28.6.16

Do estirador, uma janela

Uma bagatela
três doses de chuva no alpendre
e os cães lá fora, tresloucados.
O ministro enfatuado
mais o deputado da oposição
contorcendo-se com intolerância.
O sol sem dó
limpando os vestígios da chuva extemporânea.
Uma liceal a mastigar pastilha elástica
em ofensa à estética.
As sumidades catedráticas
ostentam o garbo e o pundonor
à espera de genuflexão a condizer.
O escritor desespera
no fulgor da desinspiração
tomado pela apoplexia da hibernação.
Da sua toca
alcoviteiros avarentos
(na avareza do seu iletrismo)
farejam os dejetos da sociedade bem-posta.
No altar engalanado
o sacerdote persigna-se como prefácio
da confissão dos desvarios carnais.
O rio aborda o cais
pressente o musgo húmido, que não toca.
As mãos suadas beijam o trono arruinado
sem saberem
que de ruínas se trata.
Da janela do elétrico
ao passo do rio que desliza com vagar
a velha cansada mete memórias em dia.
O pescador nota
e anota em caderno de pensamentos avulsos.
O rio não se cansa
nem quando o entardecer insinua o repouso
e a noite madraça rompe com a intrepidez
dos sentidos.
Há horas
que o pardal espera por migalhas
sem saber que a esplanada está para obras.
Há horas
que o mendigo amputado espera
espera que alguém o venha visitar
com esmola para uma sopa diária.
Uma bagatela que seja
no soporífero dançar dos olhos amestrados
só para a caridade não ser vã
e ele não dormitar com o estômago encostado
às costas.
Oxalá os quadros do tempo
não fossem hinos realistas
que desassossegam o sono inteiro.
Oxalá não houvesse melancolia
e solidão
e guerras espúrias
e pobreza
e ingratidão
e desonestidade
e mentira
e dissimulação
e tudo o resto que não quadra
com a idílica paisagem de um mundo
(ideal).
Oxalá.
Mas não somos feitos de oxalás.
Não somos tutores da fina faiança
que entroniza o amanhã com ouro puro.
Bebemos o cálice com o que há
e damos a beber na inexpressiva maré
de onde aprouver fruto a recolher.

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