14.2.17

#139

Tiro a água do chão
com as mãos descarnadas
dos invernos cautelares. 

13.2.17

Velhos

A quadrilha dos estonteantes velhos
pratica estragos.
Contra os açoites das artroses
dos ossos cansados e das vigílias desamparadas
perseveram no umbral dos relógios
denunciando a conspiração que se orquestra
(a conspiração que sussurra a decadência).
A quadrilha desmonta
o pueril arsenal dos jovens
a arrogância viril
os artefactos desarmadilhados
o fogo de vista que nada incendeia.
Atira-se em pose terrorista
contra os aldrabões do império
que congeminam contra a senescência
– o fio de cobre que ata a vontade
quando ela sucumbe ao trovão mestre,
o chamamento sem recusa.
Em quadrilha
hasteando os frugais, mas estatutários,
estandartes da experiência
rebelam-se contra
a indolência
a anestesia geral dos estados servis
a lã lavada em fontes imprestáveis
a preguiça do pensamento
a indiferença do conhecimento
o sal mendaz das litanias próximas
o coágulo tirano não coado.
A quadrilha dos estonteantes velhos
prova
que os velhos,
os legítimos velhos,
se albergam algures
nas paredes falsamente frondosas
e, todavia,
destituídas de interior.
E gritam,
os membros da quadrilha:
só à velhice darão de barato
quando a morte lhes ganhar no braço-de-ferro.

#138

Not at all.
Not a tall.
Not a toll.

12.2.17

#137

(Dia de rosto caído)
Da gramática perfeita
paisagens escuras, rombas, vetustas
acabariam por ser extintas.

Código de conduta

Derramado o vinho fundo
nem os panos novos serviam
para costura das veias sangrantes.
Li
de trás para a frente
os manuais a preceito;
reli
os parâmetros dos instrumentos interiores
só para ter a certeza
se as bainhas quadravam certas.
Se ao menos
o vinho derramado tivesse aproveitamento;
se ao menos
o palheiro ermo não desautorizasse o porfiar;
se ao menos
no fundo vítreo do copo
os resíduos do vinho fundo
tivessem reinvenção:
a auréola das quimeras
seria página certa das inscrições tumulares
e os despojos sem emprego
retornavam ao parapeito das visões estrelares.
Não haveria luar profundo
nem noite madraça.
Apenas o eu inteiro
e a promessa
de não ajuramentar promessas.

11.2.17

Caça fina

Contavam-se entre as rugas dos dedos
as manhãs roubadas
as frutas deixadas ao deus-dará
a água disfarçada
a emblemática ossatura dos freios
a fleuma sem atilhos.
Todavia
um embuste subia a cena
sob o verniz flamífero.
O que de outro modo
se apresentava como pose donairosa
era apenas um devastador ardil
um poço sem fundo onde não havia água
um tremendo nada.

10.2.17

Piscina olímpica

Da espada mundana
em vértices azimutes
os dedos erguidos em carne viva.
Desossada a ira sem mercado
sobram as raízes fundas das árvores,
das hirsutas árvores
prometendo um anoitecer mendaz.
Digam o que disserem,
em estio contumaz
(tirando proveito de vagas metonímias)
os aprendizes desembaraçados,
continua renitente o não às demandas.
Podia ser que as nuvens finas encobrissem
as estátuas solenes dos estadistas pueris
e os pássaros estroinas voassem ao desbarato
enquanto as crianças brincavam aos poetas
– para tudo quadrar numa rima absurda.
Tudo teria sentido alferes
sem o caos edificante das coisas serenas
ou o verniz das fábulas com a dobra do mofo.
Do dia para a noite
vieram paulatinos penhores do que diziam ser
a verdade;
era escusado:
as espadas irrompiam das nuvens finas
dando cerco à feitura dos compêndios,
tirando estima à medida da verdade.
Sobravam as páginas em branco.
A alvura
à semelhança da neve prometida.

#136

(Dia sorridente)
Sentinela
do deslumbrante, inesperado teatro
que desfila à frente dos olhos.

9.2.17

A outra margem

Um rio-ponte
desfaz-se no remoinho das pedras varonis.

Deixa de ser ponte.

E,
todavia,
um clarão-surpresa
confere a centelha das ideias.
Não intimida,
o caudal voraz:
as braçadas serão fortes que cheguem.

Dirão que só um endemoninhado
mistura o corpo com aquelas águas
irascíveis e geladas
possivelmente refúgio de rochas pontiagudas
rochas de atalaia
prontas a usar o punhal
que das extremidades se funde com o caudal.

Não interessa o que possam dizer.

Em boca de cena
contra os gemidos de amedrontados curadores
mesmo com a roupa em cima do corpo
mergulha na correnteza desenfreada.

