A bandeira desbotada
desmente o dia madrigal
– as máscaras derruídas
deixam rostos macilentos
à mostra.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
A bandeira desbotada
desmente o dia madrigal
– as máscaras derruídas
deixam rostos macilentos
à mostra.
Não digas nada à escolástica
os segredos só contam
se não tiverem avesso
e de nós há de constar
nos manuais do passado
que fingimos heresias
só para termos direito
a indulgências.
Não digas
mesmo nada
nada
às santas alistadas no halo do tempo
guardemos todas as mentiras
as que reservamos para as entrelinhas
e as outras
piedosas
que pouparam sobressaltos
a exércitos de gente.
Diremos
façam como os avestruzes
olhem para dentro de um poço
fundo
mesmo lá no fundo
onde as trevas escondem despojos.
Dir-lhes-emos
sejam o avesso do que julgam ser
para assim chegarem
ao compassado, espontâneo eu,
lembrem-se da irresolvida pendência
de uma mentira contada à mentira
e de como os notáveis divergem
em tê-la como mentira ao quadrado
ou anulação da mentira primeva.
Juntemos
as angústias que passam gratuitas
de corpo em corpo
as maleitas sem cura
que desenfeitam os cidadãos em grupo
a contrafação registada
a morosidade dos sonhos empenhados
as atribulações
maquinadas pelos deuses sem túmulo
e não nos deixemos à mercê de acasos
não sejamos a porta de entrada
de ventos contaminados
ou a persiana desbotada por entra
o sol desmaiado.
Dá última vez que demos conta
as horas vinham com atraso
e deixamos de saber
se os mapas eram adulterados
e nós
todavia
imunes à orfandade por falta de astrolábio
assim redimidos
no esconderijos a que demos a pele.
São reversas
as histórias contadas
talvez
o ponto da situação
sobre o princípio geral da mentira.
Rasgo o luar pendente
as mãos diligentes arquitetas
arrastam o aluvião sem freio.
Se da maré baixa protestar
seja credor de indulgência;
os pesadelos assombram os dias;
em matéria de ausências
levo uma cátedra inteira
cheia de trunfos
cheia
do despudor de quem obedece
à errância.
Os que sabotam a boa fé
dormem como os anjos
metodicamente emparedados
entre
a farsa ostensiva e a agressão da inteligência.
Os rostos impassíveis viram as cartas
suam o bluff tardio
recuando nas intenções deslumbrantes
de outrora.
Se há rua que atravesso
é essa que precisa de pontes
encostada na ombreira do estuário
que apronta uma hora sempre tardia.
Parece que chegamos atrasados
Estamos
sempre
atrasados
como se os relógios ficassem para trás
para não ficarmos no leilão da solidão.
Escrevam-se as estrofes imprevistas
versos que estimam a mão vagarosa
à espera dos formulários
a mão burocrática
que não sabe desmentir a razão.
É esta espécie de natação
mesmo à míngua de água
que faz nascer a sede perene
os braços que apertam as almas colossais
e assim se tornam ainda mais colossais
logo que desfaçam
o enigma do seu paradeiro.
As páginas
passam à cadência
de um comboio dezanovecentista
só falta o fumo denso
que dantes matava precocemente
os maquinistas.
Só falta um piano de cauda
os dedos que massajam as teclas
na carestia de um olhar pungente
como se o poema se levantasse do piano
e atravessasse todos os fusos horários
com a impressão de um instante.
Ficam por decifrar
as bandeiras que dão cor ao vento
as sílabas entoadas com o vagar do destempo
o remédio para a ira desvendada
na convulsão do sangue que se perdeu
no labirinto que esconde
as mudanças.
Rasuradas as cicatrizes expostas
sem gesso ser afeito
adorna-se o busto seráfico
com o sol arrancado ao Inverno.
As máscaras
caem como neve fundente
sobre homens feitos estátuas.
