31.12.21

Confirmação

Podia ser 

a fuligem que açaima o mar

a insaciável sede de maresia

ou apenas

o embaraço de ser.

 

Podia ser

um beijo sem cor

a temperar o rosto melancólico

e as temporadas não seriam vãs

no seu improvável presságio.

 

Fossem as palavras castelos sem sombra

e a fala um idioma sem segredos

todos os versos combinariam com a manhã

por fim 

os mastins seriam calados.

 

Sem que fossem promessas à espera

o caudal servia de paramento para as juras

e de véspera em véspera

Aas mãos incansáveis seriam mestras do dia.

 

Até que

enfim

o céu consumido pelo ocaso

já não fosse um segredo sem cofre

e as rimas

fossem o lugar possível da fala.

#2254

[Crónicas do vírus, DCCCXXVI]

 

Legados da peste (142):

somos de porcelana,

reativos.

#2253

[Crónicas do vírus, DCCCXXV]

 

Legados da peste (141):

uma tela

tão impressionista

que é tatuagem imorredoira.

30.12.21

Sobre a pequenez dos Homens

A lava rejeita a pele

como tatuagem.

Deixa para a erupção

o magma tangencial

que sobe aos olhos lívidos

antes que a tarde suba 

num frémito peregrino.

As casas são feitas de papel 

– diz-se por aí

como se o pranto não tivesse

lágrimas.

Somos irrisórios

e disso

é que podemos ter a certeza.

#2252

[Crónicas do vírus, DCCCXXIV]

 

Legados da peste (140):

os muitos véus 

sobrepostos

num labirinto sem mapa.

29.12.21

#2251

[Crónicas do vírus, DCCCXXIII]

 

Legados da peste (139):

a porta dos fundos

outra vez

(quando 

já tinham jurado o Éden

precipitadamente).

28.12.21

Se as pessoas conhecessem os gatos

Se as pessoas conhecessem os gatos

não diriam

“caga nisso”,

como quem diz

não dês importância ao sucedido

ele faz-se esquecer por si mesmo. 

Se as pessoas conhecessem os gatos

saberiam

que os gatos escondem o que cagam

para não deixarem vestígios

à sua passagem.

#2250

[Crónicas do vírus, DCCCXXII]

 

Legados da peste (138):

timoneiros

que não passam de regentes

e regentes

que não têm cepa

de timoneiros.

27.12.21

Eternidade

Não se é novo

na véspera da eternidade.

 

Uma centelha foge do céu.

Desenha uma estrada de sonhos

e nós, 

que novos somos,

anexamos o orvalho pendido das uvas

por sabermos

que é o elixir alojado na pele sem regras.

 

Nos socalcos a poente

o refrão entoa desde o vale profundo.

Não somos nós a profanar

o austero relógio que encomenda as almas;

deixamo-nos

por conta da vontade

arqueada na frontaria desimpedida

onde se assina o livro de honra.

 

Não se é novo 

na véspera da eternidade;

E o que é a eternidade

se não uma servidão?

#2249

[Crónicas do vírus, DCCCXXI]

 

Legados da peste (137):

tivemos direito

à (todavia dispensável) quota

de homens providenciais.

26.12.21

#2248

[Crónicas do vírus, DCCCXX]

 

Legados da peste (136):

porque será 

que disfarce

quase rima 

com farsa?

25.12.21

#2247

[Crónicas do vírus, DCCCXIX]

 

Legados da peste (135):

quando nos for devolvido

o que somos 

– ou: se nos for devolvido 

o que fomos?

24.12.21

#2246

[Crónicas do vírus, DCCCXVIII]

 

Legados da peste (134):

nunca 

tão invadidos

foram os narizes

(precondição do Natal).

23.12.21

Vitamina

Seria enxovalho da alma

Aa cobrança à revelia

enquanto os pregões dos eruditos

subiam no estuário das desideias.

O piano gasto era testemunha.

Sem as nuvens como página

as mãos trémulas arriscavam as palavras

à espera de doutrina válida

à espera

da caução sem remorso

como se fosse a antítese da angústia.

Não eram as chuvas de inverno

que desarranjavam o sangue;

a chama entediada jogava-se nos quarteis

os lugares perdidos que não sabiam de chão

nem cortejavam o mapa das almas.

