31.5.21

Pacífico

Uma bala perdida

é a prova de vida dos inocentes. 

Numa câmara de sombras

onde vagueiam vultos serenos

o coldre vazio é o aval

das noites perdidas na angústia do medo. 

Mesmo a tempo

de as mãos sinceras

serem a represa onde se estilhaçam 

as balas perdidas. 

#2026

[Crónicas do vírus, DXCVIII]

 

Da descida aos infernos

à reabilitação da casta,

o intervalo da desmemória. 

30.5.21

Estatutário

Navegas nesta cordilheira

se não te falharem 

os ouvidos-intempérie.

 

Se endossasses o referendo

não se te saberia o sal sem sono;

sabes

ao menos

que não te empenhas às marés sem rosto

nem naufragas nas sílabas proteladas. 

 

Teu é o domínio

que se empareda no astrolábio banal,

a promessa colossal 

aos dias sem nome.

#2025

[Crónicas do vírus, DXCVII]

 

Do nacionalismo às avessas:

o dia 

em que os forasteiros

puderam fazer 

o que nos é proibido.

29.5.21

Prodigiosa loucura

Os loucos

não são achados

na loucura maior

que os transcende.

Desde a inauguração dos tempos

maior é a demência

dos que não estão inventariados

nos registos civis

e em consultórios de peritos.

No tântrico teatro

que é a loucura imorredoira, 

o nome próprio do planeta,

que se descontasse a loucura banal

da contabilidade inexistente

da loucura geral.

Essa

é a prodigiosa loucura

sem sentença. 

#2024

[Crónicas do vírus, DXCVI]

 

O beijo da praia:

outra espera

à espera de ser saldada.

28.5.21

Tabela das marés

Não chegava.

Não chegava a maré

depois da tarde.

Os marinheiros falavam.

Diziam palavras sem geografia.

Eles só sabem do mar

e o mar não se traduz

pelos ventos da diferença.

A geografia

era um vocabulário frugal.

Deste miradouro

não se pressente a decadência.

Já trago o arnês

para não ser a presa seguinte

no mar tempestuoso da decadência.

A próxima maré

é minha.

#2023

[Crónicas do vírus, DXCV]

 

Malefícios da peste em extinção:

os velhos bárbaros

voltam a semear incivilização.


27.5.21

A manhã

Escolhi a manhã.

Neófita

traduz a luz iniciática

ainda sem o jugo 

da poluição.

O sabre das multidões

não frequenta a manhã.

 

(Podia também alvitrar

a bruma espapaçada

o orvalho que desapega do musgo

o rio lânguido que estacionou

à espera da sua foz

os poucos rostos, estremunhados,

o punhal que se abate

sobre o desamparo da noite

que é sempre demorada,

até no solstício do Verão).

 

Escolhi a manhã.

Antecipo as almas amestradas

irrompendo nas artérias ocupadas

arrastando-se até a manhã perder gabarito.

 

Não deito a perder

uma única manhã.

#2022

[Crónicas do vírus, DXCIV]

 

Enfim,

um bouquet de flores

na embocadura do labirinto.

26.5.21

Escrivão

O rapaz 

montado furiosamente na guitarra

desenha os contornos da música

e descarrega o seu corpo franzino

na corrente que dava alimento ao som

numa catarse vertida do avesso. 

 

Fiquei a pensar

se o rapaz fosse das letras

que poeta seria.

#2021

[Crónicas do vírus, DXCIII]

 

Ainda falta

a vacina que nos salva

de nós mesmos.

25.5.21

Rodízio de metáforas

Era a torre de Babel,

dizia-se em surdina;

mas talvez fosse

(após cuidadosa inspeção)

a caixa de Pandora.

 

Ninguém desceu a escadaria

para abrir a porta.

 

Seria 

– possivelmente – 

medo

(ou apenas

a aritmética da exceção).

A noite

A noite é a besta negra que descoloniza a lucidez. 

À noite, as luzes bruxuleantes são sentinelas. 

As luzes ímanes, tatuadas na pele, desenham a coreografia dos opostos. 

As luzes lisérgicas desocupam o sono de um mapa amarrotado. 

As luzes são desfiladeiros habitados por fantasmas deserdados.

Por fantasmas que traduzem a liberdade para um idioma com deslimites.

A noite invernal atravessa as ruas e o corpo quente que a desmente. 

É a noite que se deita nas mãos artesãs, a espoliar o medo. 

A noite contumaz, verbo ou equação, morada do sortilégio.

A noite que espera pela manhã.

A noite que desafia a manhã, desembainhando a espada que roça o abismo.