As máscaras
quando não fogem da mentira
sussurram memórias provectas
um mar insidioso de disfarces
pois essa é a serventia das máscaras.
Antes que venham os ontem
cair no estuário
e que viúvos sem paradeiro
esbracejem o frio tentacular
o gelo deita-se entre as rugas
à espera
que tudo seja um ontem sem janela.
Encomendam-se as falas imprevistas
para passarem a ser previstas:
os homens não são feitos de fogo
e entre as labaredas herdadas
situa-se
um promontório em forma de sonho
a boca havida no friso da noite
a portentosa solidão que ficou só
amanhã
com as lombadas viradas do avesso
a biblioteca nómada que se faz festim
a cada lua que passa entre a chuva diuturna.
Dizem:
os poetas são funcionários sem hierarquia
amotinados se tiverem regras
nómadas
fugindo dos estreitos labirintos
onde a palavra se diminui
no lugar-comum.
Entre o fazer horas
e o antes que se faça tarde
abate-se
a longa luva tirana do tempo.
A torre
bebe do céu
a lua sem luto.
O gato
espreguiça a noite
no vendaval sem hora.
A flor
despojada no rio
espera sem vão pela sepultura.
Os vivos
combinam um festim
quando sobem à enseada da vida.
Aninhados
sem disfarçarem a pequenez
os histriónicos porta-vozes entoam silêncios.
Uma ponte
esquecida na bruma
arruma a solidão na berma.
No epílogo
o rio cresce
como se à noite fosse roubado.
Diz da matéria
a fundura atribulada
um relógio pardo à boca erguido.
O louco
fugido aos costumes
conjuga verbos sem dicionário.
O gelo
deixado em herança
espreita sobre o ombro do Inverno.
Anuído o rumor
as estrofes aplaudem a claridade
no santuário onde se fazem rebeldes.
O fogo furtivo
antes que seja água
engana o vento esguio.
Amanhã
as lágrimas extintas
ateiam o dia esperado.
Dou-me ao luar sem rosto
o sangue respira a noite funda
e no teu regaço
o Outono imarcescível no estuário
rima com a pele escrita na minha.
Não devo nada
aos segredos que se agigantam
nos oráculos.
Não peço à cordilheira
o xisto para atapetar
a alma.
Não escondo
das pátrias em lacunas
hinos averbados na humildade.
Não me escondo
do olhar contrafeito
e das palavras ensombradas
por bocas extintas.
Não dou posse
aos estafetas de dionisíacos cantos
nem apalavro a honra
de sereias avulsas.
Não estilhaço
o rumor que sobe às montanhas
contra os provérbios arrancados
ao silêncio.
Não contem comigo
para caldeiradas de indigentes
e cocktails de aspirantes.
Não me façam dizer mal
das facas estultas que voejam
nós labirintos.
Não me façam rir
se os obituários enxameiam a lógica
e as janelas não confirmam
o entardecer.
Não me façam ser
um disfarce da última moda
o porta-voz dos lugares-comuns
atravessado nos carris
da boçalidade.
As vírgulas ultrapassam sem prudência
o parágrafo levado pela lentidão de um ancião
como quem precisa de ostentar impetuosidade
e na mealha do dia
deixar viva a impressão digital
como os gatos fazem ao deixar
com metódica vantagem
a urina como mensagem de coutada.
Se as vírgulas não fossem tantas vezes atropeladas
deixariam em forma de segredo
beijos de ouro nos ouvidos dos juízes macios.
Só que as vírgulas
estão cansadas de serem colocadas
em lugares a que não pertencem
e dessa sôfrega orfandade
não se antecipa que tenham carta de libertação
num tempo imerso no estofo de duas gerações.
A corda desatada cicia a nuvem fina
acorda antes da noite deletéria
cobrindo com a sua voz distante
os rostos enviuvados dos órfãos.
A nuvem que corre ao vento
esbraceja nos violinos roubados
e no amurado rumor de um coração
as mãos gentis falam só por música.
