Espreito
pela escotilha
os versos da madrugada.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Houvesse um trunfo na manga;
mas estava calor
e não tinha mangas apostadas
e do meio de tudo
encenei o palco ruidoso
onde o silêncio subia à cena.
Houvesse um teatro por perto;
mas era um ermo
o lugar em que coabitava com o luar
e a meio da solidão
agarrei as estrelas que passavam na noite
se a noite não fosse
o lugar onde o medo se prefacia.
Houvesse um astrolábio;
mas medieval não era o tempo atolado
e a meio de um nada
arranquei uma confissão à divindade de atalaia
e dela soube que de oráculos sabe nada
de si se desmentindo
na qualidade em que se apresentava.
Houvesse um remédio à distância de uma mão;
mas a cidade era a toponímia das ausências
e por demissão dos espíritos
ficavam as maleitas à mercê da sua sorte.
Houvesse um navio sem escolta,
seus sem domador os mares atravessados;
mas as marés não estavam de modas
e no meio de mim
arranquei à força
a ilha que se instalara.
O tornado
respira os poros
que se distraem ao entardecer.
Os ventos
desaprovam a sirene calada
e conspiram no avesso do tempo.
Armada a contenda
os coreógrafos pedem lema
em braços suados de tanto tentarem.
Depois da fronteira
um idioma que arranha os ouvidos
em gente que parece sósia de nós.
Na margem da manhã
o ciciar duradouro de um porta-voz
despejando ouro em cima dos sonhos.
Certas
as esquadrias que enformam os corpos
um desfile sincero de estética
e se dizem que não é a estética alimento
por que há tantos mirones
dela dependentes como se uma religião fosse?
É desta vulcânica matéria que somos
um estrado feito de cortinas
e sobre o rosto,
incensado um véu que convoca diâmetro
o previsível testamento que não espera pelo tempo
tombando sobre as margens do amanhã
secretamente, em silêncio,
bolinando contra o vento audaz.
O aval não vem às mãos
antes que a curadoria assine o livre solene
e os mastins sejam açambarcados
no vau onde fundas se estilhaçam as palavras.
Concebemos os altares em lugares ermos
e é de propósito:
nunca percebi
como pode uma santidade ter por nome
aflição.
De mim
o xisto que abraça a alma
o rio que esconde a fundura
e o caudal voraz
que traz de arrasto
os dias vindouros.
Em corpos mutantes
cresce a lua apátrida.
Os rostos escondidos
ocultam nomes.
Se um mosteiro
pudesse ser sede das intenções
e as pedras ancilares fossem depósito
das verdades sem sindicância
todas as palavras valiam por igual
e os corpos
mesmo sendo mutantes
seriam tatuagens uns dos outros.
Nessa altura
enfim
faria sentido falar
de comunidade.
Em vez da condenação
pontes
que atravessem as diferenças;
em vez de cegueira
centelhas
que arrepiem o olhar.
Do alambique
os pontos e vírgulas
que suspendem o passado.
Aros perfeitos
que incendeiam o ocaso
nos sinais sumptuosos de solidão.
Os povoados
engalanam-se para a sepultura
sem saber que são exímios candidatos.
Da parte dos algozes
uma impúdica avareza de almas
sem direito a voz em pleito.
Da garrafa coeva
o artifício das mentiras enfeitadas
no arsenal de labirintos insondáveis.
Nem de arnês
se fala nos corredores sombrios
a rendição é o idioma vencedor.
Perdedores
os inocentes arrematados para o pelourinho
desnudam as vozes cansadas.
Oxalá fossem
mercadores de futuros os forasteiros
e deles se falasse por cima do presente.
Não se adivinhe
o lugar do escultor
enquanto alfaiata os corpos
sob atalaia da sua alfaia
domando
a matéria-prima que caleja as mãos.
Não se desautorize
a hermenêutica de quem se depõe
diante da escultura
e empresta o seu olhar
à miríade de sentidos que a ela se abraçam.
Nesta cidade sem cor
da voz que se aviva
da voz de vultos hierárquicos
transborda a luz primeva
os orquestradores de oráculos.
Nesta cidade sem dor
um exílio que se adultera
do exílio de reféns sem redenção
amanhece o luar inverso
os apócrifos lobos que não esquecem.
Não deixo rasuras na pele;
a gravata que se esboça
é a da descerimónia a preceito.
Os longos bocejos são apenas sono.
