[Crónicas do vírus, CDXXIII]
Dois mil e vinte,
game over?
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Do lado certo
a montanha desenha-se na luz.
Rasgos de crueldade
na tribuna de um rebanho
(qual será a primeira rês
a deixar de contar
no inventário dos vivos?)
Amortecem a urze sob os cascos
com o mais alto patrocínio
do cão tutelar.
A neve arrancada ao chão
dissimula-se
nos ventres opados
como se fossem vitaminas órfãs
só à espera da confirmação do algoz.
Será rubra
a neve ensarilhada
sob o jugo do punhal severo.
Será assim tingida
a abundante água
vertida pela serra.
A narrativa congemina-se:
não é crueldade
é o oximoro
da beleza serrana.
O bolo-rei
tem má fama.
As rabanadas
têm má fama.
Os sonhos e as filhoses,
também têm má fama.
As famílias
que são os seus próprios anticorpos
têm má fama.
A febre do consumo
que desmede afetos
ou prova favores
tem má fama.
O beatismo da época
tem má fama.
As juras de metamorfose
(apalavradas na ressaca da época)
têm má fama.
As árvores ornamentadas
têm má fama.
As ruas iluminadas
têm má fama.
O natal
não tem culpa nenhuma.
Havia um número
(escondido)
que tinha o rosto
da tolerância.
Mantive-o em segredo
– e não foi por gula
ou egoístico bem-perder:
queria que esse número
fosse da minha lavra
sem o avesso da linguagem cifrada
nem a pretensão desilustre
dos marçanos sem roda.
Um número,
privativo:
diamante desencontrado
na floresta de números
nem primo nem esteta
nem estulto nem primacial.
Só um número anunciado,
mas sem revelação,
espaço sem limites
dicionário à espera de apeadeiro;
sangue que se encontra
por dentro de mim.
Pagaste por todos os crimes;
e quanto pagaste?
Seriam os soldos avençados
Em privação do sol desimpedido
paga suficiente
para tão corrosivos labéus?
Em tua defesa:
a mirifica idade meandra
bálsamo para a estroinice
o lagar onde fermentava
a loucura imanente.
Foras servil
da tua própria crueldade.
Lá fora
os de memória acesa
protestavam:
nem todas as prisões chegam
para a paga de que és devedor.
Aceitaste.
De ti
ninguém saberia o som
do rogo de comiseração.
Sabias
melhor do que ninguém
que o caudal de crueldades
e o teu incorrigível orgulho interior
empatavam a súplica.
Era com o bolor
das contracapas:
o vigor dissolvido
no apogeu do a.a.
(antes do amarelecimento)
enquanto esperava
por decadência maior.
A lombada podia
disfarçar;
por dentro
embainhado o gasto
e os ossos doídos
no sarau da fadiga diuturna,
devolvia-me ao nada.
Isto das salgas
onde se desconta o tempo
devia ser um conto:
Nnarrativa meã
ou um disfarce
atirado ao rosto
da senescência,
tão cheia de audácia.
Não sejam modestos
os medíocres.
O seu lampejo
é a sindérese da poluição
o opulento arroto
que maltrata uma estrofe.
Mas que continuem,
fulgurantes,
a ser espécie protegida:
que seria dos pontos cardeais
se a antítese fosse dissolvida?
Nadamos no desterro
à altura mais rasa
do que se pode conceber.
As colheres dançam
nos filhos das cortinas
e vê-se
que do encardido que levam
as cortinas estão atrasadas
para a lavandaria.
Por vezes
do areópago mais elevado
sentencia-se:
“como é possível ter aquelas ideias?”
E eu,
que no segredo do meu íntimo
desterro tão atávicas ideias,
apetece-me
(se caísse no logro dos pesporrentes
e como eles fosse tão pesporrente)
destinar
também ao desterro
a intolerância dos intolerantes
com os intolerantes.
[Crónicas do vírus, CDIX]
Proibiram a passagem de ano:
eis os termos definitivos
da conspiração contra os boémios.
[Crónicas do vírus, CDVIII]
Proibiram a passagem de ano.
Há quem queira
estender a validade
do ano pestífero.
Pressinto
o lago onde se banha
a coragem.
Os tenentes molham-se
ávidos
certos da produção
de uma quimera.
Não intuem a farsa:
um lago
é composto
apenas
por água.
Atraso o relógio
trespassado pela ilusão
só para apanhar a Perseide fulgurante
que nem parou no apeadeiro.
Atraso o relógio
conjurado pelo fingimento
só para embarcar nos braços do vento
que já encomendou o adeus.
Atraso o relógio
embotado pela errância
só para engastar o filão do passado
que foi vertido numa elegia.
