30.9.21

Os versos pagãos

Os versos pagãos 

não têm escolta.

As suas mãos almiscaradas

não se arruínam na doca da noite.

Acotovelam-se os disfarçados

como se a sua dança fosse ardil.

Os versos pagãos

escondem-se no crepúsculo.

Ditam as sílabas

para o túmulo onde descansam

as vozes mutiladas.

Não precisam de regresso:

a eternidade da véspera

cuidou de os emoldurar 

nas árvores marmoreadas.

Os versos pagãos

são a voz flagrante

conjeturada no ermo onde falam 

os silêncios.

#2156

[Crónicas do vírus, DCCXXVIII]

 

Legados da peste (44):

as estátuas que faltam,

ou a mnemónica 

dos tributos em débito.

29.9.21

Destilaria

Não espero grande colheita do saque. 

A matéria vã recusa a solidão. 

Entre a teimosia do nanismo 

e o precipício dos néones

os nenúfares inertes não se escondem 

nas sombras. 

Os meticulosos dizeres prostituem-se 

por quem os treslê. 

Não é a noção de desperdício 

que avança a caução. 

Já tive a minha dose de embaixadores. 

Não vou pelas poses estadistas

nem sufrago os mentores de apocalipses. 

Sou de uma alcateia sem nome

a marca registada sem registo

e ao tira-teimas entrego 

as teimas impertinentes

só à espera de pronunciamento de culpa. 

Disso não espero pelo juízo alheio. 

#2155

[Crónicas do vírus, DCCXXVII]

 

Legados da peste (43):

dedicatória aos ausentes

na anamnese dos tempos.

28.9.21

Úbere

Fiz desta ametista

um dócil obelisco

não por falta de rima

mas por ausentes armas. 

Desavencei-me da matança

não por armas ausentes

mas porque acabara de ser coroado

com a ametista,

o meu o obelisco.

Se perguntarem

direi

em intervalo das empreitadas

que não fugi dos medos;

apenas fui eu

estuário por dentro de um delta

dádiva de um esbracejar descontínuo

na alma emparedada pelos lamentos furtivos

escândalo por vezes, 

talvez,

um arroubo fruindo do caudal da natureza

sempre, sempre,

na recusa de um nada. 

#2154

[Crónicas do vírus, DCCXXVI]

 

Legados da peste (42):

seremos o futuro 

arroteado 

pela semente de outrora?

27.9.21

Sou deste basalto que arrefeceu

Um tumulto

convoca a lava

e as horas ficam 

sem apeadeiro. 

Os tontos

levam de vencida

o jogo onde se jogam desejos 

– são embaixadores da descautela. 

 

No íman da manhã

por cima da chuva destemperada

os olhos combustíveis 

são devolvidos à letargia:

não combatem flagelos

nem acreditam em incendiários

na mais funda desilusão

dos outrora dedicados seguidores das bitolas. 

 

Já não há lugares ideais

nem idiotas úteis.

Sobre o significado de destino

Sei

que o destino

não é uma doença

calculada por deuses

sem paradeiro. 

 

O destino

é o oráculo do passado

sem as dioptrias dos prescientes,

dos eunucos à medida dos desprazeres.

#2153

[Crónicas do vírus, DCCXXV]

 

Legados da peste (41):

os dados estão lançados

e o futuro 

não se faz esperar.

26.9.21

Já não há O’Neills na publicidade

Do osso fundo

não franqueia

a publicidade.

Os artistas inválidos

não chegam

às ordens do pesar.

Se não fôssemos destratados

como imberbes impensantes

e a verve não seguisse a puerilidade

um módico seria recolhido

desta que é uma árvore 

desmatada.

#2152

[Crónicas do vírus, DCCXXIV]

 

Legados da peste (40):

ainda falta o inventário

de todas as cicatrizes

das batalhas travadas.

25.9.21

Democracia sem filtros

(Em dia de “reflexão” legalmente obrigatória em véspera de eleições)

 

São as desarmas

que têm voz

no espaço horizontal

que se atravessa

entre a matérias diferentes dos dias. 

A boca arranca um verbo ao silêncio. 

Joga-o

contra os mastins disfarçados

que colonizam a tirania

também ela um ardil. 

No gotejar noturno da lua

enquistam os boémios a matéria sanguínea

como um dia fosse feito de noite

e as arcadas sinónimo de desarrelias.

O resto

fica conta dos acasos

que em descasos se armadilham

à espera da alvorada baça

e dos corpos ainda mal acordados,

estremunhados no sarcasmo da rotina. 

Os olhos não vêm nada. 

Mergulham 

no niilismo da alma que os traduzem. 

Se as migalhas varridas das vésperas

forem a poluição de uma alquimia 

tirem-se à sorte as lotarias 

joguem-se os corpos 

contra a ebulição dos dias marasmos

e de um golpe só

vindimem-se os idiomas que se fundem

nas bocas várias que se entrecruzam. 

Os horários do futuro

são um segredo que todos sabem. 

Não há voto mais democrático. 

#2151

[Crónicas do vírus, DCCXXIII]

 

Legados da peste (39):

saímos das ruínas

averbadas pelo medo.

24.9.21

Certidão de amador

Olho 

por dentro do olhar

as cordilheiras amparadas no corpo

e arrumo a pele glacial no corrimão do dia. 

Olho

para dentro do olhar

a macieza dos livros fartos

e da foz onde as palavras se fundem no fogo

trago as cortinas desalojadas

as janelas pendendo sobre a matriz da manhã. 