Como não houve enxovalho

as almas não desistiram.

Hoje

falam ao ouvido dos deuses

e ensinam-lhes

em bom idioma

o povoamento das almas.

#2245

[Crónicas do vírus, DCCCXVII]

 

Legados da peste (133):

há máscaras açaimes;

e máscaras 

bandeiras da estética.

22.12.21

Ponte cedular

A ponte

maior 

do que o rio.

 

O estuário

acomoda-se.

É o fotógrafo

da paisagem

adereçada com a ponte.

 

A ponte

subleva-se

contra as fronteiras.

 

É poliglota das almas.

Casamenteira

(por que não admiti-lo?).

 

À ponte

lembra-se 

a serventia

quando reparações

a atrasam.

#2244

[Crónicas do vírus, DCCCXVI]

 

Legados da peste (132):

se em vez de atalhos

nos dessem

sol sem giestas

e poemas no adro.

21.12.21

Não contem às criancinhas sob pena de serem acusados de malvadez

No Natal

há circo

 

Há circo

no Natal.

#2243

[Crónicas do vírus, DCCCXV]

 

Legados da peste (131):

a cada curva da peste

um pontapé nos olhos,

cortesia dos regentes. 

#2242

[Crónicas do vírus, DCCCXIV]

 

Legados da peste (130):

de adiamento em concessão

transportados 

pelo pérfido buço da peste.

20.12.21

Novecentos e tal

A boca sem tamanho

maior do que a boca de um cão faminto

estipula a chuva tardia

no arranjo delicodoce das árvores matinais. 

Serve de estuário aos impropérios

diletante juramento das presas de infâmias

ou apenas um enclave

onde se situam as manhãs sem paradeiro

sem toponímia que as salve

sem fruição. 

O sangue sincopado mente aos costumes. 

A boca fanfarrona desdiz-se

e ninguém toma conta da mitomania. 

Pudera. 

Os costumes só são bons

se forem useiros no tributo à verdade

por mais que os seus apóstolos

mintam

com os dentes puídos que disfarçam

no impossível esconderijo da boca disforme. 

#2241

[Crónicas do vírus, DCCCXIII]

 

Legados da peste (129):

um vai-e-vem

interminável

a perguntar pela resistência.

19.12.21

#2240

[Crónicas do vírus, DCCCXII]

 

Legados da peste (128):

o enxovalho da desconfiança

é o perjúrio da dignidade.

Moratória

A moratória

espera pela lassidão do tempo.

Não se adiam

se não os coices da alvorada.

Entre as cicatrizes do futuro

e o fingimento do presente

pressente-se

uma máscara descida sobre rostos

amedrontados.

18.12.21

#2239

[Crónicas do vírus, DCCCXI]

 

Legados da peste (127):

o alfabeto grego

nunca foi

tão impopular.

17.12.21

Desportugalidade em curso

Por que será

que Portugal

rima com mal?

#2238

[Crónicas do vírus, DCCCX]

 

Legados da peste (126):

um falso tempo

o falar de um legado.

16.12.21

Deixamos as palavras de fora

Deixamos as palavras de fora

por serem corpos

os seus porta-vozes.

 

Na miríade de janelas

deitamos o olhar 

nas que desembaraçam os mares.

 

Pudessem os silêncios

esboçar o tanto que falam os corpos

e eram poemas os tradutores de loas.

 

Deixamos as palavras de fora

enquanto ciciamos os segredos

de que são procuradores os corpos.

 

De pouco mais linguagem precisamos

a não ser os corpos tutores das coreografias 

em rima com o silêncio.

Tradição

Tiram-se teimas

como se tiram

(eu sei lá)

as nódoas?

#2237

[Crónicas do vírus, DCCCIX]

 

Legados da peste (125):

somos 

o viveiro

do imenso nada

em que nos consumimos.

15.12.21

Candeeiro

A casa sem verbos:

 

desarruma-se o livro centrípeto

enquanto a maresia desenha as nuvens

e um pedinte, absorto, mergulha na nostalgia.

 

(Fosse esse

o seu único sortilégio.)

 

Não são as décadas que falam;

se ao menos as preces fossem pagas

delas diriam as cinzas 

que os amanhãs compensam.

Mas o caudal vaga na curvatura do rosto

sem que todos os peixes sejam extintos

e as mãos se gastem na estreiteza do labirinto.