A maresia depõe o céu constelado
amordaça as bocas que outras calam
no tapete amarrotado vertido num ermo
os corpos servidos num palco estremunhado.
Cotejo o robusto entardecer
à espera de a noite se deitar
vejo todos os rostos a empalidecer
e às horas que combinam o seu contar
roubo a rima que se admite conhecer
como se aos meros dedos o medo bastar
e no trono feito de amanhecer
das estrofes não se vão os homens fartar
até o luar nos corpos se enternecer
nos violinos que ao silêncio destinam matar
enquanto os amantes aceitam entontecer
e das dádivas se cristalizar um certo estar.
O notário das coisas arriscadas
convocou para a mesa os procuradores bastantes
e não se ouviu um ciciar enquanto esperavam,
a par da gravidade da ocasião.
Num canto da sala
aliviando o ar pesado da circunstância
um síndico tossicava
intercalando o incómodo com um sorriso louco.
Quiseram extraí-lo da sala
por impreparação para a solenidade
e desrespeito dos pactos firmados
com o sangue da sociedade.
Saiu.
Aliviado.
Com as más orações que fizera
o edifício estaria para desabar
mal ele soltasse a voz cavernosa
e um sismo arrancasse o arranha-céus pela raiz.
Os adoradores de apocalipses aplaudiram de pé.
Nos escombros
a fina nata dos mandantes
que têm o mundo na mão.
O mundo aguentaria esta orfandade sísmica.
Deus,
o tal que não existe,
não anda tão distraído
e também anotou a maldade dos histriões
que aplaudiram a catástrofe.
Trago
num peito incisivo
a âncora que sonda as funduras submersas
onde a luz não acende o dia
na gramática sentinela que se depõe a meus pés.
Trago
enquanto orquestro a apneia
os versos que hasteados no promontório
meu alimento contumaz
no irrealizável sonho sem costuras atadas.
Trago
o que trago de herança
e na digestão vagarosa
enquanto traduzo o luar que se agiganta
componho a luz síndica que uso como candeia
antes que a manhã
me venha sentar no miradouro que dá
para o estuário.
O que trago
amarrado à auréola disfarçada
não é o imperativo pesar
a massa aguda que cimenta a angústia
(que não é de dor que fala o peito)
uma avalanche de lágrimas outrora retesadas
as cortinas que escondem o dia solar
um tríptico
que afunda o rosto numa viela perdida
a palavra ermo que fica sem paradeiro por medo
os sortilégios empenhados nas sinuosas varas
que desalinham o dia.
Trago
o que trago com a boca faminta
à medida que trago o que de mim ao peito trago.
Não é contumácia
desenhar os deslimites que avisam a fala
nem combinar com os que boicotam os deuses
uma dança desordenada
só para celebrar a deposição dos deuses
à mercê de sepulturas que desfilam
no campo do olhar
imaginadas
puramente imaginadas
sem os embaraços
que a cultura dos dias repetidos
embainha.
Empresta-me o teu cacique
à troca de um panamá jeitoso
para deslumbrares no baile vespertino.
Os facínoras plantados não se devolvem
ficam ao vento, desorgulhosos dos ardis
enquanto as madames bebericam o chá
e comentam o tom rosado da atualidade
dedilhando viciosamente as madeixas.
Nos ajuntamentos junto ao adro
combinam-se atos de obediência:
o luto será sempre a negro
a menos
que saiam em exílio por dissonância.
Abrigo
os verbos navegados
os espelhos que ateiam a manhã temperada
o lugar elevado
onde contrato o mundo desavisado.
Entorta-se a calha por onde segue o dia.
As garras já não estão escondidas.
Travam-se as falas por medo de serem cometas.
Dantes eram embaraços, agora descolonização.
Às ideias viúvas fica a celebração corrompida.
O torno é preciso para reparar o dia.
A pele arranhada sofre de tatuagens castas.