Trago a candeia ao peito
oh!
fazenda minha em vez de sangue
sem sombra da quimera suplicada
apenas o desterro
onde parece que já não sou
onde perecem os fantasmas aviltados.
Cubro com os olhos,
sentinela da noite fugitiva,
as flores adormecidas.
Espero.
Espero que seja madrugada
e os olhos desembaciem a manhã
e aos teus pés me despoje
em toda a nudez impura
réu de um luar qualquer
à espera
à espera da tua mão
e de um lugar.
Vejo um piano
sozinho.
Um piano
à espera de mãos
e eu que trago uma candeia ao peito
condenado ao silêncio
sussurro a música que não sei compor.
Pois no desterro
só há a mudez das montanhas frias
o penhor dos medos desimpedidos
os terríveis monstros que encarvoam o mar.
Mas o piano
espera pelo luar
em forma de sortilégio
e espera
por umas mãos sem corpo
as pétalas
desassombram as puras notas musicais
até que tudo seja
a síntese da música
nas esperas alinhavadas pela manhã boreal
e ao pequeno-almoço
as madressilvas perfumem o quarto.
Voz a voz
o murmúrio
com a lucidez dos olhos falantes.
Empenho tudo:
não quero nada
a não ser a nudez de mim
escondida
a não ser de ti.
Obra feita,
dizia
enquanto o rosto
se tingia de vaidade.
Ninguém
era capaz de inventariar a obra
e de nela traduzir
utilidade.
Obra feita,
dizia,
mas apenas nas suas
elucubrações.
Não compro
o remorso
a navalha arestada
desembaraça o abismo
clientelar.
Não adorno
a epiderme
o magma circunstancial
devolve a água
ecuménica.
Não desconfio
do estuário
o desencontro pueril
encomenda a estrofe
promitente.
Não sublinho
o estudante
a profecia órfã
confirma a impureza
fortuita.
A instauração dos desmodos
não se afivela na transgressão
onde deixo de saber da mão certa
e, rebeldes, as palavras habitam
diferentes lugares.
Podia reinventar a pontuação
mas não é apetite que me dê;
deixo ao sufrágio sem nomes certos:
a vigilância sem ordem.
Sei
de viva voz
(a minha, modesta)
que no bairro alto
habitam as páginas desamestradas
os lobos escondidos do dia
poetas sem armadura
nem segredos.
Povoam o mais alto bairro
em marejados pregões
despindo a camisa mesmo sendo inverno
chamando um novembro quimérico
– ou então
deitando-se
ao implacável escrutínio das massas
enjeitados
como amantes da loucura,
irremédios,
marinando no fino recorte do entardecer.
Povoei
a pedra-angular
contra o centrípeto estilhaçar
das furnas involuntárias.
Pelo meio de tumultos
abracei os olhos às pontes firmadas
dei-me como garantia
às prevenções contra os lodos em estima.
Desembaraçado
o véu desagrilhoou o obscurantismo
e trouxe ao estuário
um horizonte interminável
as barcas todas em trânsito afável
e o rio
habitável.
O rádio escanhoa o dia desafeiçoado
as notícias debitadas
soam como palavras vazias
uma gramática arcaica
desusada
e a voz do locutor
como se a de um louco se tratasse
em contínua vozearia,
demencial.
Que as migalhas do pretérito
não sejam desaproveitadas:
Urge
um choque térmico de História
com suas histórias
benevolamente esbofeteadas
nos rostos imberbes
dos néscios.
Hoje
converso no parapeito
onde se abriga
o mito sem rosto.
Desalojo
a incubação da sementeira
os olhos rasos
já assombrados
num limbo sem verbo.
Recebo
na morada da janela
o beijo sem fome
e junto as mãos
no parapeito da moldura,
à espera
de um tempo desembaraçado.
O genuíno garfo
saltando as searas outonais
exara o salvo-conduto
dos fantasiados ascetas
que derruem soldados.
Daqui a dois bocados
adia-se tudo:
as claras em castelo
não aconteceram;
é preciso pedir (outro) favor
aos galináceos.
Nada disto seria assim
se o bolo tivesse sido comprado
já feito,
ou se, sardónicos,
fizéssemos dieta;
mas somos hienas de nós mesmos
e esquecemos.
Na fila do supermercado
uma senhora manca
manca
e passa à frente da fila.
(Destas coisas modernas,
da prioridade para pessoas
com handicaps).
Na fila do supermercado
uma senhora manca
paga as compras
e sai
sem ser manca.
(Os comentários,
impregnados de moralidade,
ficam por conta do leitor.)
[Crónicas do vírus, CCCXCV]
Uma mortalha de suspensão
(ou um ano inteiro
na jaula de um parêntesis).