 

Às vezes volteio os dados

como se soubesse que desse sortilégio

um desenho reinventado 

seria um oráculo remediado.

Não desisto dos medos que acautelam

em rimas desordenadas

a meias com a meação de que me dou

guardando a parte sobrante 

para juros ulteriores.

 

Se os feiticeiros fossem ao mar

quem sabe se a safra seria generosa?

 

(Ou apenas

a medida da incorrigível cobiça

a forca que se perpetra contra os Homens.)

 

Perguntas como esta

são como dádivas anónimas

um corvo vigilante que segue o rasto do sangue

antes que o sangue seja um diadema

e da carne se exponha uma fratura;

o tempo visível não está à mostra.

Cuidamos das armas que recusam a beligerância

e sabemos

em juras sem procurador

que não sobra ninguém no pútrido campo

onde se terçam as guerras.

Ao grama

Quanto 

é o peso

do ânimo leve?

#2236

[Crónicas do vírus, DCCCVIII]

 

Legados da peste (124):

são de pontes

para fugir de precipícios

os futuros públicos concursos.

14.12.21

#2235

[Crónicas do vírus, DCCCVII]

 

Legados da peste (123):

corremos 

atrás de um tempo

que não corre para trás.

13.12.21

Princípio geral da culpa

Se o bode 

é expiatório

é porque tem

as costas largas.

#2234

[Crónicas do vírus, DCCCVI]

 

Legados da peste (122):

não é o avesso

são corpos transfigurados.

12.12.21

#2233

[Crónicas do vírus, DCCCV]

 

Legados da peste (121):

eis a filatelia da época,

um conjunto de borrões

ou um disfarce 

por dentro do disfarce.

11.12.21

#2232

[Crónicas do vírus, DCCCIV]

 

Legados da peste (120):

que olhos míopes

os que trazem a tela

no baço arnês.

10.12.21

Dúvida metódica #3

Os progressistas,

os de forte pendor revolucionário,

abecedários de preconceitos mil

(muito embora se digam embaixadores

do contrário),

comem bolo-rei pelo Natal?

#2231

[Crónicas do vírus, DCCCIII]

 

Legados da peste (119):

a transgressão

já não é sinónimo de rebeldia,

anátema

que fere de morte 

a liberdade.

9.12.21

Sem esteio

O sangue não fala

se não no placo da beligerância

quando, 

pútrido e fora dos corpos,

ostenta a sua inutilidade.

#2230

[Crónicas do vírus, DCCCII]

 

Legados da peste (118):

cada um por si 

– o grau zero da aprendizagem.

8.12.21

Translation issues

Se appointment

é nomeação

disappointment 

não devia ser 

desnomeação? 

#2229

[Crónicas do vírus, DCCCI]

 

Legados da peste (117):

desexemplo,

estes desconcertantes

tempos.

7.12.21

Cemitérios por bibliotecas

No luto

não há um eco de Deus. 

Uma silhueta vermelha

rebelde

cativa os insultos 

– heresia, oh heresia. 

Se houvesse bibliotecas por narrar

seriam olhos sem sono

os que ditavam penhor. 

Se pensar bem

as bibliotecas são sepulturas

onde os mortos se corporizam

imorredoiros.

Os cemitérios deviam dar lugar

a bibliotecas. 

Não ficava pesado 

com o chumbo das sepulturas

o chão assim libertado

e os mortos

todos os mortos

teriam na biblioteca

o seu panteão. 

#2228

[Crónicas do vírus, DCCC]

 

Legados da peste (116):

tentativa e erro

uma e outra vez,

uma coreografia inacabada.

6.12.21

Princípio geral da orografia

Se a montanha

não foi parteira 

de um rato

foi o rato que pariu

a montanha.

 

Ulisses

não nasceu

ontem.

#2227

[Crónicas do vírus, DCCXCIX]

 

Legados da peste (115):

uma emboscada

que sai do esconderijo

e nos atropela, 

outra vez.

5.12.21

#2226

[Crónicas do vírus, DCCXCVIII]

 

Legados da peste (114):

de faiança desbotada,

este ADN adulterado.

4.12.21

Matilha

Um rosto seráfico

de bronze

impede o dedilhar da mentira. 