As bocas fugiram do silêncio e dizem luares.
Combinam a soberania sem ser furtivamente.
Nem toda a corrupção fica na litania da lei.
À porta
sem fronteira
à espera
de ser forasteiro em todos os lugares
esquecido o relógio
nas mãos apenas a nudez inteira
e o riso fermentado na saudação do mundo.
No ciciar da voz
escondem-se os versos embotados.
As batas escuras
atravessam o deserto
sob o sol punitivo
os olhos amarelecidos
como se estivessem colonizados.
Discorrem as páginas divididas
um escafandro depois do dia vindicado
para às mãos erradas não termos entrega
salvam-nos as mães renascidas.
O óbito do pudor
encena-se na câmara de espelhos
na geografia onde mandam os labirintos
os cantos válidos que se combinam
nas bocas que não cedem ao desânimo.
A lua está talvez povoada:
dizem
que os sonhos têm lá procuração
e no vivo atilho que aformoseia os rostos
se vê projetada a chama do luar
um lugar sem nome
que chama pelas árvores.
Do amanhã não se enfeitam os lábios
nem esperam que seja em bancos gastos
pela ordem do dia
– como se o dia desse ordens
e uns capatazes resgatados à indigência
vigiassem as ruas todas
as esquinas todas
o dicionário todo
de A a Z.
À porta
o poema cavalga
as rédeas sobranceiras aos despojos matinais
e as vozes que se existam no gradeamento
expulsam vultos tiranetes
senhoras e juízas da atalaia maior.
Belo o apogeu que não cresta
aparafusado ao braço que denta no voraz
a não beligerância que aferroa a árvore cega.
Apetite que amanhece
contra os sofás puídos dos estetas
a vibrante cegueira disfarçada de venda
o formulário burocrático que adia o tempo.
A colmeia rege o rigor da luz
não se entediam os lúdicos apostadores do dia
e escutam
com a proverbial atenção dos distraídos
o que dizem os embaixadores do silêncio.
O largo ensejo de parecer estátua
devolve ao aço fundido a vontade anestesiada.
Por fora dos pesares
onde os verbos da angústia foram destronados
só a névoa estremunhada
que não atraiçoa as palavras.
E se os dedos trémulos os versos não curarem
atirem-se os medos ao pelotão de fuzilamento
encardidos pelos vetustos embaixadores
que falam com a cara do avesso.
Sortes as várias noites sem ouvir o vento
e no pecúlio dos sonhos
em matéria incandescente
as folhas caídas
no inventário das imagens colhidas
em vez da metamorfose à força
em vez
do desamparo a caminho da solidão.
Arrumadas as intransigências
ao ouvido soam tiranas que colonizam as mãos
ou as mães que partiram sem saírem do lugar
mas da sua ausência sobram cinzas avulsas
espalhadas pelo chão paredes-meias
com as folhas vertidas pelo Outono.
Ao demais
sufrago as armas depostas
a fidúcia toda empenhada no sangue
que ensina as veias
o martelo pneumático
que semeia o ruído mecânico
em quem
com as costas viradas do avesso
no absurdo equívoco
desafia os mastins generosamente armados.
O homem que dava ideias
– ah, tanta gratuitidade filantrópica.
(Ou apenas
como banalizar o mercado das ideias
e elas
residualmente baratas ficam).
O gólgota pardacento
vomita as vírgulas fora do lugar
e as divindades em consórcio
abusam do futuro,
combinam sem desacerto
a alcatifa do tempo.
No que toca a estados de humor
a lua cheia é pior
do que o quarto minguante?
Dentro desta irrisória enseada
descubro a alquimia hasteada
o porto invisível onde faço morada.
Mandou dizer
que não se podia retratar
porque não tinha
a máquina fotográfica à mão.
Não
tenho nada a dizer.
Não tenho
nada a dizer.
Não tenho nada
a dizer.
E isto
é um poema?