[Crónicas do vírus, DCCCXCVII]
Legados da peste (208):
O tempo hibernou
e agora
cuidamos do degelo.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, DCCCXCVII]
Legados da peste (208):
O tempo hibernou
e agora
cuidamos do degelo.
Se pudesse ao tempo ordenar
para meter marcha-atrás
só para ser revisor dos planos pueris
(o que queres ser em grande?)
só
para me ajuramentar
futuro gangster
e das juras sina tornar
para
em grande
andarilhar de estepe em estepe
a fazer de Robin das estepes
mas virado do avesso
e contra os justiceiros desembainhar o coldre
julgando-os na ponta da arma
por mitomania compulsiva
logro militante
e oportunismo sem desculpa.
[Crónicas do vírus, DCCCXCVI]
Legados da peste (207):
Com vagar
a tela em que somos tecidos
desabilita-se das caricaturas que fomos.
Soube do mar
pela janela
que subia pelo luar.
Jurei
que o mar
não seria penhor
da solidão.
Havia dias,
dias tempestuosos,
em que o mar e eu
partilhávamos a solidão.
Era capaz de jurar
que o mar traduzia
os meus avulsos pensamentos
a julgar
pelo tumulto
deixado
em memória futura.
[Crónicas do vírus, DCCCXCV]
Legados da peste (206):
As almas segredam
no mapa dos rumores,
resgatadas ao exílio inconsciente.
Correria num estreito labirinto
na correria desenfreada de quase todos
e nos lampejos de loucura
desenharia a lucidez desamparada
contra os fulgurantes sábios de si mesmos.
E na desalinhada pele destatuada
diria os versos arrancados aos ossos
por dentro de um limite sem marcos geodésicos
ou balizas estertores.
Correria na correria de um só
no plúmbeo areal escondido das esquinas
afocinhadas no braço
e de resto
contra todas as probabilidades
daria conta das contas sem conta no fim.
Depois da correria
diria ao corpo cansado
para se exilar nas paredes húmidas da noite
onde o luar se engana com tolos
e os versos tropeçam em páginas preenchidas.
Até a correria ser parecida
com um moinho de vento
e às sereias alinhadas no cais
vozes de vultos fossem avoengas prescrições
contra os impropérios da distração.
[Crónicas do vírus, DCCCXCIV]
Legados da peste (205):
Contra os dias soterrados
a avalanche que deixou os rostos
submersos,
a memória do futuro.
[Crónicas do vírus, DCCCXCIII]
Legados da peste (204):
A corrosão
deixada em destroços
a tempo de ser invalidada.
Somos
a fatura
do medo.
Somos
– em terrífica dilação –
astronautas
do desdesejo.
Párias,
amiúde,
na imunda contrafação
o leite pútrido
que nos fermenta
em sistemática negação.
Somos
pátrias gastas
funestos zeladores de nada
coldres gastos
ardendo na lava sem gasto
alpinistas a fundo
procuradores do desmedo
traduzido
em tresloucado verbo.
É do medo
que levamos
esta fatura
em futura expedição
nos compêndios legados
na armadilhada faca
que desfeita o porvir.
Falamos
o idioma do medo
e no medo
consumidos
arrefecemos o sangue
deixamos de ser
promessas vindouras,
murchados.
[Crónicas do vírus, DCCCXCII]
Legados da peste (203):
No acerto de contas
com o tempo de chumbo
quanto de nós
é matéria já diferente?
[Crónicas do vírus, DCCCXCI]
Legados da peste (202):
Reconciliação
com a parcela forçada
ao fingimento.
Procuro
na tua pele
agasalho.
Entendo
as cores do mundo
pelo teu olhar.
Sacio
a sede
no teu suor vertido.
Amparo
a angústia
no teu manancial.
Revejo
o porvir
nos versos
da tua fala.
Armo-me
da alegria
que esparges.
Encerro
num mar sitiado
demónios contumazes.
Cresce
em bandeiras sem algemas
a gramática
do prazer.