Em sendo mais desenfreado
venceu no braço-de-ferro.

A outra margem era apetecível.

8.2.17

Obra feita

Ah! as vendas cerzidas nos olhos
bestas em desvirtues constantes
triunvirato:
sede
precisão
perseverança. 
Daqui de onde vejo
estandartes lisos na aurora bastarda
vontades rombas
ironias próximas
pesares desconvocados. 
Aposto no sapato sem chão
apesar das nuvens altivas
apesar dos estorvos encostados ao cais
na miríade de olhares em maré contrária. 
Daqui para a frente
demito as resoluções firmadas
no embaraço das pontes fugidas. 
Não aprovo o sal gasto
que leva vantagem sobre a chuva negra
nem tiro da algibeira as moedas sobrantes
para gáudio dos artífices das justiças
sem deuses. 
Chega-me um olhar:
terno
recolhimento
semente. 
Daqui de onde parto
sei que chegarei a lugar ermo
e seguro. 
Os patamares que se levitam
por cima das nuvens
são o agasalho que espero. 

#135

A manhã desmaiada
curva-se na demora
vertendo o vinho macio.

7.2.17

#134

A matriz quadrada da transgressão
é uma espada fria
arrancada à carne fervente.

Tornas

Nada sem uma parede baça.

Os braços desatados atemorizam-se

O cavalo acobreado ajoelha-se, cansado.

Beatas adolescentes esganiçam cantorias.

O soalho molhado está escorregadio.

O autocarro solta muita poluição.

O senhor ministro assoberba-se.

A ave pernalta beberica algo.

As páginas do jornal não recomendáveis.

O senhor doutor ostenta bata e estetoscópio.

O mendigo operacional vagueia na noite.

Dois documentos perdidos alojam-se na valeta.

A caixa do medicamento no banco do jardim.

O bancário passeia a gravata nova.

A escuridão do dia mete dó.

As mãos que batem à porta, sujas de cimento.

A bibliotecária exaspera-se com o burburinho.

A realidade paralela.

O ócio perene.

A fartura de predicados, justapostos.

Sem adiamentos possíveis.

Só pele pura na alvura da neve.

E a beleza sem peias.

6.2.17

Proveito

Na armadura à prova de lagos
com o sextante no bolso
os óculos de aço embrulhados
o violino que não sei tocar
e o bornal cheio de estrofes.
Tiro as maduras medidas
na varanda do sol.
Cicio umas palavras
– umas quaisquer,
as que vierem ao alpendre –
e proclamo,
com solenidade,
os aventais subidos aos cotovelos.
Talvez não saiba
o que estou a fazer.
Talvez sejam as folhas sujas
(da sujidade das ruas)
que atropelam o pensamento audaz.
Lá que isso não interessa
é a profecia mais célere
que sobe ao púlpito da vontade.
Volto a olhar para o que vem ao olhar.
Apreciando.
Com estes olhos-matilha
inquietos
nunca assoberbados
como se fossem bandeiras lambidas pelo vento
pródigos porta-vozes das distintas medalhas
que esperam por vez.
Às tantas,
digo em silêncio
(rompendo o silêncio armilar):
oxalá estivesse o pensamento calado
furtivo no calado do silêncio.

#133

Podemos dizer
sem que a vergonha escorra da boca
que somos insurgentes no trânsito
do desejo?

5.2.17

Ondas

Já não há ondas iguais
no desfeitio que as premeia
no dorso de um cavalo sem rosto.

Das ondas iguais
sobrou a memória travada
e a sua perfeita infrutuosidade.

Quando eram iguais as ondas
a previsível estátua ditava o horizonte
e tudo era destituído de sal.

Eram as ondas sem sal.
As ondas sem frutos para dar.

4.2.17

Má paisagem

Era só uma paisagem
sem se distinguir
(para não dizer: monótona),
mas ponto de passagem.
(E este “mas” era,
só por si,
devastador.)
Em vez e procurar terreno de caça
em vez
de ir parar à rede em forma de presa
melhor fosse que descesse os olhos
em sistemática procura das armadilhas.
Mal maior não faria
em vez
de apoucar a paisagem repetitiva.

3.2.17

Páginas brancas

Páginas brancas
em respiração maresia
sem cortar as veias à claridade.
Brancas as páginas
barradas as palavras
num silêncio não orquestrado
banquete de frutos falados.
Houvesse o que houvesse por dizer
as brancas páginas não deixavam;
nem era preciso dizê-lo:
o olhar por dentro dos olhos,
terapia bastante.
Um olhar destes
percutindo no olhar outro
o pulsar acelerado das veias
mantinha as páginas em branco.

