2.3.23

#2698

Espreito

pela escotilha

os versos da madrugada. 

1.3.23

Injustiças indocumentadas (71)

Salvo o conduto

faltava 

declarar o ázimo. 

O panteão dos órfãos

Houvesse um trunfo na manga;

mas estava calor

e não tinha mangas apostadas

e do meio de tudo

encenei o palco ruidoso

onde o silêncio subia à cena. 

 

Houvesse um teatro por perto;

mas era um ermo

o lugar em que coabitava com o luar

e a meio da solidão

agarrei as estrelas que passavam na noite

se a noite não fosse

o lugar onde o medo se prefacia. 

 

Houvesse um astrolábio;

mas medieval não era o tempo atolado

e a meio de um nada

arranquei uma confissão à divindade de atalaia

e dela soube que de oráculos sabe nada

de si se desmentindo 

na qualidade em que se apresentava. 

 

Houvesse um remédio à distância de uma mão;

mas a cidade era a toponímia das ausências

e por demissão dos espíritos

ficavam as maleitas à mercê da sua sorte. 

 

Houvesse um navio sem escolta,

seus sem domador os mares atravessados;

mas as marés não estavam de modas

e no meio de mim

arranquei à força 

a ilha que se instalara. 

Injustiças indocumentadas (70)

A mão de semear

é aquela que não é

a esquerda.

#2697

Escondida na noite

uma luz boreal espreita

entre as rugas da alma.

28.2.23

Sinuoso

O tornado

respira os poros

que se distraem ao entardecer. 

 

Os ventos

desaprovam a sirene calada

e conspiram no avesso do tempo.

 

Armada a contenda

os coreógrafos pedem lema

em braços suados de tanto tentarem.

 

Depois da fronteira

um idioma que arranha os ouvidos

em gente que parece sósia de nós.

 

Na margem da manhã

o ciciar duradouro de um porta-voz

despejando ouro em cima dos sonhos.

#2696

O plumitivo multifacetado

berra:

“erro fatal”

e, todavia,

não há baixas a inventariar.

27.2.23

Nossa senhora da aflição

Certas

as esquadrias que enformam os corpos

um desfile sincero de estética

e se dizem que não é a estética alimento

por que há tantos mirones

dela dependentes como se uma religião fosse?

 

É desta vulcânica matéria que somos

um estrado feito de cortinas

e sobre o rosto,

incensado um véu que convoca diâmetro

o previsível testamento que não espera pelo tempo

tombando sobre as margens do amanhã

secretamente, em silêncio,

bolinando contra o vento audaz.  

 

O aval não vem às mãos

antes que a curadoria assine o livre solene

e os mastins sejam açambarcados

no vau onde fundas se estilhaçam as palavras. 

 

Concebemos os altares em lugares ermos

e é de propósito:

 

nunca percebi

como pode uma santidade ter por nome

aflição. 

#2695

Um mar de gente

contra as marés avulsas,

onde a vontade está abaixo

do nível do mar.

26.2.23

De que é feita uma casta

De mim

o xisto que abraça a alma

o rio que esconde a fundura

e o caudal voraz

que traz de arrasto 

os dias vindouros. 

24.2.23

Comunidade

Em corpos mutantes

cresce a lua apátrida.

Os rostos escondidos

ocultam nomes.

Se um mosteiro

pudesse ser sede das intenções

e as pedras ancilares fossem depósito 

das verdades sem sindicância

todas as palavras valiam por igual

e os corpos

mesmo sendo mutantes

seriam tatuagens uns dos outros.

Nessa altura

enfim

faria sentido falar

de comunidade.

#2694

Em vez da condenação

pontes 

que atravessem as diferenças;

em vez de cegueira

centelhas

que arrepiem o olhar.

23.2.23

Virado do avesso

Do alambique

os pontos e vírgulas

que suspendem o passado.

 

Aros perfeitos

que incendeiam o ocaso

nos sinais sumptuosos de solidão.

 

Os povoados

engalanam-se para a sepultura

sem saber que são exímios candidatos.

 

Da parte dos algozes

uma impúdica avareza de almas

sem direito a voz em pleito.

 

Da garrafa coeva

o artifício das mentiras enfeitadas

no arsenal de labirintos insondáveis.

 

Nem de arnês

se fala nos corredores sombrios

a rendição é o idioma vencedor.

 

Perdedores

os inocentes arrematados para o pelourinho

desnudam as vozes cansadas.

 

Oxalá fossem 

mercadores de futuros os forasteiros

e deles se falasse por cima do presente.

Injustiças documentadas (69)

Se o mal 

é dividido pelas aldeias

vamos todos 

para vilas e cidades.

#2693

No jogo de sombras

as entrelinhas 

da manhã.

22.2.23

Estaleiro

Não se adivinhe

o lugar do escultor

enquanto alfaiata os corpos

sob atalaia da sua alfaia

domando 

a matéria-prima que caleja as mãos. 

Não se desautorize 

a hermenêutica de quem se depõe 

diante da escultura

e empresta o seu olhar

à miríade de sentidos que a ela se abraçam.

Injustiças documentadas (68)

Porquê

viva voz

se viva é sempre

a voz?

#2692

De tudo que se espera

um nada como esperança

para não sermos reféns 

da filiação de desenganos.

21.2.23

Mansarda

Nesta cidade sem cor

da voz que se aviva

da voz de vultos hierárquicos

transborda a luz primeva

os orquestradores de oráculos.