A noite, que enquanto não é manhã mergulha na vertigem dos sentidos.

A noite que tutela a lua caiada de estrofes.

A noite, penhor da solidão.

Miradouro que se atreve a escrever as palavras proibidas.

À boca da noite, um palimpsesto dos rostos imarcescíveis. 

Na noite que é maternidade no estirador de uns olhos diligentes.

Da noite que não devora os corpos. 

#2020

[Crónicas do vírus, DXCII]

 

Acariciamos

o bojo do dia

na inteireza

que nunca fomos.

24.5.21

Antes que seja cedo

No fojo 

por onde fuja

o lobo em metáfora: 

o mel diuturno

chama o algoz

à espera das tornas

da lua. 

Entontecidos

os rapazes 

tiram-se do mar. 

Os velhos

protestam um silêncio. 

O mar não é menor

à espera da maré

entre remoinhos bastardos

que desmaiam na areia. 

Dizem:

o mar 

esqueceu-se do sal;

ou então

o sal exilou-se

nos rapazes estouvados. 

Dizem:

os rapazes

foram o fojo

para o sal entediado. 

E os rapazes 

transfigurados,

cais

das mais temíveis 

tempestades. 

#2019

[Crónicas do vírus, DXCI]

 

Reconciliação,

depois de uma culpa

sem nomes próprios.

23.5.21

#2018

[Crónicas do vírus, DXC]

 

Um toque de Midas,

apenas um toque de Midas,

para a bússola fazer sentido

outra vez.

Dicionário de onomatopeias

Antes se inventasse

um dicionário de onomatopeias;

seria a melhor recomendação

para reunir os garatujos avulsos

da fala pré-histórica.

Um manual de intenções

contra os mundanos mal-entendidos

que entontecem as almas sitiadas. 

22.5.21

#2017

[Crónicas do vírus, DLXXXIX]

 

A extravagância não é o limite.

É o selo da desmemória.

21.5.21

#2016

[Crónicas do vírus, DLXXXVIII]

 

Não se colhe o lamento

na sementeira do passado.

20.5.21

#2015

[Crónicas do vírus, DLXXXVII]

 

Fomos renúncia,

contra as probabilidades.

19.5.21

Relógio solar

O objeto cortante

antecipa a véspera da fala.

Se ao púlpito chegassem as preces

seria mínimo o dano

e os provectos eremitas não cuidariam

da hermética gramática sem conhecedores.

Os tribunos esqueceram-se da forma

e nem aos tribunais recorrem,

suspeitos de serem réus em primeira linha.

Não se sabe 

quem tem o objeto cortante na mão.

“Agora já não é como dantes”

 

(a ladainha que percute a pele gasta

dos arcanos que vivem aprisionados

num tempo esquecido):

 

os detetives estão todos reformados.

#2014

[Crónicas do vírus, DLXXXVI]

 

Já não demora

para sermos

protagonistas do futuro.

18.5.21

Vulto

Quem de nós

já não partilhou rua

com um tomador de vidas?

 

Quem de nós

ainda não tornou nua

a vontade de matar?

#2013

[Crónicas do vírus, DLXXXV]

 

A fronteira

quase a ser devolvida

ao seu lugar.

17.5.21

Alicerce

Os ossos gastos

conspiram a rebelião.

Dentro de um lago baço

inventam as palavras ruínas

tornam-se fluentes no verbo gasto. 

As lâminas de um fogo inesperado

ajudam as rimas:

não são os trunfos na mão

que ajeitam o tabuleiro;

em vez das cores de cor

a boca estatística desgasta a estultícia

e conserva de cor as baias das cores. 

Amanhã 

reservo o desmedo

antes que seja cedo.

#2012

[Crónicas do vírus, DLXXXIV]

 

Nunca deixámos de ser 

uma promessa adiada.

16.5.21

Fraqueza

Não sei dos números em barda

os que falam em vez do silêncio

em ondas sem cessar

que ajeitam o dia.

Não combino farsas

com os circenses que se pavoneiam

deixo para depois as cortinas com enfeites

e parto do cais para chegar a casa.

Não abandono as ideias sem patrono

nem deixo que sejam órfãs 

as palavras arrancadas aos escândalos.

Não fujo do âmbar das palavras

nem que um cerco sem remédio

tome conta do peito.

Aos sinos sem fala

não conto o desenho do amanhã.

Prefiro que sejam os instantes

a caiar as paredes vetustas.

#2011

[Crónicas do vírus, DLXXXIII]

 

Apostamos

em dois mil e vinte e dois.