Amanheço
no desembaciado lugar
que ofereces
em deslimite.
Traduzo
na boca sem peias
a paga merecida.
Tomo
no teu corpo
a ideia de mim.
Concebo
o atlas
na página de rosto
da tua pele.
Desenho
o idioma particular
que entrelaça.
Procuro
num relógio a ouro
o tesouro de teu nome.
E sei
que o ocaso
não se furta nas mãos.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXXVII]
Legados da peste (198):
O reconhecimento facial
a caminho de ser restabelecido
como idioma oficial.
A tempo do destempo
os nomes costuram as suas profecias
no hesterno troar que encontra manancial.
Se dizem
que amanhecem as palavras
é porque a fala não se sitia
na mudez dolorosa
e através delas o corpo refaz-se
na aritmética dos melhores imperadores.
Não é a escuridão impante
que disfarça os medos.
O corpo não foge das convulsões:
acerta contas
de frente
corajoso
antes que o anoitecer faça do dia terminal
um outro esquecimento.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXXVI]
Legados da peste (197):
Eis a autofagia humana
a refulgir:
mal despachada a guerra da peste
e já há outra beligerância a bater à porta.
Não conto impérios
no remanso das mãos impuras
nem são meus os magistérios
que definham nos mais altos curas.
Se as mãos a convulsão chamar
e nas pedras chãs fizerem morada
direi de o porvir ser incerto como o mar
vocabulário hasteado em luar emparedado.
E depois em tardio ocaso
regresso ao moroso parapeito
com as estrofes seguidas ao acaso
nesta desambição do perfeito.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXXV]
Legados da peste (196):
A reminiscência
da tela a preto de branco
como marca registada
de um pesadelo.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXXIV]
Legados da peste (195):
Tribos em reabilitação
desfilam com a coroa da vaidade
de quem desafiou o infortúnio
e trouxe a glória à lapela.
Não doa o pregão
na comandita de um perdão
as vozes anotadas no caderno milenar.
Não soa o bordão
na vitualha de um trovão
a pele desimunda no soalho exemplar.
Não voa o bastão
na heráldica de um quinhão
o sangue esfaimado na penumbra ocular.
Não coa o estradão
na posse da sofreguidão
a fala falsa que amansa no dobrar.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXXIII]
Legados da peste (194):
Emancipamo-nos de prisões
– a ditada pela peste
e a outra
que vulgarizou sonhos de mandantes.
Sem vista do palácio
a crueza das mãos vindouras
entre os ramos de árvores desmaiados
e luares que extrapolam do céu sua morada.
Vindimam-se as almas
no amanhecer que poucos conhecem
(dizem).
O granito avulso
concebe a pele graduada
como se passasse por cima dos socalcos
e amansasse o rio desfeiteado
pela voz dos demónios.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXX]
Legados da peste (191):
Só faltou
inventar uma vacina
para mitigar autoritários saídos do armário.
O corpo
fala como metáforas.
É uma metáfora:
fingimento do que intui ser
ator banal
bandeira desembainhada
no estuário onde se terça o ocaso.
O corpo
ensina o passado.
É o passado:
arvore vindicada na usura do tempo
carne venal
tela gasta vertida em ferrugem
no regaço que estilhaça a nostalgia.
Um corpo
enquista-se como jura.
É uma jura:
contrafação de fabrico estéril
luar que se projeta
baço
abrilhantando o corpo tatuado
que se recebe num altar outro.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXIX]
Legados da peste (190):
Só falta decretar
com solenidade à lapela
o dia da meta abismal.
Não repousei
no monumento onde se reinventa
a memória.
O verbete da fala
é testemunha
do pesar que se estira na tela baça
como quem reprova o dia crepuscular
em sucessivas estrofes que vêm do osso.
Antes de saber os contornos da manhã
colhi no regaço o sal verificado à janela.
Dizem
que as palavras precisam de sal
e eu não sou ninguém para duvidar.