#132

Paredes-meias com a fome trivial
o sargaço das ondas
no restolho da tempestade
e a evocação de precipícios falhados.

2.2.17

Postiço

Dente maior
em boca pequena
é pólvora estéril
deserta de significado.
Cães magros, famélicos
em uivos sucessivos
gesta da mesma provação.
Mastodontes sem músculo
eruditos à procura de cultura
navio sem rumo em demanda de farol
um naco de pérolas de pechisbeque
e a gastronomia em cima do joelho,
às três pancadas.
À procura de folheto informativo
enquanto oitenta versículos
se ensaiam numa folha amarrotada.
O dente maior
perdeu o maxilar.

#131

Não traves
a lava que incandesce nas veias
ou acabarás por suplicar
o desfreio das mordaças. 

1.2.17

#130

Ah, a cortesia
o cânone inútil
da deseducação. 

Francisca

E agora
que o grande carrossel da vida
se entreabre aos teus olhos,
tens-te num berço
no anteparo do carinho todo
– do carinho de que és credora. 
Agora
que recebes nos braços
o grande carrossel da vida
irradias os mares com o teu aroma neófito
e deitas-te à vida que por ti espera.
Antes que saibas cantar palavras
fazes-te saber pelo choro, 
o melodioso canto
harmonia dos infantes banhados em inocência. 
Um tapete espera os teus pés
e o olhar decerto curioso
intrigado com as coisas novas 
que o fado te destinou. 
Ao teu redor
um bouquet de flores de muitas cores
transpira a beleza 
que do teu sorriso há de fruir. 
Um prontuário para nós,
os (que te são) queridos e te falam à alma,
para reaprendermos os rudimentos de ser
com a tua ainda tão breve e fresca vida. 
No leque de sóis resplandecentes
és, Francisca,
a mais recente musa. 

31.1.17

#129

Nem facas afiadas
nem terramotos tiranetes
nem marés vivas:
nada se opõe
à inteireza-ossatura.

Os eleitos

Das folhas frescas
no parapeito do orvalho
sobra um pedaço da manhã
como se houvesse carestia 
em lembrar a manhã. 
Num amontoado de nuvens rasantes
medra o néctar procurado
os dedos ungidos por préstimos não sofríveis
o peito cheio de vida cheia
um desfiladeiro apreciado desde o fundo vale
um caule decadente de uma flor 
arrancada ao chão
as pessoas de cujas vidas se sabe nada
um nada concentrado nas páginas não abertas 
de livros que esperam vez. 
Oxalá o chão fosse atapetado 
por pétalas lilases
pétalas que derrotassem os pesares amorfos, 
que não capitulam. 
Como se fosse preciso
levantar estátuas imediatas
a heróis sem probabilidade,
eleitos sem eleição
no mais puro hiato
entre a indolência dos povos
e uma soberba linhagem
sem gente por representação. 

30.1.17

A chama

Pois,
a chama.
Delicodoce.
Como um abraço.
Sentinela.
Na atalaia urgente.
Com os braços quentes
sem estiolarem no inverno.
A chama.
No crestar dos ramos secos
a fogueira repleta.
Sem chama vivaz
o pasto mortiço.
E na chama
as sementes loquazes
um esteio escorado
as cinzas testemunhas
o dorso orgulhosamente retesado.
A chama que chama
pelos corpos serenos
em sua feição celeste
domadores dos mares irados.
A chama, pois.
Trezentas noites urdidas
sem a pele macilenta
apenas por dentro dos olhos ardentes
dos olhos que resplandecem
a chama.
Leva os latidos dos cães vadios
levanta o abraseado da alma
limpa os corredores esquecidos do pensamento
nas levadas alcantiladas
nos sopés majestosos
nos luares quiméricos
nos lugares vazios, até.
Sem a chama
condenação ao arrefecimento global.

#128

Contra os testemunhos capazes
mordi a pele dura dos demónios
numa elegia aos contratempos. 

29.1.17

Marégrafo

Será que somos como nós
– a pele escondida
feitios vorazes
cores embebidas
vinho que não se adia
olhares sobre as coisas
corpos transidos?

Não importa
se somos como a linhagem herdada.
Só importa
sermos o que vier na rede
no púlpito da vontade
no sereno beijar do mar às pedras do cais.

Juramos não atraiçoar
a não ser a linhagem reverberada,
de dentro para fora.
Até que os impolutos jurados
sentados na sua sentida cátedra
se desmoronem corroídos por uma podridão
do tamanho do seu atavismo.

Nós somos fautores
dos nós que em nós de desatam
e repercutimos na tela as tenções que marejam
nos interstícios das veias.