É como se forças sem face

metessem mais à obra

para derrotar uma tempestade,

convencidas da fortuna da maré. 

O vinho apresenta-se amigo. 

Se ao menos 

os cães não andassem em matilha

os remédios 

embainhados numa nota de rodapé

diriam

em voz apenas murmurada

que não é prémio de monta

saber dos filhos 

como seguidores. 

As mentiras

não se contam aos incrédulos,

de acordo com um advogado

que se diz ter procuração de demónios inúmeros. 

Da noite para o dia

avançam os vultos disfarçados

na contagem válida das mentiras sobrepostas. 

#2225

[Crónicas do vírus, DCCXCVII]

 

Legados da peste (113):

o rosto da peste,

ou uma procuração

da sinédoque da beligerância.

 

3.12.21

#2224

[Crónicas do vírus, DCCXCVI]

 

Legados da peste (112):

servidos 

num caudal tumultuoso

como se não fosse nossa

a vontade.

2.12.21

Jugo

Daí a lanterna

no labirinto do crepúsculo

bússola, talvez, 

ou dicionário

contra os vultos baços

que instruem a cobiça. 

#2223

[Crónicas do vírus, DCCXCV]

 

Legados da peste (111):

só os olhos

falam sorrisos.

1.12.21

Paredes-meias

Fala-se de vileza

e os olhos amedrontam-se

no estertor do sangue embaciado.

 

Fala-se de apatia

e as mãos ensanguentam-se

no fiorde do medo tardio.

 

Fala-se de remédios

e o corpo inteiro agasalha-se

nas luvas do tempo sem medida.

#2222

[Crónicas do vírus, DCCXCIV]

 

Legados da peste (110):

somos 

um estaleiro duradouro

à espera 

da beligerância sem rosto.

30.11.21

#2221

[Crónicas do vírus, DCCXCIII]

 

Legados da peste (109):

o medo 

não se paga

com a tença do abismo.

29.11.21

Cheque em branco

Era sem saber da lareira

que o Inverno se acomodava

entre os poros cansados 

e as preces não atendidas 

dos seus inimigos. 

Se ao exílio comparecessem

os arrojados embaixadores da fecundidade

prover-se-iam de toda a carne a jeito,

a vantagem não artificial na boca do desmedo

rindo, gulosamente, 

contra os padrões. 

Não sabendo do exílio

não se sabia do seu paradeiro

a loucura espalhada pelos átomos de todo o chão

chamando pelos fugitivos desamparados

seduzindo-os com a armadilha do fingimento. 

E eles

já não sabiam

se era de exílio que cuidavam apascentar

ou se era apenas o idioma estilhaçado. 

A fábrica ao longe,

marcando 

o horizonte que separa do desconhecido,

moderava as sílabas 

que medravam das bocas famintas. 

Não era o túmulo onde, 

serenos,

druidas esquecidos 

povoavam a errática condição. 

Os vultos não consentiam a identificação. 

Ninguém anda pela rua

a perguntar os nomes.

#2220

[Crónicas do vírus, DCCXCII]

 

Legados da peste (108):

não fosse errática a peste

maus não seriam

os ofícios dos regentes

(segundo o estalão benevolente).

28.11.21

#2219

[Crónicas do vírus, DCCXCI]

 

Legados da peste (107):

pandemia-pandemónio

um leve travo

a manicómio.

27.11.21

Chão de sangue feito

Os nomes não eram surdos. 

Plantados contra as ervas daninhas

cresciam pelo mosto do orvalho

desmentindo os oráculos sombrios. 

De cada vez que vinham à boca

eram resgatados ao desaparecimento

e ficavam a adejar sobre a impossibilidade

como se fossem elixires à mão

irrecusáveis convites para ladrões de almas. 

Na contingência da estrada sem noite

marcávamos os olhos com areias vivas

e sabíamos

que um destes dias os frutos colhidos

dariam conta da nossa safra. 

Até lá

jogávamos os nomes contra os estilhaços do dia

amparados pelas mãos invioláveis

e pelo verbo 

que só as nossas bocas sabiam entoar.

#2218

[Crónicas do vírus, DCCXC]

 

Legados da peste (106):

a peste terça as garras

e espreita 

com seu insidioso estar.