A parcimónia não é solenidade
nem o cobrador de fraque
é para aqui chamado.
Ah, que de tristezas
podiam as dívidas ser saldadas
no selo bastante da sua isenção
antes que exauridos sejamos
arqueados pelo peso dos juros
e o disfarce das moratórias,
um eufemismo para a obesidade
que é o passado em riste.
Conluiam-se as espadas insubmissas
contra a ostentação das memórias
entre duas colheres de passado
e um remédio para a desmemória
do futuro.
As rasuras da pele
são outro eufemismo
para o pretérito em inventário.
As palavras tinham a cor da dinamite.
Trovejavam
cuspindo a angústia que as veias retesavam
à medida que o mundo atravessava o Rubicão
à medida do sangue que se protestava,
envenenado.
Dissessem o que dissessem do palco ingente
sentiam-se as sílabas
uma e a outra depois
a explodirem na boca
contaminando-a com o amargor
de quem de si não sabia o paradeiro.
Não foi no exílio que temperou a angústia.
E em vez de sentir as palavras
da cor da dinamite
conservou a granada encavilhada
não fosse a tonitruante cavalaria
desfeitear os sonos por haver.
O rumor visceral
nada entre as juras quiméricas
nada sabendo dos oráculos promitentes.
Desfazem-se as palavras
num manjar de confettis permanentes
enquanto as dádivas se sujeitam a sindicância.
E alguém diz
que outrora é que as saudades fermentavam
consumindo por inteiro um doravante em olvido.
Faça-se do adro
fábrica de emergência
que o tempo não espera por formalismos.
Componham-se as estrofes acarinhadas
em profecias depressa desmentidas
por vultos desmaiados.
Juntem-se as lágrimas arrematadas
em sonhos sem sombra de lustro
e copiosas promessas.
Oponha-se aos vaidosos estroinas
a predileção pela fonte erma
perto do santuário derruído.
Tornem-se luminosos os versos avulsos
a licença que dispensa carimbo
a caminho da irrisão.
Cessar fogo:
a artilharia emudecida
o clamor que celebra as pessoas.
Disparo a centelha ávida
contra a tremenda voz tumular
a voz que se esconde no crepúsculo
e amedronta com os dedos fingidos.
O céu está do avesso
e as mãos remexem as raízes das árvores
talvez demandem uma gramática
talvez
peregrinem as pedras válidas
escondidas da avareza.
Os braços não se deixam cair
ainda que a teia da gravidade conspire
a desfavor.
As casas estão todas atadas a um sono
e esquecem-se do dia militante.
Um começo que espera
esboça umas sílabas tentaculares
(como se fossem flocos de neve
a precipitar em câmara lenta)
abotoa as asas do pensamento insubmisso
capitulando
capitulando na hibernação confortável
dos que renunciam a ser quem são
por imperativo de transfiguração forçada.
Não digam
que este palco em que medramos
não é a pertença de sistemáticos fingimentos.
Não digam
que as bandeiras que se colam à pele
não são bandeiras que nos colam à pele
que deixamos que nos colem à pele
e nós
apenas timoratos que se anestesiam
suspeitamente adereços da vontade não nossa.
O casario parece todo igual
e até as diferentes cores parecem cores iguais.
Às vezes
a maré-viva decompõe a lhaneza pretendida
espalha o caos na geografia desarrumada;
é como se os alicerces fossem remexidos
e uma colossal colher de pau
arrancasse do fundo os sedimentos
dando um outro desenho à tela
– lavrando a mudança
que desconfia dos que conservam o passado
como se a mudança não fosse o verbo claro
do tempo que estuga o andamento.
Tomo posse da vontade
que abandona o exílio.
Sei que amanhã é amanhã
e que depressa um amanhã será passado
quando for a vez de um amanhã sucessivo.
As janelas não estilhaçam
nem sob a ameaça de tempestades.
Há uma tempestade de palavras
que espreita pela escotilha
enquanto a manhã se faz mulher;
essa é a tempestade que se espera.
Se houvesse cartografia dos contratempos
meu seria um mapa reescrito
liso e ausente
um paradoxo tornado livro de estilo.
Os genes não tergiversam
na intensa demanda que mantém o pensamento
de atalaia.
Não concebo a medida do tempo
e avanço
mar adentro
eu,
a nau de mim próprio
capitaneada pelo mesmo,
só para atestar
a tremenda pequenez que não me acossa.