 

Nesta cidade sem dor

um exílio que se adultera

do exílio de reféns sem redenção

amanhece o luar inverso

os apócrifos lobos que não esquecem.

#2691

Rasgo

o jogo de espelhos

por dispensar as sombras 

que limitam o sangue.

20.2.23

Pesca à linha

Não deixo rasuras na pele;

a gravata que se esboça

é a da descerimónia a preceito.

Os longos bocejos são apenas sono.

A parcimónia não é solenidade

nem o cobrador de fraque

é para aqui chamado.

Ah, que de tristezas

podiam as dívidas ser saldadas

no selo bastante da sua isenção

antes que exauridos sejamos

arqueados pelo peso dos juros

e o disfarce das moratórias,

um eufemismo para a obesidade

que é o passado em riste.

Conluiam-se as espadas insubmissas

contra a ostentação das memórias

entre duas colheres de passado

e um remédio para a desmemória

do futuro.

As rasuras da pele

são outro eufemismo

para o pretérito em inventário.

#2690

Do sal 

se emprestam as mãos

antes que trémulas

se avivem num ocaso.

19.2.23

#2689

Noves fora tudo,

na matemática dos niilistas.

18.2.23

Injustiças indocumentadas (67)

Todos

tolos.

#2688

O futuro

não precisa

de nós.

O futuro

não espera

por nós.

17.2.23

Dar à corda

As palavras tinham a cor da dinamite. 

Trovejavam

cuspindo a angústia que as veias retesavam

à medida que o mundo atravessava o Rubicão

à medida do sangue que se protestava,

envenenado. 

Dissessem o que dissessem do palco ingente

sentiam-se as sílabas

uma e a outra depois

a explodirem na boca

contaminando-a com o amargor

de quem de si não sabia o paradeiro. 

Não foi no exílio que temperou a angústia. 

E em vez de sentir as palavras

da cor da dinamite

conservou a granada encavilhada

não fosse a tonitruante cavalaria 

desfeitear os sonos por haver.

#2687

Em vez de mar

o chão de estrelas;

em vez de luar

o verbo da maresia.

16.2.23

Ilegível

O rumor visceral

nada entre as juras quiméricas

nada sabendo dos oráculos promitentes.

Desfazem-se as palavras

num manjar de confettis permanentes

enquanto as dádivas se sujeitam a sindicância.

E alguém diz

que outrora é que as saudades fermentavam

consumindo por inteiro um doravante em olvido.

Faça-se do adro

fábrica de emergência

que o tempo não espera por formalismos.

 

Componham-se as estrofes acarinhadas

em profecias depressa desmentidas

por vultos desmaiados.

Juntem-se as lágrimas arrematadas

em sonhos sem sombra de lustro

e copiosas promessas.

Oponha-se aos vaidosos estroinas

a predileção pela fonte erma

perto do santuário derruído.

Tornem-se luminosos os versos avulsos

a licença que dispensa carimbo

a caminho da irrisão.

#2686

Um salto só

um passo curto

nem que seja

no dia consecutivo.

15.2.23

Cessar fogo

Cessar fogo:

a artilharia emudecida

o clamor que celebra as pessoas. 

 

Disparo a centelha ávida

contra a tremenda voz tumular

a voz que se esconde no crepúsculo

e amedronta com os dedos fingidos. 

O céu está do avesso

e as mãos remexem as raízes das árvores

talvez demandem uma gramática 

talvez

peregrinem as pedras válidas

escondidas da avareza. 

Os braços não se deixam cair

ainda que a teia da gravidade conspire 

a desfavor. 

 

As casas estão todas atadas a um sono

e esquecem-se do dia militante. 

Um começo que espera

esboça umas sílabas tentaculares

 

(como se fossem flocos de neve

a precipitar em câmara lenta)

 

abotoa as asas do pensamento insubmisso

capitulando

capitulando na hibernação confortável

dos que renunciam a ser quem são

por imperativo de transfiguração forçada. 

 

Não digam 

que este palco em que medramos

não é a pertença de sistemáticos fingimentos. 

Não digam

que as bandeiras que se colam à pele

não são bandeiras que nos colam à pele

que deixamos que nos colem à pele

e nós

apenas timoratos que se anestesiam

suspeitamente adereços da vontade não nossa. 

 

O casario parece todo igual

e até as diferentes cores parecem cores iguais. 

 

Às vezes

a maré-viva decompõe a lhaneza pretendida

espalha o caos na geografia desarrumada;

é como se os alicerces fossem remexidos

e uma colossal colher de pau 

arrancasse do fundo os sedimentos

dando um outro desenho à tela 

– lavrando a mudança

que desconfia dos que conservam o passado

como se a mudança não fosse o verbo claro

do tempo que estuga o andamento. 

 

Tomo posse da vontade

que abandona o exílio. 

Sei que amanhã é amanhã

e que depressa um amanhã será passado

quando for a vez de um amanhã sucessivo. 

As janelas não estilhaçam

nem sob a ameaça de tempestades. 

Há uma tempestade de palavras 

que espreita pela escotilha

enquanto a manhã se faz mulher;

essa é a tempestade que se espera. 

 

Se houvesse cartografia dos contratempos

meu seria um mapa reescrito

liso e ausente

um paradoxo tornado livro de estilo. 

Os genes não tergiversam

na intensa demanda que mantém o pensamento 

de atalaia. 

Não concebo a medida do tempo

e avanço 

mar adentro

eu, 

a nau de mim próprio

capitaneada pelo mesmo,

só para atestar

a tremenda pequenez que não me acossa.