãos a convulsão chamar
e nas pedras chãs fizerem morada
direi de o porvir ser incerto como o mar
vocabulário hasteado em luar emparedado.
E depois em tardio ocaso
regresso ao moroso parapeito
com as estrofes seguidas ao acaso
nesta desambição do perfeito.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXXV]
Legados da peste (196):
A reminiscência
da tela a preto de branco
como marca registada
de um pesadelo.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXXIV]
Legados da peste (195):
Tribos em reabilitação
desfilam com a coroa da vaidade
de quem desafiou o infortúnio
e trouxe a glória à lapela.
Não doa o pregão
na comandita de um perdão
as vozes anotadas no caderno milenar.
Não soa o bordão
na vitualha de um trovão
a pele desimunda no soalho exemplar.
Não voa o bastão
na heráldica de um quinhão
o sangue esfaimado na penumbra ocular.
Não coa o estradão
na posse da sofreguidão
a fala falsa que amansa no dobrar.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXXIII]
Legados da peste (194):
Emancipamo-nos de prisões
– a ditada pela peste
e a outra
que vulgarizou sonhos de mandantes.
Sem vista do palácio
a crueza das mãos vindouras
entre os ramos de árvores desmaiados
e luares que extrapolam do céu sua morada.
Vindimam-se as almas
no amanhecer que poucos conhecem
(dizem).
O granito avulso
concebe a pele graduada
como se passasse por cima dos socalcos
e amansasse o rio desfeiteado
pela voz dos demónios.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXX]
Legados da peste (191):
Só faltou
inventar uma vacina
para mitigar autoritários saídos do armário.
O corpo
fala como metáforas.
É uma metáfora:
fingimento do que intui ser
ator banal
bandeira desembainhada
no estuário onde se terça o ocaso.
O corpo
ensina o passado.
É o passado:
arvore vindicada na usura do tempo
carne venal
tela gasta vertida em ferrugem
no regaço que estilhaça a nostalgia.
Um corpo
enquista-se como jura.
É uma jura:
contrafação de fabrico estéril
luar que se projeta
baço
abrilhantando o corpo tatuado
que se recebe num altar outro.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXIX]
Legados da peste (190):
Só falta decretar
com solenidade à lapela
o dia da meta abismal.
Não repousei
no monumento onde se reinventa
a memória.
O verbete da fala
é testemunha
do pesar que se estira na tela baça
como quem reprova o dia crepuscular
em sucessivas estrofes que vêm do osso.
Antes de saber os contornos da manhã
colhi no regaço o sal verificado à janela.
Dizem
que as palavras precisam de sal
e eu não sou ninguém para duvidar.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXVIII]
Legados da peste (189):
Só faltou
inventar uma vacina
para precatar conspirações em barda.
Telhado sem noite
por débito do luar
um inverosímil obus
acamado na pele.
Adivinha estéril
ou dardo combinado
num óbice pungente
dos oráculos do passado.
Raiz sem rega
que não medra em caule
a fala sem metáforas
na crueza das árvores nuas.
Inverno disfarçado de beijos
ou logro não dissimulado
por conta das mentiras vãs
em refrães insistentemente ditos.
Maré sem regras
nos vocábulos indiferentes
o mosto por revelar
nas bocas à boca do futuro.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXVII]
Legados da peste (188):
Os cultores das manhãs radiosas
conjeturam
que saímos aceirados
da tempestade atravessada.
A armadura
disfarça o postiço.
À mostra
só guerreiros
em plena coreografia
de valentia
centrípetas personagens
vértices da sua singularidade
heróis de si mesmos
detentores dos espelhos
por onde se aferem
– que os afetem
num quase involuntário lampejo
de imparcialidade
como atletas de alto rendimento
no cotejo com os demais.
E, contudo,
uma armadura
tão simplesmente honesta
a disfarçar tudo
o que em público não pode soar
pois às voltas com as marés tumultuosas
ninguém,
ou quase ninguém,
possui a fragilidade
que a espécie aprendeu a ser.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXVI]
Legados da peste (187):
Nem as praças
perderam o nome
nem nós esquecemos
do seu paradeiro.
Nos nomes
esconde-se
a penumbra.
Nas sombras
amanhece
o desmedo.
Na vergonha
reside
a indulgência.
Na manhã
levantam-se
os vultos.
No coldre
estilhaça
a maresia.
No estuário
promete-se
a confiança.
Nas juras
assobia
a mentira.
Nas bandeiras
adormece
um hino.
Nas mãos
desfoca-se
o labirinto.
A quimera
ornamenta
as bocas.
A trovoada
silencia
o contrabando.