26.11.21

Resignação

Um tempo perdido

arrancado ao céu embaciado

jura que não será repetido.

 

Os tiranos sem punição

com a bênção de deuses ínvios

mastigam almas sem guarida.

 

Tiram à sorte a sua cautela

súbditos sem fala

enquanto olham, passivos, o devir.

#2217

[Crónicas do vírus, DCCLXXXIX]

 

Legados da peste (105):

um passo atrás

serve para 

depois

dois à frente?

#2216

[Crónicas do vírus, DCCLXXXVIII]

 

Legados da peste (104):

há sempre tempo

para dar um passo atrás.

25.11.21

Beligerância contra o silêncio

Não há mudez por antecipar. 

É o Evereste de todos os dias

a fala imperativa

o estorvo derradeiro 

à solidão. 

Não se conjugam verbos

no nevoeiro que tudo embacia:

contadas as sílabas 

com o vagar da indolência

sobra um tudo imenso

à conta da narração. 

A fala fica

então

à espera da comenda

antes que o sangue se cale.

#2215

[Crónicas do vírus, DCCLXXXVII]

 

Legados da peste (103):

afinal

já não somos

cidadela.

24.11.21

Novembro tardio

Lá fora

novembro tardio. 

De uma árvore à espera da nudez

o outono repara

no grasnar de uma ave. 

Já anoitece

a uma hora gentil no Verão. 

Não se enlouquece

nas cortinas desamparadas 

que são a estiva do dia. 

Seja o isco da temporada invernal

a hibernação fingida no temor das tempestades;

tanta embriaguez dos elementos

joga-se contra a pele impreparada

e as varandas medem a estultícia dos homens. 

Não sei da torre de Babel. 

Às tantas

anda perdida no estômago de um labirinto

e as vozes que emudecem

podiam ser portadoras de tanta tinta;

mas os vultos 

querem ser perenes

ornamentar os sonhos

esperar 

pelas preces ditadas por combinações improváveis

enquanto os peixes fogem do isco

e das uvas quase podres 

se lobriga um vinho de paranças singulares. 

Desajeitado

não me proponho à dança. 

Quisessem outras artes

(murmuro

sem disfarçar o esgar de ironia).

Se atravessarmos o canal

medindo o peso de cada onda

deixaremos em doação uma parte de nós. 

Desminto o novembro farsante:

as páginas estavam perdidas

a meio da ferrugem que tingiu as palavras

e a mudez passou a ser critério. 

De mim não escutarão

palavras exangues

oráculos imprecisos

o leite diuturno em cabazes de pele

estrofes desarrumadas na tirania da métrica

juras sem filamento

ou almocreves em desvario. 

Se a estas desmodas me dou

sei que de mim não se espera hipoteca. 

É o que o novembro a destempo

ajuramenta.

#2214

[Crónicas do vírus, DCCLXXXVI]

 

Legados da peste (102):

do cancelamento

dos estados de espírito.

23.11.21

Transgressão

Marco

a tinta-da-china

o lugar. 

 

Desfaço

com as mãos frias

as ameias. 

 

Devolvo

no esgar mecanicista

o verbo. 

 

Imagino

no sofá de um poema

o sangue último. 

 

Acabo

no anoitecer válido

a especular. 

#2213

[Crónicas do vírus, DCCLXXXV]

 

Legados da peste (101):

o rosto cansado

de uma liberdade 

condicional.

22.11.21

Os parecidos

O relógio das parecenças

só sabe falar com metáforas. 

Mal se afunda

num dezembro sorumbático

desfia um rol de provérbios

até a linguagem ficar exangue. 

É da cepa dos gongóricos 

– esses aspirantes à erudição

farsantes de um conhecimento pronto-a-vestir. 

 

São parecidos

e não sabem ser

mais do que isso. 

 

Suas não são as páginas escorreitas

eles apenas lagares do lugar-comum

verbo repetido 

no espelho em que não são eles

a imagem devolvida. 

 

Se fossem filhos de si mesmos

seriam os primeiros parricidas.

#2212

[Crónicas do vírus, DCCLXXXIV]

 

Legados da peste (100):

foi cedo de mais

para o legado da peste? 

#2211

[Crónicas do vírus, DCCLXXXIII]

 

Legados da peste (99):

não se diga

a destempo

que encerrado 

está o assunto.