Olho

depois do olhar

e encerro nas arestas gastas

o aprumo do passado. 

Olho 

por cima do olhar

por não ciciar segredos ao vento de atalaia

e caminho a esmo

sem temer os vultos perenes que esbracejam

no lugar mais ermo de todos. 

#2150

[Crónicas do vírus, DCCXXII]

 

Legados da peste (38):

tudo não foi 

mais do que um parêntesis.

23.9.21

Bula

O verbo

adverso 

no verso

do advérbio;

a tempestade perfeita

para o poema desastrado.

#2149

[Crónicas do vírus, DCCXXI]

 

Legados da peste (37):

nunca houve 

sede tão grande de viver 

como esta.

22.9.21

Ode ao Outono

Dizem do Outono que é feito de folhas caducas. As folhas não caducam. Beijam o chão em frente do tempo que se enxuga à espera de uma Primavera. O Outono é a clepsidra que bebe nas águas tumultuosas das primeiras chuvas. Não é decadência. É jura de um tempo depois, a safra de um exílio necessário.  E antes que adulterem a ode ao Outono somando-lhe um f, que conste, para os devidos efeitos, que deste poema foi lavrado registo que tutela a sua exclusiva posse.

#2148

[Crónicas do vírus, DCCXX]

 

Legados da peste (36):

caucionemos

com toda a propriedade

que este é o Outono 

do nosso contentamento.

21.9.21

Meridiano do Canidelo

Sabes?

O escuro ensina a ler

como as algas sobem ao mar

e acabam como punição do areal

ali despojadas

cadáveres.

 

Sabes?

O exame de código

não é pera doce,

segredavas

como se fosse preciso 

guardar segredo das obviedades.

 

Sabes?

Guardamo-nos em arraiais caóticos

para nos pormos a cobro

do averno.

 

Sabes?

Os aventais não escondem a nudez

apenas a puerilidade que se cozinha

em degraus que são o espelho

da ingenuidade dos anciãos.

 

Sabes?

Às perguntas de retórica

dizemos sempre

“sim, sei”,

mesmos nos casos

em que somos profetas do iletrismo.

#2147

[Crónicas do vírus, DCCXIX]

 

Legados da peste (35):

sem a voz do medo

o verbo completo.

20.9.21

Filologia

Do idioma lacerado

com vírgulas a destempo

e palavras torturadas

o mosto fora de prazo

e um logro banal. 

 

A semiótica desaprende-se

no lagar da língua que se torna viva

deixando a sua antecessora

no lugar do morto. 

 

De tanto usurpar a gramática;

a interrogação indeclinável:

será da propensão para a anarquia

ou da tentação da ignorância?

 

Depois das marés negras

que se acometem sobre o idioma 

o desemprego está fadado

aos esculápios do idioma.

#2146

[Crónicas do vírus, DCCXVIII]

 

Legados da peste (34):

indisfarçáveis,

como dantes,

sem o freio do açaime.

#2145

[Crónicas do vírus, DCCXVII]

 

Legados da peste (33):

antes que sejamos

os nossos piores adversários

um novo código de conduta.

19.9.21

Ao menos as árvores não engravidam

Percussão:

um cheirinho de idílio

não fossem os lírios definhar

e as sacerdotisas das virtudes

lavadas em lágrimas de unto

demorar-se nas portarias dos prédios.

Os gatos atiram unhas ao logradouro

e são as aves lacustres que aprendem

nos moinhos encantados

as doses necessárias para a moagem.

Antes fossem operários do pão

a chamar pelo rubicão

mas não estava vivalma por perto

e a ocasião ficou adiada.

A noite parida em luares

não desistiu dos lagares:

ao menos

as árvores não engravidam.

 

(E toda a gente 

foi descansada para casa.)

#2144

[Crónicas do vírus, DCCXVI]

 

Legados da peste (32):

o mundo meândrico

disse

que não somos

a árvore centrípeta.

18.9.21

#2143

[Crónicas do vírus, DCCXV]

 

Legados da peste (31):

conseguiremos

deixar de ser

o ser latente.

17.9.21

Quem sabe o que é o grunge?

Mordomias 

– diziam

antes que a noite desfalecesse. 

Vultos intrusos

tornavam-se edis sem procuração

e os sonhos desmaiavam

em cadeiras que ardiam

ateadas por tochas contumazes. 

Mordomias, não 

– que os sonhos 

não se transfiguram em pesadelos 

no proveito que se acalenta

nas almas tão avarentas. 

#2142

[Crónicas do vírus, DCCXIV]

 

Talvez,

na volta do correio,

o beijo envenenado

do bumerangue.

16.9.21

Veludo

As estradas

escondem as veias

dos síndicos que as habitam. 

Oxalá

houvesse artesãos

pagos para serem escafandros

das estrofes de um dia sábio. 

As vozes

aumentam o tamanho das bocas

jogam-se contra a tirania do silêncio

em marés-vivas que sentenciam os cabos belicosos. 

Tomara

todos os reclusos da alma

soubessem do sal das estradas

o sortilégio que se insinua na lava das veias

deixando pendidos

os esgares herdados da angústia. 

As apostas 

adornam o passado sem paradeiro

na exata medida 

do entardecer que se deita sobre o olhar

em sucessivas ondas que esbracejam

a virtude de um mar atlanticamente enfurecido.