Matéria-prima:
o azulejo apessoado
por dentro do olhar antecipado,
em estrofe tutelar
do provérbio em deserção.
A voz do xilofone
ouve-se ao longe.
O murmúrio da multidão
também.
As sílabas sobrepõem-se à maresia
em combate terçado sem gente
apenas no sortilégio das palavras:
das palavras que se embebem
no mar demiúrgico.
Umas,
malditas,
aventuram-se
como primas da matéria fulcral;
outras,
mal ditas,
oferecem-se ao ultraje dos ínscios
e constituem-se desperdício,
tumulares.
Os ladrilhos
tocam ao de leve com os dedos
nos olhos extasiados dos forasteiros.
Os nativos,
distraídos,
são os forasteiros
de sua própria cidade.
Não sabem
do paradeiro dos azulejos.
“An educated guess”
combina o sexteto boémio
antes que pudesse ser
binómio.
E não pode ser apenas
“guess”?
Se cair o adjetivo
a “guess”
fica deseducada?
Ecoa um certo património
a balsa que resguarda
tremeluzentes nónios
que afiançam mesuras
um burburinho.
Uma voz escondida
em tom de repreensão
adverte:
os cavalheiros ficam a dever
aos pergaminhos
se não forem corteses;
em remate
(sentenciou a voz fantasma)
empregue-se o “educated”
como complemento de “guess”.
(Antes que os cavalheiros
deixem os pergaminhos em olvido
e trespassem
as portas do lupanar.)
Metaforizava
a levedura extática
sem supor que na escotilha
vegetavam espiões
disfarçados de chefes de cozinha.
Uma voz troou
como se acabasse
com a feição dos minutos
e disse
de mote próprio:
este
é o país
que não tem sobremesas.
As pessoas despacharam a proclamação:
um país que não tem sobremesas
não merece ostentar
à lapela
o nome de país.
Foi quando um eremita,
conhecido citador de poetas
intelectual de velha cepa
(sem, contudo,
se lhe conhecer safra própria)
contestou:
um país é como os pais
só que sem o acento tónico.
E quem não conhece pais
que não pedem sobremesa?
Ficou estabelecido
ao cabo de aturadas negociações
que um país está dispensado
de inventariar sobremesas;
ficou registado em ata
que um país
tem direito à dieta.
Não metaforicamente falando.
[Crónicas do vírus, CCCXCII]
Como sabemos
se o pai natal é fidedigno
com as barbas embaciadas
pela máscara?
A próxima guerra
preso ao meu pé esquerdo
um sacrilégio
talvez
aposta cega
no túmulo sem nome.
Amanhecem as sombras tiranas
debruçam-se sobre o corpo
madraço
e em sua meação
atordoam-no.
A próxima guerra,
uma sem exércitos
nem artilharia,
não deixará a saliva intacta.
[Crónicas do vírus, CCCLXXXIII]
A dissimulação
deixou de ser perseguida
pelos que pastoreiam
os bons costumes.
Não é
a erma vindima
o magma furtivo
o emblema da ira
a seráfica encenação.
Não é
o adiamento provisório
as colcheias desamestradas
o vínculo sem furor
os degraus sem destino.
Não é
a compensação sem paradeiro
a eira banal
o verbo defenestrado
o rosto desfardado.
Não é
o tiro avulso
o penhor prometido
a pulsão meteórica
a justaposição de termos.
Não é
o não saber na casa
o não despojar o medo
o não fugir sem delação
o não arrumar as candeias gastas.
Não é
desaproveitar o ontem
reter a lágrima no peito
insultar o próprio nome
legar um nada cheio de tudo.
[Crónicas do vírus, CCCLXXXII]
Tão bem lançados íamos
veio este freio luciferino
trazer o mosto do retrocesso.
Que papel regido
serve ao obstáculo penhor?
As juras avessam o lugar
em servis comendas
que não têm cabimento.
Às manhãs consentidas
devolve-se a argamassa
o solene filamento que atravessa
o sangue apurado.
Se ao menos
a chuva viesse temporã
e as matilhas não angariassem
o medo
a maré seria sementeira
da filigrana avivada nos dedos.
O que sabemos
das entrelinhas:
os nós invisíveis
que azedam a boca
e nós,
seus possíveis hermeneutas,
um vesúvio inteiro
a aguardar por exploração.
O que tiramos
das entrelinhas:
o mosto indecifrável
semântica partida nas vírgulas
como se fosse fratura exposta
e do osso se visse apenas
o gesso.
O que devemos
às entrelinhas:
o cofre forte da alma
o penteado maiêutico da palavra
a recusa do lugar-comum
no lugar reinventado
onde reinventadas
se lobrigam as palavras.
Por dentro
das entrelinhas.